A síndrome de Brasília: Jan Gehl tem razão? / Sérgio Ulisses Jatobá

Em matéria recente no ArchDaily Brasil, o urbanista Jan Gehl afirma que Brasília “ é fantástica vista de um helicóptero, mas do chão, onde vivem as pessoas, Brasília é uma merda." Em seu conhecido livro Cidade Para as Pessoas, publicado em 2013 no Brasil, Gehl admite que “vista do alto, Brasília é uma bela composição”, mas “a cidade é uma catástrofe ao nível dos olhos”, acrescenta. “Os espaços urbanos são muito grandes e amorfos, as ruas muito largas, e as calçadas e passagens muito longas e retas” [1].

Gehl criou o termo “Síndrome de Brasília” para designar a inexistência ou a desconsideração do que ele conceitua como a escala humana no planejamento urbano modernista, tomando a capital do Brasil como seu mais destacado exemplo. 

Gehl entende que o planejamento urbano envolve três níveis de escala: a grande escala, correspondente ao projeto concebido desde uma perspectiva aérea macro; a média escala correspondente ao projeto de bairros ou áreas determinadas da cidade, ainda com a perspectiva aérea, embora em baixa altitude, e a pequena escala, que é “a cidade experimentada pelas pessoas que a utilizam ao nível dos olhos [2].

Recorrendo aos conceitos defendidos por Gehl, percebe-se que o seu pensamento é frontalmente antagônico ao planejamento urbano modernista, proposto por Le Corbusier e seus seguidores nos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAM, a partir da década de 1930. Formado em 1960, Gehl conviveu no início de sua atividade profissional simultaneamente com as ideias expressas pela jornalista Jane Jacobs em Morte e Vida das Grandes Cidades, mordaz crítica da ideologia urbanística do modernismo, e a inauguração de Brasília, expressão mais bem acabada e aclamada internacionalmente dessa mesma ideologia.

A visão funcionalista da cidade, proclamada pela Carta de Atenas no CIAM IV em 1933, passou a orientar boa parte dos planejadores urbanos, que se juntaram aos planejadores de tráfego para propor o que se denominou de urbanismo rodoviarista. Negação da rua como se conhecia até então; proposição de grandes avenidas que se assemelham a auto-estradas, prédios altos dispersos em vastos espaços verdes vazios, separação das funções urbanas (moradia, trabalho, lazer e circulação) e setorização são os principais elementos desse urbanismo que rejeitou a cidade tradicional.

Brasilia - Praça dos 3 Poderes . Image © Sérgio Ulisses Jatobá

As ruas e as praças deram lugar aos shopping centers como locais de encontro. O uso intensivo do automóvel desestimulou o hábito de caminhar e condicionou a expansão horizontalizada da cidade, a chamado dispersão urbana (urban sprawl). Esta, por sua vez, obrigou cada vez mais o uso do transporte individual e tornou ineficiente o transporte coletivo e a distribuição dos serviços urbanos de água, esgoto e energia. O urbanismo modernista, pretendendo criar uma cidade mais verde e mais saudável, acabou por produzir o seu contrário: uma cidade perdulária em gastos energéticos e consumidora de espaço natural, ou seja, insustentável.

A crítica ao urbanismo modernista e por consequência à Brasília, contudo, não é exclusiva de Gehl. Cidade e Jatobá [3] elencam alguns autores que apontam aspectos negativos no modelo urbano modernista. Choay [4] diz que na busca tecnicista da cidade ideal, o urbanismo modernista desconsiderou aspectos socioculturais e históricos. Para Hall [5], Le Corbusier era marcado por uma “simplória egomania” e suas propostas eram elitistas e centralizadoras. Fishman [6] afirma que ele estava totalmente conectado com o capital e com seus valores e aplicava princípios tayloristas ao urbanismo, acreditando que a industrialização produziria cidades extensas nas quais a grande burocracia coordenaria a produção.

Harvey [7] vincula as ideias modernistas ao contexto político, econômico e social do pós-guerra e ao esforço de reconstrução das cidades europeias, motivado por ideais de progresso, ordem, economia de escala e produção em massa, típicos do período fordista. Hirt [8], seguindo raciocínio semelhante, aponta que o tecnicismo do planejamento modernista influencia duas vertentes básicas de intervenção urbana: a) a renovação de áreas urbanas centrais onde predominam arranha-céus permeados por áreas verdes, os quais chama de as corbusianas “torres-no-parque”; b) a expansão horizontalizada dos subúrbios dispersos e monofuncionalistas (cidades-dormitórios).

Brasilia - Banho na Esplanada dos Ministérios . Image © Sérgio Ulisses Jatobá

Entretanto, toda a culpa do mau urbanismo não pode ser creditada somente ao modernismo. Os fundamentos que definem o urbanismo modernista estão presentes nas teorias pré-socialistas de Owen, Godin e Fourier, ainda no século XIX, que Choay [4] define como pré-urbanistas progressistas. Os pré-progressistas, pretendendo propor ordem ao caos urbano da cidade industrial, preconizavam a fé na ciência e na tecnologia e defendiam modelos urbanos utópicos como o Falanstério e Familistério, onde prevaleciam princípios higienistas e tayloristas de controle e ordenamento espacial, que mais tarde se consolidariam no urbanismo moderno. Na Cidade Industrial de Tony Garnier (1904) já propunha a separação de funções urbanas, a valorização dos espaços verdes e o funcionalismo que Le Corbusier consagraria nos seus projetos.

Mesmo os chamados urbanistas culturalistas, que negavam o racionalismo progressista e procuravam inspiração no urbanismo do passado, deixaram seu legado no urbanismo pouco sustentável que se critica hoje em dia. A “Cidade-Jardim” de Ebenezer Howard inspirou tanto as New Towns inglesas quanto as urbanizações de subúrbio, que prosperaram inicialmente nos EUA e depois no resto do mundo, protagonizando a expansão urbana dispersa. Até no Plano Piloto de Brasília e nas cidades satélites dormitórios, criadas no seu entorno, se percebe a influência do modelo da Cidade-Jardim, que também está presente no contemporâneo Novo Urbanismo.

Em suma, pode se concluir que toda tendência racionalista e funcionalista no urbanismo, que resultou no predomínio da grande escala dos edifícios isolados em espaços amorfos e da velocidade automobilística em detrimento da pequena escala do pedestre e dos espaços públicos atrativos e bem constituídos, não advém exclusivamente do urbanismo moderno ou da chamada “Síndrome de Brasília”. Pelos argumentos expostos, defende-se que a própria evolução da técnica urbanística, que se inicia no Plano de Cerdá para Barcelona em 1859 e sua Teoria Geral da Urbanização de 1867, associado ao próprio crescimento físico das cidades, acaba por produzir o urbanismo desumano de boa parte das áreas urbanas contemporâneas. Assim seria injusto e simplista associar essas características urbanísticas, que não podem ser atribuídas ao um único modelo de cidade, ao modelo modernista que Brasília representa.

Brasilia - o povo na sombra . Image © Sérgio Ulisses Jatobá

Além disso, há um equívoco na análise de Gehl quando define Brasília como uma cidade da grande escala, cujo projeto desconsiderou a escala humana dos pequenos espaços. O Plano Piloto de Brasília é constituído por quatro escalas: a monumental, a residencial, a gregária e a bucólica. A escala monumental propositalmente ressalta os grandes espaços vazios e os edifícios isolados, mas suas referências não são as teorias modernistas, mas o Plano de Versalhes de 1671, o movimento City Beautiful do século XIX e os milenares terraplenos chineses que inspiraram Lucio Costa no projeto da Praça dos Três Poderes [9]. A dimensão humana, contudo, deveria estar na escala gregária dos setores de diversão sul e norte, que não foram implantados tal como os imaginou Lucio Costa, pensando em ali reproduzir um ambiente animado, “mistura em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées” [10].

De forma semelhante, a escala residencial das unidades de vizinhança, constituídas por quatro superquadras, também foi projetada para privilegiar a escala humana. A ideia da unidade de vizinhança é concentrar em um espaço alcançável pelo pedestre a moradia, o comércio de primeira necessidade, a escola, a creche, o posto de saúde e as áreas de lazer e esporte. As vantagens dessa tipologia urbana com uma densidade habitacional adequada (aproximadamente 380 hab./ha) associada a áreas verdes e espaços públicos gregários também não foram totalmente exploradas em Brasília. Mas é preciso admitir que o projeto conceitual da superquadra é a melhor experiência urbanística em escala reduzida produzida a partir de conceitos modernistas.

Superquadra Sul SQS 308 . Image © Sérgio Ulisses Jatobá

Brasília sintetiza não só os ideais do urbanismo moderno, mas toda uma conjugação de teorias urbanas que precedem o modernismo e se consolidaram no seu projeto urbano. As qualidades urbanas que se enaltecem no projeto do Plano Piloto de Lúcio Costa também são, vistas por outro prisma, os seus defeitos quando analisadas a luz dos princípios do novo urbanismo defendidos por Jan Gehl e outros. A “Síndrome de Brasília” também é a síndrome de um modelo de urbanismo que respondeu a determinados requisitos de uma época, mas que já não responde aos requisitos do mundo urbano contemporâneo.

Versão atualizada do seguinte texto: JATOBÁ, Sérgio Ulisses. A síndrome de Brasília. Reflexões acerca de um rótulo questionável. Resenhas Online, São Paulo, ano 13, n. 146.02, Vitruvius, fev. 2014 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/13.146/5065>.

Notas:
[1] GEHL, Jan. Cidade Para as Pessoas. São Paulo. Perspectiva. 2013, p. 196-7.
[2] GEHL, Jan. Cidade Para as Pessoas. São Paulo. Perspectiva. 2013, p. 195.
[3] CIDADE, L. C. ; JATOBÁ, S. U. S. . Dinâmica social, modelos de urbanismo e seu rebatimento em questões ambientais. In: COUTINHO M. DA SILVA, R.. (Org.). Desafios Urbanos para a Sustentabilidade Ambiental nas Cidades Brasileiras. 1ªed.Rio de Janeiro: PROURB/UFRJ, 2012, v. 1, p. 15-27.
[4] CHOAY, Françoise. O urbanismo: utopias e realidades; uma antologia. São Paulo: Perspectiva, 1979.
[5] HALL, Peter. Cidades do amanhã: uma história intelectual do planejamento e do projeto urbanos no século XX. São Paulo: Perspectiva, 1995 (©1988).
[6] FISHMAN, Robert. Urban utopias: Ebenezer Howard and Le Corbusier. In: CAMPBELL, Scott; FAINSTEIN, Susan (Eds.).Readings in planning theory. Malden, Massachussetts, USA and Oxford, UK: Blackwell, 1996. 543 p., p. 19-67.
[7] HARVEY, David. The condition of postmodernity: an enquiry into the origins of cultural change. Cambridge, MA & Oxford, UK: Blackwell, 1989. 378 p.
[8] HIRT, Sonia A. Premodern, Modern, Postmodern? Placing New Urbanism into a Historical Perspective. Journal of Planning History, v. 8, n. 3, p. 248-273, Aug., 2009. Disponível: <http://jph.sagepub.com/cgi/content/abstract/8/3/248> Acesso: 19/02/2010.
[9] COSTA, Lúcio. Relatório do Plano Piloto de Brasília. Governo do Distrito Federal. DEPHA. Brasília. 1991, item 9
[10] COSTA, Lúcio. Relatório do Plano Piloto de Brasília. Governo do Distrito Federal. DEPHA. Brasília. 1991, item 10

Jan Gehl: "Do chão, onde vivem as pessoas, Brasília é uma merda"

Destacando a transformação urbana de Copenhague, analisando os equívocos do movimento moderno e abordando os desafios das cidades do século XXI, o arquiteto e urbanista dinamarquês, Jan Gehl, apresentou, no dia 29 de junho, a conferência Pensar en urbano: ciudades para la gente , organizada pela ONU-Hábitat no Colegio Oficial de Arquitectos de Madrid (COAM).

Escalas de Brasília, pelas lentes de Joana França

"É o jogo de três escalas que vai caracterizar e dar sentido a Brasília... a escala residencial ou quotidiana... a dita escala monumental, em que o homem adquire dimensão coletiva; a expressão urbanística desse novo conceito de nobreza... Finalmente a escala gregária, onde as dimensões e o espaço são deliberadamente reduzidos e concentrados a fim de criar clima propício ao agrupamento...

Sobre este autor
Cita: Sérgio Ulisses Jatobá. "A síndrome de Brasília: Jan Gehl tem razão? / Sérgio Ulisses Jatobá" 25 Jul 2017. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/876422/a-sindrome-de-brasilia-jan-gehl-tem-razao-sergio-ulisses-jatoba> ISSN 0719-8906

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