Infância e ancestralidade: O que podemos aprender com as comunidades indígenas sul-americanas sobre espaços para as crianças?

Nas comunidades indígenas da América do Sul, o lugar da criança é onde ela desejar estar. Os bebês engatinham pelo chão de terra, se aproximam das fogueiras, investigam formigueiros, experimentam o mundo com o corpo inteiro. Eles aprendem sentindo: descobrem limites, reconhecem perigos e colhem lições que nenhum manual poderia ensinar. No cenário urbano, por outro lado, as crianças costumam ser contidas em espaços pensados para adultos, repletos de regras que, embora bem-intencionadas, muitas vezes as afastam de experiências vitais. Diante dessas diferenças culturais, não nos caberia julgar qual modelo é melhor, mas sim, perceber que, quando culturas diferentes se observam, sempre há espaço para aprender.

No âmbito arquitetônico, essa infância vivida com rara liberdade de tempo e espaço, convida a repensar a forma como moldamos nosso cotidiano: por que limitar a exploração espontânea das crianças em ambientes controlados? Por que criar barreiras físicas e simbólicas entre elas e o mundo natural? E, sobretudo, como a arquitetura contemporânea poderia romper esse paradigma e, inspirada pela criança indígena, criar espaços que devolvam à infância sua dimensão mais selvagem, curiosa e plena?

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No artigo Territorialidades Infantis, os autores enfatizam que "toda criança é criança em um lugar", destacando que existe na produção das culturas infantis uma ancoragem territorial que não apenas emoldura o contexto no qual se edifica a infância, mas, oferece o próprio substrato para a produção da existência. Ou seja, toda a criança se faz na relação construída, na variedade dos espaços e territórios em que está inserida, observando, participando e ressignificando suas experiências.


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Sob tal perspectiva, é possível compreender o fundamental papel dos espaços e suas relações dentro do desenvolvimento infantil, sejam eles naturais ou artificiais. Nesse sentido, as culturas indígenas da América do Sul guardam saberes preciosos, capazes de inspirar uma nova forma de pensar e construir o mundo. Um mundo que, acima de tudo, cultive cidadãos com profundo senso de coletividade e respeito ambiental, qualidades indispensáveis para enfrentar os desafios atuais.

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“Infância xinguana” por Pedro Biondi, CC BY-NC 2.0

Conexão com a natureza

Esse é o mistério indígena, um legado que passa de geração para geração. O que as nossas crianças aprendem desde cedo é a colocar o coração no ritmo da terra. - Ailton Krenak

O distanciamento entre crianças e natureza é um tema antigo, mas que se torna cada vez mais urgente diante da presença constante da tecnologia. A isso soma-se a escassez de espaços verdes urbanos de qualidade que, mesmo com esforços, ainda são raros na maioria das cidades. No entanto, a atração das crianças pelo mundo natural é instintiva: não é raro ver um bebê maravilhado ao tocar a terra, perseguir um inseto ou explorar a textura das folhas. Proporcionar esses encontros não significa inventar algo novo, mas resgatar o primordial — uma conexão que, entre os povos indígenas, jamais se perdeu.

Para eles, a natureza não é um recurso a ser consumido, mas uma extensão de si mesmos: cuidar da floresta é cuidar da própria vida. Como lembra Daniel Munduruku, educar é conduzir a criança a aprender com a natureza — pescar, subir em árvores, observar as estrelas. Sem vivências assim, seja na escola ou em outros espaços, as crianças perdem oportunidades de construir aprendizagens profundas e relações significativas com o mundo. Uma infância ligada à natureza favorece saúde, imaginação e colaboração. Mais que lazer, é um fundamento para formar seres humanos capazes de resolver problemas e viver de forma harmônica com o planeta.

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El Guadual Children Center / Daniel Joseph Feldman Mowerman + Iván Dario Quiñones Sanchez © Ivan Dario Quiñones Sanchez

Liberdade de exploração e a diferente noção de perigo

A criança indígena, ao explorar a diversidade de espaços da aldeia, constrói e transforma suas relações. Circula entre casas, participa da vida social, observa e interage com diferentes pessoas e situações, influenciando e sendo influenciada por tudo ao seu redor. Essa mobilidade sem limites, acompanhada de momentos de escuta, interação e descanso, amplia seu repertório e fortalece sentidos essenciais como a visão e a audição — canais primordiais de aprendizado nas tradições orais. Promover a exploração livre permite às crianças novas descobertas, uma liberdade possível graças à distinta percepção de perigo que essas comunidades cultivam.

Uma criança que pode subir em árvore, que pode levar picada de marimbondo, formiga, está exposta a riscos e isso a ajudará a lidar com o mundo. Ela será capaz de criar e se proteger no mundo. Se você só tem insegurança e medo em relação a tudo que está ao seu entorno, é difícil desenvolver uma atitude colaborativa. – Ailton Krenak

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Fuji Kindergarten / Tezuka Architects © Katsuhisa Kida

Aprendizado por meio da brincadeira

Nas comunidades indígenas, os adultos não intervêm diretamente nas brincadeiras. Não há a preocupação em dizer às crianças o que fazer ou como se comportar nos diferentes ambientes, nem em corrigir seus erros ou apontar caminhos. A confiança está no próprio processo de viver, na certeza de que a criança aprenderá observando, tentando, errando e criando. No emaranhado de espaços onde a vida se constrói, o brincar surge de forma natural, misturando-se aos fazeres diários e tornando-se inseparável da cultura e do próprio ato de existir.

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“Dança” por Pedro Biondi, CC BY-NC 2.0

Ecos na arquitetura contemporânea

Nessas culturas, o território é moldado com dinamismo — os espaços da casa, da vida comunitária e do cultivo se entrelaçam em movimentos contínuos, onde criança, território e liberdade onipresente constituem os pilares da formação da identidade infantil. Assim, uma proposta educativa inspirada na cosmovisão indígena é aquela que "coloca o coração no ritmo da terra" — promovendo uma conexão sensorial e ética com o entorno, essencial para cultivo do cuidado, da cooperação e da sustentabilidade.

Essa lógica traz uma provocação direta para a arquitetura contemporânea: e se os espaços fossem pensados para acolher o movimento espontâneo, em vez de restringi-lo? Nos contextos urbanos, ambientes infantis costumam ser projetados para usos específicos e controlados, com áreas delimitadas para brincar e zonas rígidas para "atividades sérias". Já nas aldeias, não há fronteira entre o espaço de viver e o espaço de brincar — a casa, o pátio, o caminho até o rio, todos participam dessa experiência. Incorporar essa visão significaria criar arquiteturas mais permeáveis, integradas à vida cotidiana, onde a criança possa circular livremente, explorar texturas, cheiros e sons, aprendendo no próprio percurso.

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El Guadual Children Center / Daniel Joseph Feldman Mowerman + Iván Dario Quiñones Sanchez © Ivan Dario Quiñones Sanchez

Tal filosofia pode ser vista em projetos contemporâneos de todo o mundo, os quais demonstram como a arquitetura infantil pode ser repensada para abraçar o movimento, a natureza e a autonomia, independente da cultura local. Entre eles, destaca-se o Fuji Kindergarten de Tezuka Architects, no Japão, um edifício sem limites entre dentro e fora, com cobertura contínua e circulação livre, que encoraja a mobilidade espontânea das crianças e se converte em ambiente de liberdade e descoberta. Outro exemplo interessante é a Escola Secundária Lycee Schorge de Kéré Architecture, em Burkina Faso, que ressignifica o pertencimento e contato com a natureza utilizando materiais locais e naturais, implantando os blocos em uma espécie de "aldeia" a qual configura um pátio público central, aberto para diferentes apropriações.

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Moradas Infantis em Canuanã / Rosenbaum® + Aleph Zero. Foto © Leonardo Finotti

Seria possível citar também as Moradas Infantis em Canuanã, de Aleph Zero e Rosenbaum, no Brasil, uma escola e internado rural construídos para acomodar também a população indígena marcados por espaços de uso livre protegidos pela cobertura que fomenta a imaginação nas diferentes possibilidades de apropriação. E por fim, cita-se também o Centro Infantil El Guadual de Daniel Joseph Feldman Mowerman + Iván Dario Quiñones Sanchez, na Colômbia, onde espaços abertos, obstáculos e múltiplas variáveis tornam o processo de descoberta do próprio centro um desafio e um jogo, tornando a educação uma experiência recreativa e libertadora. Esses projetos, assim como muitos outros que poderiam ser citados aqui, exemplificam como espaços arquitetônicos podem acolher o espírito ancestral da infância — onde viver, brincar e aprender ocorrem simultaneamente em harmonia com o entorno.

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El Guadual Children Center / Daniel Joseph Feldman Mowerman + Iván Dario Quiñones Sanchez © Ivan Dario Quiñones Sanchez

Este artigo é parte dos Temas do ArchDaily: Projetar espaços para crianças. Mensalmente, exploramos um tema em profundidade através de artigos, entrevistas, notícias e projetos de arquitetura. Convidamos você a conhecer mais sobre os temas do ArchDaily. E, como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossas leitoras e leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.

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Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "Infância e ancestralidade: O que podemos aprender com as comunidades indígenas sul-americanas sobre espaços para as crianças?" 15 Out 2025. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1033150/infancia-e-ancestralidade-o-que-podemos-aprender-com-as-comunidades-indigenas-sul-americanas-sobre-espacos-para-as-criancas> ISSN 0719-8906

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