Um novo modelo urbano para outro projeto de sociedade: uma entrevista com Tainá de Paula

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Tainá de Paula. Imagem: Divulgação

Abordar o contexto de ampliação das diferenças políticas e crescentes desigualdades econômicas. Um novo contrato espacial. Apreender como viveremos juntos. As indagações trazidas por Hashim Sarkis, curador da próxima Bienal de Veneza, podem levantar importantes questões sobre como a arquitetura atravessa e concretiza os conflitos sociopolíticos. Para compreender um ponto de vista descentralizado e que aponta para outras possibilidades além das impostas por um pensamento normativo, entrevistamos Tainá de Paula, arquiteta e mobilizadora comunitária em áreas periféricas.

Tainá de Paula é uma ativista das lutas urbanas. Atuou em diversos projetos de urbanização e habitação popular, realizando assistência técnica para movimentos de luta pela moradia. Junto de sua formação acadêmica, ela divide conosco a sabedoria que aprendeu através de suas vivências e pesquisas próprias, que conformam uma perspectiva fundamental para compreender o pensamento arquitetônico para além do hegemônico. No âmbito das questões levantadas pela 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza, realizamos uma entrevista com a arquiteta a fim de ampliar sua voz e elucidar novos fundamentos para o pensamento arquitetônico.

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Rio de Janeiro, Brasil. Fotografia de Julianna Kaiser via Unsplash

ArchDaily: Me parece que antes de questionar como viveremos juntos, a primeira pergunta deveria ser: a cidade é criada para todos? 

Tainá de Paula: Não, a cidade não é criada para todos e se isso é percebido nos grande centros do mundo capitalista, isso é ainda mais claro em se tratando de cidades pós-coloniais como é o caso das cidades brasileiras. A qualidade de vida dos centros urbanos é distribuída a partir da lógica de quem pode pagar por recursos e privilégios urbanos, garantindo assim a desigualdade social que temos hoje. Construir agendas urbanas ao longo do século XX e XXI, passando pelas principais cartas e tratados internacionais, não refletiu na destruição ou diminuição dos conflitos urbanos ou desigualdade urbana e social, o que nos leva a admitir, enquanto pensadores da questão urbana, que o problema não está na inexistência de arcabouço teórico-jurídico ou até mesmo conceitual.

O que nos falta é objetivamente o entendimento de que o sistema atual não é capaz de permitir as transformações necessárias para que uma nova ética urbano-ambiental possa ser estabelecida em nossas cidades.

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Rio de Janeiro, Brasil. Fotografia de Chensiyuan / CC BY-SA (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0) via Wikimedia Commons

ArchDaily: Como a cidade pode se tornar mais inclusiva? Qual o papel da arquitetura e do urbanismo nisso?

Tainá de Paula: Bem, infelizmente a arquitetura e o urbanismo refletem o seu tempo, com suas utopias e delírios (risos). Bem, se avaliarmos, tanto o mercado de luxo, com seus empreendimentos fechados à cidade e com uma arquitetura cada vez mais esvaziada de sentido estético, quanto o mercado informal da construção, que reflete cada vez mais o escoamento de materiais de construção civil equivocados que são replicados à exaustão como lógica da produção excedente - bacias sanitárias que desperdiçam água, tubulação de pvc inadequada às altas temperaturas brasileiras, concreto armado com alta inadequação térmica às cidades tropicais, apenas para dar um exemplo -, a principal forma de entendimento da antropologia urbana brasileira é, portanto, observar os extremos urbanos e a arquitetura que é reproduzida no contexto das cidades.

Para romper essa métrica, é fundamental romper esses marcadores e estabelecer arquiteturas e diálogos da vanguarda.

O projeto de vanguarda da arquitetura e urbanismo brasileiro está hoje muito concentrado no ambiente acadêmico e isso é nocivo para o ambiente de reflexão entre projetistas e tomadores de decisão.

Escritórios de arquitetura, gestões públicas e as entidades de classe devem se debruçar, principalmente no contexto pós-pandêmico, nas reflexões de um novo parâmetro urbano que reflita as desigualdades estruturantes, que permita revermos modelos consolidados no século XX (cultura modernista e formalista de pensar a cidade, por exemplo) e traga experiências locais e territoriais para essa construção.

Um nova relação com reservas naturais, as mudanças climáticas, pensar outras relações sociais que não se pautem na subalternidade de pobres e negros, e soluções para a soberania alimentar e energética são os grandes desafios urbanos do século XXI.

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Assentamento Kya Sands em Joanesburgo, África do Sul. Image © Johnny Miller Photography

ArchDaily: Parafraseando Rita Lee, você parece uma pessoa que também leva a sério a brincadeira. Como você enxerga os lugares de prazer que a cidade propõe e a importância deles para pensar a convivência urbana? 

Tainá de Paula: Eu tenho a gargalhada como instrumento de comunicação e entendo que as cidades precisam ser espaços de encontro e de alegria mesmo (risos). O espaço público no Brasil, de forma curiosa, sempre pautou as relações em todas as classes sociais. Desde o Passeio Público no modelo romântico inglês, até a praia e as capoeiras públicas do Rio de Janeiro e Salvador, o Brasil, seja pelo clima, seja pelo interesse em ter vida pública, seja pela dificuldades estruturantes que colocam boa parte dos moradores de favelas no espaço da rua por conta da baixa qualidade da moradia, fazem necessário um aumento de investimento no espaço público urbano e um retorno à práticas ancestrais dos brasileiros, como uma profunda reflexão sobre a diminuição dos quintais, da ausência de reflexão de arborização urbana nas nossas periferias e a eliminação dos roçados caseiros com leguminosas, frutíferas e ervas medicinais.

O que quero dizer é que o espaço público, além de ser uma potência na discussão de uma outra sociabilidade, arte e interação, é também um caminho de retomada de um outro projeto de sociedade.

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Agência Brasil Fotografias / CC BY (https://creativecommons.org/licenses/by/2.0) via Wikimedia Commons

ArchDaily: A questão colocada pela Bienal de Veneza – Como viveremos juntos? –  aparenta buscar uma resposta que incida numa certa harmonia dentro da sociedade e na forma que habitamos a cidade. No entanto, sabemos que o espaço público é por natureza um lugar de conflito e de encontro, que pode variar o seu grau de ocupação e uso de acordo com raça, classe e gênero. Portanto, você enxerga esta pergunta como utópica ou possível? 

Tainá de Paula: É uma pergunta muito pertinente, tendo em vista que o que está posto é o projeto de subalternização de determinados segmentos sociais. Se juntarmos minorias e grupos subjugados, teremos uma cidade que reflete apenas uma pequeníssima parcela da população, em se tratando de cidades pós-coloniais, por exemplo. Entendo como pertinente dois movimentos, portanto: o que as elites entendem como projeto de pós-pandemia e se acham possível perpetuar o modelo de cidade que replica a desigualdade, e o movimento de organização e contracultura dos sujeitos subjugados.

Na nova quadra da história não haverá como manter o diálogo entre centro e periferia, entendendo que os atores do “centro” provocaram colapso e desigualdade sistêmica. Insisto, como intelectual do novo modelo urbano, que tenhamos um profundo investimento na periferia e nos protagonistas periferizados, tanto do ponto de vista da territorialidade, como do ponto de vista da construção social.

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Cidade do México, México. Image © Johnny Miller Photography

ArchDaily: A disputa de narrativas na cidade está sendo cada vez mais tensionada, como exemplo temos o caso de monumentos que priorizam uma história hegemônica branca e masculina sendo revisados em diversos países ou até mesmo questões de minorias políticas se tornado pautas nas mais diversas agendas. Além de serem atos que colaboram com a criação de uma sociedade mais democrática, como eles trazem novos fundamentos para pensar a forma como viveremos juntos?  

Tainá de Paula: Bem, falei muito sobre isso nos últimos tempos e estou preparando inclusive um projeto de pesquisa e reparação racial baseado no conjunto escultórico de cidades coloniais, a começar pelo Rio de Janeiro. Disputar o simbólico e as subjetividades urbanas é fundamental para os processos de recondução e mudança de polo social.

A violência profunda contida no fato de não termos elementos escultóricos feitos por negros (o apagamento do artista negro também é um problema!) e a representação de indivíduos negros nas cidades, refletem o racismo replicado e postergado para as futuras sociedades e gerações, e é violência branca revelada nas cidades.

A derrubada das estátuas faz portanto dois movimentos: rediscute o que é patrimônio e o contextualiza, provoca a compreensão sobre os sujeitos que orbitam ao redor do valor patrimonial e os valores sociais dos diversos tempos históricos e obriga a sociedade a discutir como gostará de ser lembrada.

Hoje, posso afirmar como especialista em Patrimônio que as cidades serão lembradas como os cenários da sociedade que matou George Floyd e Miguel em Recife. É um retrato que não gostaremos de lembrar, mas precisaremos para jamais reproduzir.

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Projeção do filme Experimentando o Vermelho em Dilúvio, da artista Musa Michelle Mattiuzzi, que questiona a Estátua de Zumbi dos Palmares, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Realizada na mostra Vozes Contra o Racismo em São Paulo. © Coletivo Coletores

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Este artigo é parte do Tópico do mês do ArchDaily: Como viveremos juntos. Todo mês, exploramos um tópico através de artigos, entrevistas, notícias e obras. Saiba mais sobre nossos tópicos aqui. E como sempre, no ArchDaily, valorizamos as contribuições de nossos leitores. Se você deseja enviar um artigo ou um trabalho, entre em contato conosco.

Sobre este autor
Cita: Victor Delaqua. "Um novo modelo urbano para outro projeto de sociedade: uma entrevista com Tainá de Paula" 05 Set 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/946623/um-novo-modelo-urbano-para-outro-projeto-de-sociedade-uma-entrevista-com-taina-de-paula> ISSN 0719-8906

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