A estranheza das renderizações arquitetônicas “imperfeitamente perfeitas”

Há pouco mais de 50 anos, em 1970 mais especificamente, um roboticista japonês chamado Masahiro Mori cunhava um importante conceito ou hipótese no campo da estética, robótica e computação gráfica: Uncanny Valley—traduzido para o português como Vale da Estranheza. Naquela época, as renderizações arquitetônicas, ou melhor, colagens e fotomontagens, ainda eram feitas com o emprego de métodos analógicos. Uma década depois, o surgimento dos primeiros computadores pessoais e a popularização dos programas CAD impulsionaram uma ampla adoção de métodos digitais para a elaboração de imagens ilustrativas de projetos de arquitetura. Quase quarenta anos depois, as renderizações arquitetônicas evoluíram a tal ponto que é quase impossível distinguir um render de uma fotografia. Resultado direto do desenvolvimento de novas tecnologias, da utilização de softwares cada vez mais sofisticados e computadores cada dia mais rápidos e eficientes, os limites entre representação e realidade parecem se desmanchar no ar. A sutileza desta suspicaz semelhança, e o desconforto que ela provoca, é a nossa porta de entrada para o misterioso Vale da Estranheza de Mori.

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O enigmático termo Uncanny Valley, cunhado por Mori em 1970, surgiu de uma constatação do famoso roboticista japonês: quanto mais parecido a um humano, mais atraente se torna um robô. Quando a tecnologia se aproxima tanto da realidade, onde se torna praticamente impossível dizer o que é e o que não é, testemunhamos um tal desconforto que nos provoca tanto confusão quanto repulsa. Um bom exemplo desse fenômeno é o filme Shrek. Durante as primeiras seções do filme nos cinema, a aparição da personagem da Princesa, Fiona, fazia com que muitas das crianças presentes na sala de projeção desabassem em um choro indecifrável. Analisando as imagens, especialistas sugeriram que tal comportamento se devia à semelhança do personagem fictício com a realidade, compelindo as crianças a um território misterioso: o Vale da Estranheza. O caso da Princesa Fiona foi tão chocante que os programadores tiveram que redesenhar o personagem do filme para que ela parecesse menos real e mais “caricata”. Guardadas as respectivas proporções, o conceito de Uncanny Valley é também aplicável ao mundo da renderização arquitetônica e portanto, é importante sermos consciente disso.

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Gráfico do "Uncanny Valley" criado por Masahiro Mori: À medida que a semelhança humana de um robô [eixo horizontal] aumenta, nossa afinidade com o robô [eixo vertical] também aumenta, mas apenas até certo ponto. Image © Masahiro Mori

Na arquitetura, o vale das estranhezas se revela em imagens “perfeitas demais”. Embora uma pintura realista possa parecer extremamente fiel, não há dúvidas de que se trata de uma pintura e que como toda representação, a pintura não é real. Quando se trata de renderizações, por outro lado, os limites entre representação e realidade são um pouco menos evidentes. Superfícies impecáveis, a vegetação que parece balançar com o vento ou o reflexo da paisagem urbana sobre a superfície de vidro de uma fachada são um caloroso convite ao chamado Vale da Estranheza. Isso porque nosso cérebro fica confuso ao processar uma imagem que é simultaneamente real e irreal, uma ambiguidade que se traduz em inquietação.

Acrescentando a essa ambivalência da realidade “perfeitas demais”, o alto grau de precisão nos detalhes somado à uma “imprecisão fabricada” é algo que contribui ainda mais com esta sensação de estranheza familiar das imagens hiper-realistas digitalmente concebidas. As renderizações foto-realistas criadas por Alexis Christodoulou, são um ótimo exemplo para ilustrar esta hipótese. Entretanto, há duas coisas presentes em suas imagens que as afastam do Vale da Estranheza. A primeira é o fato de que estas imagens representam claramente um lugar fantástico e portanto, irreal. A segunda são as texturas, as quais conservam uma artificialidade que nos permite traçar um limite claro entre a realidade e a ficção.

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Cortesia de Alexis Christodoulou

Finalmente, um principais elementos em um bom render de arquitetura é o que chamamos de “humanização”. O desenvolvimento dos processadores e da complexidade das ferramentas de modelagem resultaram não apenas em um significativo aumento da qualidade dos edifícios renderizados, mas principalmente das imagens “humanas” que os acompanha. O completo domínio sobre a produção de uma realidade não real, ocasionalmente está provocando uma resposta “psicológica”, por assim dizer. Isso é o que poderia explicar a crescente popularidade e preferência de muitos arquitetos por um estilo chamado de pós-digital, ou seja, uma combinação de ferramentas digitais e analógicas—como a colagem de elementos reais (fotografias) sobre imagens digitais (renderes).

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Estilo de renderização pós-digital. Imagem Cortesia de Fala Atelier

Para que uma renderização arquitetônica hiper-realista se afaste do tal do Vale da Estranheza, ela deve ser suficientemente real a ponto de ser indistinguível da própria realidade, algo que ainda hoje é extremamente difícil de se alcançar. Com os consequentes avanços tecnológicos, principalmente nos campos da Realidade Virtual e Aumentada, talvez um dia poderemos superar o limite geográfico do misterioso vale de Mori, mas enquanto isso, talvez seja mais fácil pesar a mão na estilização do que no foto-realismo, melhor aceitar nossas limitações que pretender ser perfeito em algo que ainda não somos bons o suficiente.

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Cortesia de Lumion

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Sobre este autor
Cita: Maganga, Matthew. "A estranheza das renderizações arquitetônicas “imperfeitamente perfeitas”" [Architectural Rendering and the Slippery Slope of the Uncanny Valley] 08 Mai 2021. ArchDaily Brasil. (Trad. Libardoni, Vinicius) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/960192/a-estranheza-das-renderizacoes-arquitetonicas-imperfeitamente-perfeitas> ISSN 0719-8906

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