1 Hora no trânsito: uma constante imutável?

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Em 2005, a velocidade média dos veículos automotores na China era de menos de 10 km/h, inferior a velocidade média das bicicletas. Imagem: Jens Schott Knudsen/Flickr

Em 1870, o tempo médio de trabalho semanal nos EUA era de 57 horas, em 2000, já tinha caído para 39 horas, redução de 32%. A França passou de 66 para 34 horas, redução de quase 50%. No mundo, a redução da jornada de trabalho foi em média de 64 para 36 horas, mostrando que a evolução tecnológica pode ter contribuído para a redução do tempo dedicado às atividades laborais.

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No mesmo período, as sociedades também experimentaram uma notável revolução nos meios de transporte. Até então, uma carroça típica, puxada por cavalos, dificilmente ultrapassava os 20 km/h. Já o popular modelo T lançado por Ford em 1908 atingia até 72 km/h, e a maioria dos modelos atuais de automóveis tem capacidade de atingir mais do que 200 km/h (ainda que seja algo impraticável no meio urbano e não recomendado em rodovias). 

Todavia, apesar deste notável ganho na velocidade potencial dos veículos motorizados, alguns estudos apontam que, diferente da jornada laboral, o tempo dedicado aos deslocamentos diários permaneceu mais ou menos constante ao longo do último século ou até aumentou. Uma das explicações para o fenômeno pode estar na chamada constante de Marchetti.

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Foto de Alexander Popov, via Unsplash

No ano de 1994, o físico italiano Césare Marchetti, baseado nos trabalhos de Yacov Zahavi, formulou uma hipótese ousada, afirmando que, em toda a história da humanidade, independente de cultura, raça ou religião, o tempo médio gasto em deslocamentos seria antropologicamente constante e giraria em torno de 1 hora por dia.

Portanto, para o autor, deslocar-se seria uma necessidade humana, baseada mais em instintos inatos do que propriamente em variáveis econômicas, o que ajudaria a explicar até mesmo a dimensão das cidades historicamente.

Por exemplo, enquanto a forma de locomoção predominante era a caminhada, o raio das antigas cidades da Grécia, de Roma, Persépolis, Marrakech ou Viena não costumava ser maior que 2,5 km, o que permitia, em 1 hora de caminhada, atingir qualquer ponto da cidade partindo do centro. De maneira que a expansão urbana só aconteceu à medida que novas tecnologias permitiram velocidades de deslocamento maiores.

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Vista das ruínas de Persépolis, no Irã. Imagem: Diego Delso

É possível perceber que essa ideia traz novos desafios para quem trabalha com planejamento urbano e de transporte. Por muito tempo, o paradigma que orientou muitas das políticas de mobilidade na era do automóvel foi buscar reduzir o tempo de viagens, através do alargamento de vias e construção de viadutos. Várias das análises de custo-benefício feitas para obras viárias davam um peso monetário de até 80% para o possível benefício com economia de tempo advinda da melhoria no trânsito prevista.

Mas, se a proposição de Césare Marchetti estiver correta, um projeto viário que consiga temporariamente melhorar a circulação poderá fracassar no objetivo de diminuir o tempo dos deslocamentos. Afinal, com a eventual melhoria, os beneficiários poderão agora se mudar para o bucólico condomínio nas franjas urbanas, matricular o filho naquela escola conceituada um pouco mais longe, iniciar a tão sonhada aula de guitarra do outro lado da cidade, conhecer o novo e distante restaurante recomendado pelos amigos ou passar a frequentar a academia badalada muitas quadras a percorrer desde suas residências, de forma que o tempo que passam se deslocando diariamente continue mais ou menos constante.

A corroborar essa hipótese, estudo realizado em 2008, por David Metz da Universidade de Londres, observou que o tempo médio de deslocamento dos britânicos ficou estável em torno de 1 hora nos últimos 40 anos. Já a partir de dados dos EUA, trabalho realizado em 2009, por Gilles Durant da Universidade da Pensilvânia e Matthew A. Turner da Universidade de Brown, identificou que um acréscimo de 10% no tamanho das vias no país resultou em um aumento de 10% na distância média percorrida pelos motoristas. Os autores apontam que isso tenha ocorrido por pelo menos 3 motivos:

1) Aumento das distâncias percorridas por residentes;

2) Aumento das atividades de transportadoras;

3) Aumento do número de residentes no local.

Isso quer dizer que toda a política para reduzir tempo de deslocamento é inócua? Não exatamente. David Metz ressalta que existe uma diferença qualitativa quando as pessoas podem acessar mais opções devido a um ganho de velocidade no deslocamento, pois são novas possibilidades que se abrem, mais locais, pessoas e atratividades a se visitar. 

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Foto de Ryoji Iwata, via Unsplash

O problema é que geralmente o ganho de velocidade nos deslocamentos costuma ser temporário. Na medida em que o transporte automotivo promete condições comparativamente mais vantajosas, em especial deslocamentos mais velozes do que as outras opções, isso incentiva a demanda por carros e faz com que as ruas voltem a ficar congestionadas no médio prazo. Para se ter uma ideia do fracasso histórico desse tipo de iniciativa, seguem algumas evidências em diferentes cidades do mundo:

  • Em Pequim, na China, dados do Banco Mundial atestam que a velocidade média dos veículos automotores nos horários de pico caiu de 45 km/h em 1994 para menos de 10 km/h em 2005;
  • Em Nova Delhi, capital da Índia, a velocidade média em horário de pico caiu pela metade em apenas seis anos, entre 2011 e 2016.
  • Em São Paulo, a CET informa que a velocidade média nos horários de pico passou de algo em torno de 25 km/h em 1980 para próximo de 15 km/h em 2013.

Ademais, mesmo que ocorram avanços na velocidade média de deslocamento dos automóveis, outros problemas tendem a piorar. Em primeiro lugar, a velocidade mais elevada é uma das principais causas de tragédias no trânsito, especialmente para ciclistas e pedestres.

Por sua vez, caso realmente a velocidade média aumente, a regularidade histórica das médias do tempo de deslocamento proposta pela constante de Marchetti, e corroborada por diversos estudos, resulta necessariamente em maiores distâncias percorridas por todos. E as implicações negativas disso não são nada triviais, levando a um aumento na emissão de poluentes na atmosfera e dos efeitos deletérios do espraiamento urbano, das ilhas de calor, impermeabilização do solo e alagamentos. Um conjunto de custos geralmente subestimado ou nem considerado nas análises de custo-benefício de obras viárias, mas que de acordo com David Metz podem superar os benefícios estimados.

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Imagem: Mariana Gil/EMBARQ Brasil

Por isso, é muito bem vinda a proposta de Roberto Cervero, do Banco Mundial, que sugere avaliações de intervenções urbanas e projetos viários para além da busca por economia de tempo em viagens, incorporando metodologias mais robustas e inclusivas. O autor sugere, então, que, para além de se considerarem os ganhos de velocidade, deveriam ser criados indicadores de acessibilidade (proximidade de empregos, médicos, educação e comercio), condições ambientais (poluição do ar, sonora e visual), perdas humanas e materiais com sinistros de trânsito, sustentabilidade (km percorridos por motoristas), habitabilidade (mudança para modais não motorizados, porcentagem de áreas verdes x impermeáveis) e acessibilidade (percentual do salário gasto com deslocamento).

Portanto, muitos técnicos têm recomendado que as cidades tentem reduzir o espaço dos carros nas vias, promovam a mobilidade ativa e o transporte coletivo, bem como criem condições para que um maior número de atratividades e oportunidades estejam mais acessíveis em várias partes da cidade.

Para isso ocorrer, tanto melhor que existam regras a favorecer o adensamento urbano, a diversificação dos tipos de ocupação do solo e boas políticas públicas para caminhadas e pedaladas, de forma que as ruas fiquem mais cheias, vibrantes e as pessoas tenham muito mais incentivo para gastar sua cota diária de deslocamento através de modos de locomoção mais aprazíveis e saudáveis a si, à economia, ao meio ambiente e à cidade.

Via Caos Planejado.

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Sobre este autor
Cita: Cristiano Scarpelli. "1 Hora no trânsito: uma constante imutável?" 03 Jul 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/984580/1-hora-no-transito-uma-constante-imutavel> ISSN 0719-8906

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