A arquitetura religiosa ainda é relevante nos dias de hoje?

Algumas das mais importantes obras de arquitetura ao longo da história da humanidade se devem à religiosidade e espiritualidade do ser humano. Ao longo das últimas décadas, um crescente número de pessoas têm se importado cada vez menos com as práticas religiosas no sentido mais tradicional, isso não significa que a maioria delas seja completamente cética, mas o fato é que muitos destes monumentos arquitetônicos têm lentamente começado a perder parte de seu significado. Aquilo que Louis Kahn chamou de “imensurável” e Le Corbusier se referia como “inefável” estaria deixando de ser relevante para as pessoas?

A proposta do Vaticano para a Bienal de Veneza de 2018 - primeira participação do país no mais importante evento de arquitetura do mundo - é apresentada como “uma espécie de peregrinação não apenas religiosa, mas também cética”. Com isso, está cada vez mais evidente que o papel dos espaços “religiosos” está se transformando pouco à pouco, de espaços iconográficos para ambientes mais ambíguos que procuram refletir a "espiritualidade" de uma maneira mais ampla.

E o que isso significa? Ainda há espaço para a espiritualidade na arquitetura? É possível criar espaços religiosos abertos para pessoas de diferentes crenças e até mesmo para aquelas mais céticas? E o que faz com que um espaço seja dotado de "espiritualidade"?

Catedral-Mesquita em Cordoba. Imagem© Wikimedia user Meisam licensed under CC BY 2.0

É importante ressaltar que a maioria das religiões não possuem um único modelo unânime de arquitetura para seus espaços sagrados. Ainda que os minaretes representem o Islamismo e as catedrais góticas sejam a alma do catolicismo, ao longo da história muitos destes espaços sagrados foram incorporados e adaptados por diferentes religiões, dependendo também de questões políticas e culturais. Por exemplo, o Pantheon Romano foi completamente descaracterizado ao longo dos séculos, suas esculturas de deuses pagãos foram substituídas por imagens cristãs, porém, a sua arquitetura permanece praticamente inalterada deste a sua construção. Estruturas construídas nos sítios históricos mais importantes das religiões monoteístas já foram utilizadas como igrejas, mesquitas e sinagogas. Os espaços sagrados em si, seja qual for a religião, freqüentemente compartilham de tipologias muito semelhantes, com a apropriação da luz e escalas monumentais para evocar um sentimento de admiração e piedade.

Pantheon. Imagem© Flickr user Jun licensed under CC BY SA-2.0

No entanto, na historia da arquitetura são raríssimos os exemplos de espaços construídos para abrigar múltiplas religiões. Uma exceção é o Templo Dourado em Amritsar (1577), onde as entradas pelos quatro lados do edifício representam a abertura para as pessoas de todas as crenças e religiões. Mas esta tendência histórica da arquitetura religiosa de servir apenas a uma única crença está mudando. O Templo de Todas as Religiões, construído na Rússia em 1992, se utiliza de diferentes elementos arquitetônicos, justapondo cúpulas ortodoxas gregas com minaretes russos e ornamentos característicos de uma sinagoga judaica ou mesquita islâmica. Além disso, atualmente está em construção na cidade de Berlim uma espécie de templo ecumênico, onde uma igreja, uma sinagoga e uma mesquita existirão sob o mesmo teto.

Templo de todas as religiões, Rússia. Imagem© Flickr user Maarten licensed under CC BY 2.0

Outras estruturas que nos fazem pensar nesse tema são as salas de oração que encontramos corriqueiramente em aeroportos, shopping centers, hospitais, prisões, escolas e edifícios públicos. Estes espaços multifacetados, muitas vezes invisíveis ou escondidos, não são mais do que uma sala vazia, desprovida de elementos iconográficos onde pessoas de diferentes religiões podem entrar para encontrar a sua paz de espírito. Andrew Crompton, diretor da Escola de Arquitetura da Universidade de Liverpool, explora o fenômeno destes espaços espirituais desprovidos de religiosidade, descrevendo-os como “espaços mundanos e sem aura”, e explica que “para não carregarem significados de maneira inadequada, fazem uso de materiais bastante simples, onde não há ordem e nem simetria em demasia"[1]. Ao invés de incluir os mais diferentes elementos como no Templo de Todas as Religiões, onde há uma estranha mistura eclética de tudo, estes espaços quase profanos tentam ser unânimes a partir da eliminação de tudo aquilo que possa evocar o sagrado.

Templo ecumênico, Aeroporto Internacional de Hong Kong. Imagem© Wikimedia Commons user Chongkian licensed under CC BY SA-3.0

Mas estes espaços "espirituais" seriam ainda relevantes nos dias de hoje, quando as taxas de religiosidade nunca estiveram tão baixas? Na verdade, é justamente neste momento que eles podem ser mais importantes do que nunca. A coleção de ensaios de Julio Bermudez, Transcending Architecture: Contemporary Views on Sacred Space, descrevem como “nossa civilização contemporânea tem intensificado um sentimento de vazio existencial e falta de sentido” e que a necessidade por estes espaços “espirituais” ou “transcendentais” não poderia ser mais relevante. [2] Com o consumismo e a hiperconectividade, onde estamos constantemente cercados por imagens, ruídos e informações constantes, a necessidade de espaços para refletir, meditar e estar em silêncio é crucial para cada um de nós. Dessa forma, a espiritualidade na arquitetura poderia atingir um nível de desconexão com a religião como nunca antes, assumindo um papel completamente novo - com arquitetura podendo transformar a espiritualidade das pessoas, promovendo espaços de reflexão e clareza.

© Fernando Guerra | FG+SG

Devemos olhar para o passado para aprender a criar essas condições arquitetônicas específicas, para recriar espaços de auto-reflexão e admiração sem a necessidade de recorrer à religião. Através da forma, da escala, da materialidade e da luz, a arquitetura dos espaços espirituais poderia proporcionar o nascimento de uma nova tipologia, a qual poderia responder a alguns anseios de nossa sociedade contemporânea. Louis Kahn acreditava que a espiritualidade poderia ser alcançada através do silêncio e da luz, elementos fundamentais para a maioria de seus projetos, como o Salk Institute por exemplo, onde ele procurou desenvolver um espaço sagrado que não tivesse nenhuma relação com qualquer tipo de culto religioso. Kahn era um devoto da luz e da sombra, quase como uma filosofia. Ele dizia que “até mesmo um espaço destinado a ser completamente escuro deveria ter um pouco de luz, apenas o suficiente para nos dizer o quão escuro ele realmente é”. No projeto do Salk Institute, o contraponto entre os espaços sombrios e a praça à céu aberto serve para enfatizar a importância da luz para cada um destes espaços, criando uma atmosfera dramática e espiritual. No livro de Robert McCarter sobre Louis Kahn, ele descreve que, embora esta praça não tenha um programa formal, “é um dos espaços mais poderosos e comoventes que o homem já construiu”. [4]

The Salk Institute. Imagem© Flickr user Jason Taellius licensed under CC BY SA-2.0

A incorporação da natureza é outra maneira através da qual arquitetos são capazes de criar projetos carregados de espiritualidade. A luz filtrada através da copa de uma grande árvore, ou o som das ondas mar morrendo na praia, são elementos da natureza que proporcionam uma sensação de tranquilidade, aproximando o homem de si mesmo. No projeto do Salk Institute e do Cemitério de Brion, de Carlo Scarpa, a utilização da água é uma estratégia para transmitir calma, precisão e simplicidade, criando breves momentos reflexão. Nas Termas de Vals, de Peter Zumthor, a água é um elemento essencial do programa e, combinada com a materialidade das paredes de pedra, acaba por criar um espaço quase surreal e profundamente meditativo. Esses são apenas alguns exemplos de como a arquitetura é capaz de criar espaços carregados de espiritualidade, onde a ênfase não está nas crenças ou credos e sim nas necessidades específicas do homem.

Tomba Brion. Imagem© Flickr user seier+seier licensed under CC BY 2.0

Embora nem todos arquitetos sejam pessoas religiosas, a grande maioria deles se fascinam pelos espaços das catedrais, mesquitas e templos, um indício da relevância da arquitetura religiosa para todos nós. Espaços carregados de espiritualidade, que nos fazem refletir e nos aproximam de nos mesmos, sugerem que este tipo de arquitetura ainda pode ser relevante, e até mesmo essencial nos dias de hoje.

Assim como a hera cresce lentamente por uma parede, as catedrais foram crescendo em torno ao silêncio. Eles são feitas de silêncio.
- Max Picard, The World of Silence

Referências

  1. Crompton, Andrew. “The Architecture of Multifaith Spaces: God Leaves the Building.” The Journal of Architecture, Volume 18 Issue 4 (2013).
  2. Bermudez, Julio. “Transcending Architecture: Contemporary Views on Sacred Space.” The Catholic University of America Press (2015).
  3. Kahn, Louis. and Vassella, Alessandro. (2013). Silence and light. Zurich: Park Books (2013)
  4. McCarter, Robert. (2005). Louis I. Khan. London: Phaidon (2009)

Sobre este autor
Cita: Shen, Yiling. "A arquitetura religiosa ainda é relevante nos dias de hoje?" [Is Religious Architecture Still Relevant?] 11 Mai 2018. ArchDaily Brasil. (Trad. Libardoni, Vinicius) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/893794/a-arquitetura-religiosa-ainda-e-relevante-nos-dias-de-hoje> ISSN 0719-8906

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