Antítese da arquitetura hostil: projetos que contribuem para a hospitalidade urbana

Em 2014, quando o repórter do jornal britânico The Guardian ­– Ben Quinn ­– abriu os olhos de cidadãos de todo o mundo para práticas hostis de desenho urbano, cunhando o que viria a ser conhecido como fenômeno da “arquitetura hostil”, não se esperava uma repercussão tão grande. Vieram à tona inúmeras estratégias de desenho urbano que coíbem a participação do cidadão e segregam sua apropriação da cidade, elementos que restringem certos comportamentos e dificultam o acesso e a presença de determinadas camadas da sociedade. Códigos de conduta ditados pelo desenho urbano que vão contra tudo o que se estuda sobre urbanismo de cidades democráticas e hospitaleiras, tal qual Jan Gehl e Jane Jacobs.

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Nesse sentido, é vasto o repertório que elenca estratégias e elementos urbanos enquadrados dentro da arquitetura hostil, sejam eles cercas elétricas, arames farpados, grades no perímetro de praças e gramados, bancos públicos com larguras inferiores ao recomendado pelas normas de ergonomia, lanças em muretas e vitrines, ou seja, tudo o que puder de alguma forma afastar ou excluir pessoas “indesejáveis” dos locais públicos urbanos.

Quase 10 anos após a fatídica matéria do jornal britânico, o assunto voltou à mídia quando o padre paulistano Júlio Lancelotti quebrou a marretadas os pedregulhos “anti-morador de rua” instalados pela prefeitura sob um viaduto de São Paulo. Seu gesto foi icônico e trouxe à tona o fenômeno da arquitetura hostil e suas estratégias endossadas pelo próprio poder público. Em entrevista concedida ao ArchDaily, padre Júlio reafirmou o compromisso da arquitetura perante a construção de ambientes hospitaleiros que refletem a dignidade e os diretos humanos, assegurando que só uma mudança estrutural é capaz de libertar os projetos urbanos e arquitetônicos da epistemologia neoliberal a qual são reduzidos hoje em dia. Sendo assim, mesmo nesse contexto pouco animador, seria possível criar uma arquitetura hospitaleira? Quais estratégias de projeto poderiam ser aplicadas visando contribuir para cidades mais humanas e democráticas?

O arquiteto e professor Fernando Fuão, no seu texto As formas do acolhimento na arquitetura, afirma que a hospitalidade, em termos arquitetônicos significa “abrir o lugar, dar passagem, dar vez ao outro, acolher a diferença”. Com origem na filosofia desconstrutivista de Derrida, o conceito de hospitalidade é estudado por Fuão entendendo sua aplicação no campo arquitetônico como ferramenta importante para estarmos atentos a outro entendimento da arquitetura, no qual as formas de acolhimento podem ser traduzidas em termos de “abertura/fechamento, separação/união, recortar/colar, público/privado, familiaridade/não familiaridade.” Ou seja, o acolhimento como um desvelamento que “nos permite ver a hospitalidade na arquitetura, na cidade, numa porta, num banco de praça, ou até mesmo nos materiais que empregamos numa obra. Há um sentido de acolhimento em todas as coisas no mundo”.

Nessa mesma linha de pensamento, Fuão ainda afirma que:

Arquiteturas que fecham seus discursos sobre si mesmas só podem gerar desumanidade, distanciamento, distanciam-nos da natureza e de seus elementares, obstaculizam nossa visão do mundo que nos cerca, ocultam o outro, subtraem o sentido de topicidade do lugar, da realidade do lugar, oferecem hostilidade ao invés de hospitalidade.

Em um contexto no qual o termo hospitalidade vem ganhando diferentes percepções, abrangendo também os fenômenos migratórios globais, a arquitetura que acolhe é cada vez mais determinante em termos de espaços públicos. Citados anteriormente, Jane Jacobs e Jan Gehl contribuem com o embasamento teórico das estratégias urbanas hospitaleiras quando discorrem sobre a importância da dissolução das fronteiras e da criação de espaços de transição entre cidade e edifício.

Entretanto, além da teoria, é possível entender na prática como o desenho urbano e arquitetônico pode contribuir para gerar cidades mais hospitaleiras. Tendo isso em mente, selecionamos a seguir uma série de projetos que se preocupam em permitir livres apropriações e acolher diferentes comunidades. Estratégias de diversas escalas que condizem com o que se entende por espaços urbanos públicos e democráticos.

Mobiliário urbano

“O banco é uma casa sem telhado ou portas, ele se torna um lugar, um ambiente, faz do espaço um lugar, nele o mundo se torna recinto”, com essa frase Fuão traz à tona a importância desses mobiliários e dos espaços públicos verdes (praças e parques) como locais de acolhimento. Nessa análise é possível perceber a importância de se projetar elementos urbanos que possibilitem diferentes tipos de apropriação, assumindo um papel condizente com cada momento e cada comunidade que ocupa o espaço. Nesse sentido, a flexibilidade dos elementos urbanos é um ponto importante a ser considerado quando se fala de hospitalidade e não somente referindo-se aos moradores de rua que, porventura, se fazem dos bancos lares, mas também outras comunidades marginalizadas como skatistas, ambulantes e artistas de rua.

Em tal contexto, projetos urbanos abertos à diferentes apropriações são vistos como bons exemplos de espaços hospitaleiros como a Requalificação Urbana da Praça Marechal Deodoro que conta com esplanada para feiras e manifestações e longas áreas sombreadas com bancos, assim como a Praça Superilla de Sant Antoni, mesmo estando em um contexto diferente. Nessa linha também estão as estruturas projetadas para formalizar feiras populares e/ou vendedores ambulantes como é o caso da Feira da Cidade e dos mercados Dandaji e Guabuliga. Ainda sobre esse quesito, vale ressaltar a praça do MACBA, museu em Barcelona que, apesar de não ter sido desenhada para este fim, virou um reduto de skatistas com livre apropriação do espaço por diferentes comunidades.

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Requalificação Urbana da Praça Marechal Deodoro / Sotero Arquitetos. © Tarso Figueira
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Praça Superilla de Sant Antoni / Leku Studio. © DEL RIO BANI
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Mercado de rua Dandaji / atelier masōmī. © Maurice Ascani

Contexto geográfico

Segundo Juliana dos Santos, a hospitalidade dos espaços públicos não se faz somente por meio de dimensões sociais, mas também condições geográficas são pontos importantes a serem considerados. O cotidiano urbano com suas interações sociais está diretamente relacionado ao contexto no qual está inserido e no caso do Brasil, por exemplo, devido ao clima quente e ensolarado, os espaços de acolhimento muitas vezes estão representados por áreas sombreadas, seja pela presença de vegetação, seja pela conformação de um elemento arquitetônico como uma marquise ou um vão livre.

Nesse ponto, duas intervenções urbanas modestas respondem ao tema como a Praça da Saudade, que além das árvores oferece coberturas edificadas, e a Praça da Árvore configurando outro exemplo nacional de espaço urbano aberto, permeável que conta com espaços sombreados e de recreação como os jatos de água. E, para finalizar, impossível não mencionar o MASP, de Lina Bo Bardi, como uma edificação desenhada para acolher e reunir a população por meio do seu vão público.

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Praça da Saudade / Natureza Urbana. © Meireles Junior
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Praça da Árvore / Lazo Arquitetura e Urbanismo. © Morgana Nunes
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MASP / Lina Bo Bardi. Foto © Romullo Baratto

Interface público-privado

Fernando Fuão afirma que a hospitalidade significa abertura, vazão, a porta aberta ou entreaberta, não sendo possível um acolhimento sem esse gesto. Fachadas cegas erguendo-se como enormes muros repletos de grades e elementos pontiagudos são representantes da arquitetura hostil. Entretanto, fachadas ativas, convidativas, com espaços para a apropriação que esfumaçam a barreira entre o público e privado alimentam a atmosfera de uma cidade hospitaleira.

Na concepção de cidade e arquitetura como mesmo projeto, conforme descreve Juliana dos Santos, cria-se o tratamento espacial necessário a habitabilidade, estimulando interações sociais e apropriações. Segundo a autora, “é na fronteira da hospitalidade onde se realiza o primeiro gesto de acolhimento”. Com isso mente, alguns projetos podem ser bons exemplos que esfumaçam essas barreiras criando espaços acolhedores. Em pequena escala poderiam citados projetos comerciais que se ocuparam de um tratamento com a interface da rua como a Sorveteria Sorvete da Reserva ou o Restaurante Camélia Òdòdó e Loja Korui e sua arquibancada. Tratando de uma escala maior, projetos como Teatro Aranya, a Casa da Música e os brasileiros Praça das Artes e Centro Universitário Maria Antônia representam arquiteturas que são gentis para a cidade, materializando por meio de gestos formais a intenção de borrar as fronteiras, seja pela implantação, volumes ou materiais que se misturam ao espaço urbano.

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Sorveteria Sorvete da Reserva / PORO Arquitetura. © Igor Ribeiro
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Restaurante Camélia Òdòdó e Loja Korui / Ana Guedelha + Vitrô Arquitetura. © Maura Mello
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Casa da Música / OMA. © Philippe Ruault

Assim como Juliana dos Santos afirma, desenhar uma arquitetura da hospitalidade requer um olhar atento à ocupação humana do lugar, permeando diferentes escalas “desde as texturas dos materiais até a articulação com seu entorno”. Entretanto, se faz importante compreender que, assim como os projetos mencionados, a arquitetura é limitada a uma “intenção hospitaleira”, mas não pode ser individualmente responsável por uma mudança radical. Como o próprio padre Júlio comentou na sua entrevista, nós arquitetos podemos criar desenhos acolhedores, mas eles só funcionarão com uma mudança estrutural de acolhimento entre as pessoas, contando com políticas públicas de qualidade.

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Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "Antítese da arquitetura hostil: projetos que contribuem para a hospitalidade urbana" 29 Mar 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/978251/antitese-da-arquitetura-hostil-projetos-que-contribuem-para-a-hospitalidade-urbana> ISSN 0719-8906

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