Faltando alguns dias para o fim do mês de novembro, Gramado, cidade conhecida como um dos destinos turísticos mais procurados do sul do Brasil, ganhou os holofotes da mídia nacional e internacional e, infelizmente, não foi por causa do seu festival de cinema ou pelas tradicionais e suntuosas festividades de natal. A cidade, que já vinha sendo castigada pela chuva persistente há semanas, viu o surgimento de enormes sulcos geológicos que rasgaram suas ruas e contribuíram para a formação de um cenário digno de filme pós-apocalíptico.
O perigo eminente da movimentação do solo colocou em alerta a população e os governantes que agilmente evacuaram as edificações localizadas nas colinas do bairro condenado. A conduta foi completamente efetiva e responsável, visto que um dos prédios que estavam na região delimitada, de fato, veio a desabar 3 dias após a evacuação. Entretanto, vale a pena reparar em um detalhe, o bairro em questão era composto por moradias de alto padrão, além de hotéis e pousadas de luxo, o que levanta uma pergunta: será que os esforços seriam os mesmos se a situação ocorresse em bairros periféricos de população de baixa renda?
No caso específico de Gramado, nunca saberemos, mas é muito fácil listar inúmeras tragédias ambientais que aconteceram ao longo dos anos em diferentes cidades e que atingiram populações mais vulneráveis as quais nem sequer tiveram tempo de sair de suas camas, morrendo engolidas pelos destroços e pela lama.
Diante dessa situação, um termo em específico vem sendo abordado cada vez mais quando falamos sobre os desafios das cidades contemporâneas. O racismo ambiental diz respeito a forma como os problemas ambientais são encarados a partir das desigualdades sociais, em especial o racismo. A interseccionalidade entre raça e meio ambiente tem gerado discussões sobre a diferença dos impactos dos fenômenos naturais na população, mas também aborda problemas urbanos como o acesso desigual a água potável e saneamento básico, localização de lixões e aterros próximos as comunidades de baixa renda, entre outros.
O termo foi definindo em 1981 pelo líder afro-americano de direitos civis Benjamin Franklin Chavis Jr, assistente do conhecido ativista político Martin Luther King. Sua origem se deu em meio às manifestações do movimento negro contra as injustiças ambientais que ocorriam na época em todo os EUA.
Recentemente, tendo em vista os impactos das mudanças climáticas no planeta, o racismo ambiental passou a incorporar também o racismo climático, trazendo à tona a grande contradição de que os principais responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa são os países mais desenvolvidos, no entanto, quem sofre as maiores consequências das alterações climáticas são os países do sul global.
O mesmo princípio vale para as cidades, a degradação ambiental não parece atingir todos da mesma maneira. No contexto brasileiro, por exemplo, é importante ressaltar que a ocupação histórica das encostas de morros pela população negra — com exceções como o caso de Gramado — está relacionada ao seu passado colonial, com as estruturas sociais baseadas na escravização dos negros que foram inviabilizados e não receberam nenhuma reparação após o processo de alforria. Sendo assim, essa população não apenas se torna a mais vulnerável no caso de desastres ambientais como também não recebe o mesmo respaldo se comparado com a população branca e de poder aquisitivo mais elevado.
São vários os exemplos práticos dessa situação. A tragédia ambiental na cidade brasileira de São Sebastião, litoral norte de São Paulo, no início deste ano, ocasionou 65 mortes por conta dos deslizamentos ocorridos pelas fortes chuvas. Em uma conformação urbana claramente dividida, de um lado da rodovia e na direção do morro, vivia a população mais carente e majoritariamente negra, enquanto do outro lado, próximo a praia estavam as mansões dos ricos e majoritariamente brancos. O volume de chuvas sem precedentes afetou todos os moradores da cidade, entretanto, em grau elevado os mais pobres que sofreram com os deslizamentos e perderam não apenas bens materiais, mas também tiveram que lidar com a perda de entes queridos. A cidade inclusive ficou ilhada e viu uma frota de helicópteros pousarem para resgatar os habitantes mais abastados.
Outro exemplo que poderia ser citado aqui é o caso da cidade alagoana de Maceió. Essa é uma história interessante pois, apesar de estar diretamente relacionada a um desastre ambiental, neste caso, as causas da tragédia foram claramente de ordem humana, por conta da extração mineral realizada por uma empresa.
Em março de 2018, a cidade vivenciou um terremoto de magnitude 2,4 na escala Richter seguido por rachaduras e afundamento do solo que se expandiram ao longo dos meses e acenderam um alerta para os moradores dos bairros atingidos. Há 40 anos ocorria na região a extração de salgema pela petroquímica Braskem – do grupo Novonor, antiga Odebrecht — em mais de 30 poços no subsolo da cidade, o que acarretava no constante movimento da terra. Mais de 60 mil pessoas foram removidas das suas casas e os antigos bairros se tornaram locais fantasmas marcados pelas construções rachadas e condenadas.
Muitas famílias se viram forçadas a rapidamente se mudarem para regiões afastadas do centro da cidade ou para municípios vizinhos, sem apoio e muito menos o valor da indenização. Nesse quesito em especial, se destaca a desigualdade de tratamento e diferença na agilidade do processo indenizatório entre os bairros atingidos de classe média e os de classe baixa. Vale ressaltar ainda que a situação foi agravada também pela especulação urbana que, intensificada após o desastre, fez com que Maceió fosse palco da quarta maior alta no preço de imóveis no país naquele ano.
Esse exemplo mostra como a extração sem precedentes dos bens naturais impacta a vida e a natureza do planeta fomentando também as próprias mudanças climáticas. Por essas e outras práticas, uma era de imprevisibilidade e insegurança se aproxima, na qual eventos extremos serão cada mais recorrentes. Em tal contexto, nossas cidades precisam estar atentas ao oferecer mecanismos de controle e resiliência, focados nas populações historicamente mais vulneráveis e impactadas ambiental e climaticamente.
Há algumas semanas, no Brasil, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 380/23, que inclui a adoção de medidas de adaptação e mitigação dos impactos das mudanças climáticas entre as diretrizes do Estatuto da Cidade, priorizando os contextos de vulnerabilidade. Uma das inovações propostas é a inclusão de estudos de análise de riscos e vulnerabilidades climáticas como instrumentos da política urbana, buscando fornecer aos municípios uma base sólida para a tomada de decisões, considerando os desafios de cada região.
Essa medida diz muito sobre a forma como é preciso agir diante das catástrofes naturais em específico, mitigando o problema de maneira mais ampla ao elaborar um plano de redução de riscos o qual contaria com profissionais capacitados para classificar o grau de risco que as áreas oferecem e apresentar soluções. É fato que em alguns casos não haverá solução a não ser evacuar os moradores, mas em outros é possível lidar com drenagens, contenções de encostas etc. A “quase tragédia” de Gramado mostra que possível, sim, prever algumas situações e proteger a população, o que parece faltar é um tratamento mais igualitário.