Movimentos de moradia e pandemia: redes de solidariedade, território e Estado

Com a pandemia do coronavírus, a questão da moradia ganhou ainda mais importância. O que já era um tópico de grande relevância nos territórios populares – através da aquisição da casa própria o trabalhador passa a ser reconhecido efetivamente como parte integrante da cidade – ganha magnitude, uma vez que a não obtenção de condições mínimas podem ser fatores de mortalidade; se tornando essencial a necessidade de ter acesso à habitação adequada, com direito a infraestrutura e bem localizada.

Dessa forma, os movimentos de moradia autogestionários – com destaque para União Nacional por Moradia Popular (UNMP) – ganham novas dimensões e se colocam como protagonistas das redes de solidariedade praticadas durante este período. São eles quem chegam nas famílias periféricas, levando doações, informações e ajuda, deixando claro como conhecem suas redes e particularidades; e fazendo o uso da autogestão, tão bem conhecida nos canteiros, para uma nova forma de organização. Essa prática indica um duplo papel dos movimentos, de tirar a fome e dar moradia digna, mantendo-se presente na vida das pessoas em um momento de paralisações gerais.

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Entrega de cestas básicas. Colagem realizada a partir de imagens disponibilizadas por UMM-SP, Jornal da União. Autoria própria

Os movimentos sociais carregam anos de experiências na produção do urbano pelos trabalhadores, fazendo formações críticas frente à cidade contemporânea, tendo como base a formação de um sujeito político e a sua emancipação pelo espaço. Suas lutas, entretanto, só se configuram em um espaço de formação política porque sucedem de um conflito com o Estado.

São muitos os trabalhos que discutem e observam as trajetórias dos movimentos populares, levando ao desenvolvimento de uma série de teorias. Nas análises sobre os movimentos populares brasileiros, porém, sempre está presente a noção de que as lutas sociais têm como alvo o Estado. Em busca de atender suas necessidades, os movimentos são colocados como os capazes de exacerbar as contradições da sociedade: 

“Os movimentos sociais são vistos como parcelas ativas das classes trabalhadoras, capazes de impulsionar mudanças para a sociedade como um todo, a partir de suas reivindicações por melhorias nas suas condições de vida” (TANAKA, 2004, p. 98). 

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Manifestações populares. Colagem realizada a partir de imagens disponibilizadas por Facebook da MTST-Leste 1 e Educacional. Autoria própria

Em um período de supressão política durante o regime civil-militar os movimentos ganham força, trazendo uma renovação da cena nacional. Estes se colocam como os representantes das crescentes periferias, visam a construção de uma sociedade mais igualitária, e usam das demandas de seus bairros para criarem uma luta política. Nesse processo, algumas instituições em crise se reaproximam dessa população, proporcionando um efeito pedagógico nos seus participantes: a Igreja Católica, grupos de esquerda desarticulados e os movimentos sindicais.

Perante diversas crises encavaladas, aliadas ao aumento da oposição, se consolida uma mobilização e intensa disputa política em busca de uma nova Constituição democrática. Por meio de protestos, greves, atos, seminários e publicações, se fortalece a participação popular, e verifica-se uma inédita interação entre atores parlamentares e a sociedade civil. Este ciclo representa uma ampliação dos direitos, da cidadania, e uma expansão e redefinição dos movimentos populares.

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Participação popular na Assembleia Constituinte. Colagem realizada a partir de imagens disponibilizadas por CNTS e Educacional. Autoria própria

Essa tendência de uma forte construção democrática foi interrompida, tanto por uma desmobilização da sociedade após as conquistas da Constituição, quanto pelo amplo crescimento na década de 90 do neoliberalismo; que trouxe consigo um brutal aprofundamento das exclusões sociais, econômicas e políticas.

As periferias foram retiradas do centro do debate público, e os movimentos sociais diminuem sua presença no espaço urbano, apostando agora em uma ação conjunta entre sociedade organizada e Estado, representando um período de “inserção institucional”, marcando o encolhimento do seu papel político e a perda do seu caráter reivindicativo.

Se altera o panorama de lutas sociais e, apesar de alcançarem certas conquistas, a realidade urbana pouco se transforma. Associado a esses fatores, o distanciamento da esquerda da periferia, a quebra dos sindicatos, o afastamento da igreja do povo, complementado pela burocracia e pela ausência do governo, se cria um espaço vazio na periferia, que é ocupado pelas igrejas neopentecostais e pela criminalidade. (L3) [1]

Fica claro, porém, a importante função política dos movimentos populares, ao criarem campos discursivos; emanciparem seus participantes; reivindicarem direitos e cidadania aos excluídos; desnaturalizarem a pobreza como paisagem natural das cidades e proporcionarem espaços de participação democráticos. Para atingirem tais objetivos, precisam se projetar na cena pública, utilizando-se de diferentes formas de ações coletivas no enfrentamento ao Estado. Ao longo dessa disputa, passam por um processo de criminalização e deslegitimação de suas ações, e são reprimidos ao questionarem a sociedade. 

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Mutirões de moradia popular. Colagem realizada a partir de imagens disponibilizadas por USINA CTAH e Mutirão, collective autoconstruction in São Paulo. Autoria própria

É notável que perante os mais de trinta anos de existência, os movimentos sociais mudaram sua atuação devido aos diferentes cenários enfrentados. Conduziram mudanças sociais, políticas e econômicas, adquirindo experiência no papel de resistência. Ao entender a força política que já tiveram e suas trajetórias, é possível olhar para os dias atuais: com a pandemia do Covid-19 os movimentos novamente se adaptam a uma distinta forma de atuação, representada pelas redes de solidariedades e no auxílio aos territórios populares.

Combatendo a invisibilidade do setor popular, os movimentos sociais levam contribuições às comunidades em situações emergenciais, além de apresentarem denúncias e propostas ao poder público (L1). Essas lideranças das periferias ganham voz durante a pandemia: 

Se não fosse o pacto entre sociedade civil, movimentos, academia e alguns investidores, a população estaria sendo mais exterminada do que já está. — Carmem Silva (L3) 

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Distribuição de cestas básicas. Colagem realizada a partir de imagens disponibilizadas por UMM-SP, Jornal da União. Autoria própria

Associada à solidariedade, os movimentos populares têm sido cobrados de um alto nível de organização, no combate a crise política e sanitária, e na militância pela democracia. Denunciam a ineficiência por parte do Estado na provisão de moradias e no auxílio à população periférica, dos cortiços e moradores de rua (L4). Assim, exercendo por vezes o papel do Estado, essas “forças vivas” existentes nos territórios apresentam-se como primordiais frente aos desmontes de políticas públicas (L2):

A cesta básica é uma forma de se manter presente para as pessoas, no lugar onde ela está, durante a necessidade. Porque queremos que ela lute por moradia, lute por isso, por aquilo, mas na hora que está pior fala: ‘fica em casa aí, que quando passar a pandemia a gente retorna’. Não tem como, você perde representatividade, perde reação mesmo. Essa foi a primeira preocupação que tivemos. A segunda foi, vamos usar as cestas básicas também para informar essas pessoas, tanto no combate a 'fake news', quanto nas propostas de luta para organizar as políticas públicas; daí veio a ideia do ‘jornalzinho’. A gente brinca, que é a cesta básica em uma mão e o jornalzinho na outra, e aproveita e já pergunta se está no auxílio emergencial, se tomou vacina [...] Agora estamos costurando máscaras e entregando a máscara junto, ensinando a usar. Então vira um ponto de articulação. — Evaniza Rodrigues, informação verbal, 2020. [2] 

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Distribuição e entrega de cestas básicas. Colagem realizada a partir de imagens disponibilizadas por UMM-SP, Jornal da União e Facebook da MTST-Leste 1. Autoria própria

Com a chegada do vírus no Brasil pelos bairros nobres, adotam-se condições de isolamento social não funcionais para as áreas populares. Raquel Rolnik, na tentativa de entender onde estão os maiores contágios na cidade, explica que o que mais parece fazer sentido é que uma parte da população, de alta renda, ficou em quarentena no teletrabalho, enquanto outra teve de sair para trabalhar, garantindo o isolamento dessa classe alta. Crítica que em nenhum momento se teve uma ação territorializada, com operações diferenciadas para cada grupo de indivíduos, pensando em quem precisou circular (predominantemente periféricos, pretos e pardos) (L2). 

Destacando como a pandemia evidencia questões que estavam invisibilizadas, tornando nítidas as desigualdades das cidades, participantes dos movimentos debateram como as palavras de ordem “fica em casa” propagadas durante este período não abrangem as pessoas que não têm acesso a moradia ou moram em situação irregular (L2). Com o governo não disponibilizando medidas econômicas para fazer o isolamento, e sendo os territórios populares marcados pela informalidade e por negócios de subsistência, o home office é um privilégio distante para essa população. Os coordenadores da UNMP expõem como nas periferias há o uso de praças e promoção de eventos informais, que associados a presença de problemas do século retrasado – como a falta de água, a intermitência no fornecimento, o alto custo, entre outros (L3) – e a não rara aglomeração de pessoas na mesma casa, a impossibilidade de isolamento e o consequente contágio se tornam inevitáveis. A população vulnerável não tem a segurança de ter uma casa e não ser despejada, de ter um número de cômodos adequado, de ter materiais de limpeza suficientes (L1). 

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À esquerda, Mapa de contágio x favela x saneamento; à direita, mapa de contágio x racialidade, maio/2020. Colagem realizada a partir de imagens disponibilizadas por Instituto Pólis. Autoria própria

Diante desse desconhecimento do Estado das áreas vulneráveis e do setor popular, a maioria das políticas não atingem quem deveriam atingir (L3). Dessa forma, em um momento de crise, o governo vai em busca dessas redes, representadas por experiências de autogestão mobilizadas, que são capazes de atender às comunidades desamparadas (L1). Deixando clara a potência da sociedade civil organizada, o poder local assume um papel prioritário ao conhecer sua região.

Uma organização popular, que já faz uma ação permanente naquele território, e que o organiza, porque conhece, tem protagonismo. Os nossos mutirões mesmo, a gente já sabe quem são as famílias em situação mais precária, quem são os idosos, quem tem muita criança, quem tem criança deficiente, já conhecemos. A gente tem laços, então sabe disso; é muito mais próximo, mais real, do que um cadastro na prefeitura. — Evaniza Rodrigues, informação verbal, 2020.  

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Mutirantes construindo abóbadas, Parque São Rafael. Colagem realizada a partir de imagens de USINA-CTAH. Autoria própria

Durante a pandemia ganharam repercussão outras discussões para além da moradia. Ficou nítido como o contágio atinge os indivíduos de forma desigual, apresentando maior risco para população pobre, indígena, negra, e parda; além de possuir uma relação com o baixo nível de escolaridade e trabalho informal. Os protesto “Vidas Negras Importam” também reverberam, mostrando como na sociedade brasileira se tem uma naturalização da discriminação racial, habituando-se com o massacre do povo negro (L2). 

Sendo as periferias o lugar histórico da população negra, com predominância de mulheres chefes de família, elas também são maioria nos movimentos de moradia e as mais atingidas pela desigualdade e pela violência doméstica, que alcança recordes durante o período de isolamento (L4, L1, L3). São ainda, maior número no trabalho informal, na linha de frente de combate à doença, e as mais vulneráveis ao contágio, pelas dificuldades de isolamento e ocupações (L4). 

Cabe ressaltar a longa história das mulheres nos movimentos de moradia, que criam redes de apoio, incentivando umas às outras a se desvencilharem de ambientes opressores; trazendo uma redefinição de suas capacidades, da sua autoimagem e de uma autonomia. Desse modo, o movimento coloca-se buscando trazer orientação e instrução a essas vítimas de violência doméstica, que se viram sem alternativas durante o fechamento de fóruns e delegacias e em isolamento com seu agressor (L4).  

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Manifestações contra discriminação racial. Colagem realizada a partir de imagens disponibilizadas por El País, Alma preta e Facebook UMM-SP. Autoria própria

Apesar do difícil cenário, um sentimento de esperança em um novo mundo mais inclusivo permeou de forma geral os debates. Considerando as particularidades e desafios que passam os territórios populares, movimentos e acadêmicos fazem proposições pensando a produção de um novo paradigma e de um novo plano para a cidades e para a sociedade, destacando o coletivo como uma saída para o pós pandemia. 

Não podemos voltar ao normal, porque o normal era um país com 11 milhões de desempregados, um país de uma enorme exclusão de mulheres dos espaços de poder, era uma exclusão de negros. O normal era grandes interesses de grandes corporações ditando a legislação e os investimentos. Isso não pode mais ser normal. Como somos teimosos e sonhadores, dissemos que temos condições de construir outra plataforma, outro projeto político de país para essa saída da pandemia, que tenha fundamentos contrários a esse capitalismo de exploradores, que não encontra fôlego para seguir. É preciso pensar um caminho que respeite a natureza, as pessoas, que priorize a economia solidária, os pequenos. E isso talvez seja a possibilidade que vamos construir juntos. —Evaniza Rodrigues, 2020 (L4)

Ainda é cedo para saber se a pandemia vai trazer mudanças efetivas e desdobramento na sociedade, entretanto, já é notável a articulação de alguns debates na pauta dos direitos, em função das demandas que esse período trouxe. É também notável que as redes de solidariedade trouxeram frutos e aprendizados aos movimentos, unificando bandeiras, e dando um novo paradigma na luta contra o Estado. 

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Ato dia mundial do Sem Teto. MTST-Leste1, 05/10/20. Colagem realizada a partir de imagens disponibilizadas por Facebook MTST-Leste 1. Autoria própria

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O ensaio aqui exposto é fruto de um Trabalho de Conclusão de Curso desenvolvido na Associação Escola da Cidade em 2020, sob orientação da Profa. Dra. Amália dos Santos.

Notas:
[1] As informações extraídas dos debates em formato de lives serão referenciadas de acordo com numeração exposta ao final deste artigo.
[2] Conversa com Evaniza Rodrigues realizada no final de junho de 2020.

Referências Bibliográficas:
FIOROTTO, Veridiana Lopes Ribeiro. Movimentos de moradia e pandemia: um olhar crítico para as redes de solidariedade a partir das relações com o território e o Estado. Trabalho de Conclusão de Curso. São Paulo, Associação Escola da Cidade, 2020. Disponível em: < https://issuu.com/veridianafiorotto/docs/tc_final_issu>.
TANAKA, Giselle. Periferia: conceito, práticas e discursos. 2006. 163f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de São Paulo, São Paulo-SP.

Lives Assistidas:
L1 - A moradia e a pandemia, 18/04/2020. Jornalistas Livres. Participantes: Edilson Mineiro e Evaniza Rodrigues. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=lmf-n6LM-fM>. Acesso em: 06/04/20.
L2 - Nexos entre Cidades, Pandemia, Desigualdades e Participações Sociais, 14/07/2020. UNIFESP. Participantes: Raquel Rolnik, Ademar Arthur Chioro dos Reis, Evaniza Rodrigues, Kazuo Nakano. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=XofvQ2h_X_o&t=353s>. Acesso em: 15/07/20.
L3 - O Direito à cidade e os direitos à água e ao saneamento, 12/08/2020. Instituto ONDAS. Participantes: Ermínia Maricato, Carmem Silva, Evaniza Rodrigues. Disponível em: <https://www.facebook.com/ondas.observatorio/videos/694424394795484>. Acesso em: 22/08/20.
L4 - Resistências e estratégias dos Movimentos Sociais em tempos de pandemia, 22/06/2020. UNMP e Creuzamar de Pinho. Participantes: Evaniza Rodrigues, Silvane Magali, Erick Reis e Jonas Borges. Disponível em: <https://www.facebook.com/creuzamardepinho/videos/66200116 1017058>. Acesso em: 28/06/20.

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Sobre este autor
Cita: Veridiana Lopes Ribeiro Fiorotto. "Movimentos de moradia e pandemia: redes de solidariedade, território e Estado " 18 Abr 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/980203/movimentos-de-moradia-e-pandemia-redes-de-solidariedade-territorio-e-estado> ISSN 0719-8906

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