Preservar ou demolir: duas caras de uma mesma moeda

Desde o final do século XIX até os dias de hoje, a cidade de Nova Iorque se consolidou como o principal epicentro da construção de edifícios em altura ao redor do todo. Muitas destas estruturas, concebidas e projetadas pelos mais importantes personagens da história recente da arquitetura, rapidamente adquiriram o status de ícone, influenciando para sempre a forma como concebemos nossos edifícios e cidades. Ainda assim, muitos arranha-céus históricos da cidade de Nova Iorque acabaram sendo demolidos, dando lugar a estruturas cada vez mais altas e tecnológicas. Neste contexto, novidade e obsolescência parecem duas faces de uma mesma moeda. As recentes disputas e impasses ao redor de algumas das mais icônicas estruturas em altura já construídas na cidade de Nova Iorque, revela o quão rapidamente as coisas podem mudar de figura.

Um ótimo exemplo deste recente fenômeno é o 270 Park Avenue, projetado pelo SOM e inaugurado em 1961. Ada Louise Huxtable, uma das mais influentes críticas de arquitetura do século XX, disse certa vez que o imponente arranha-céu no centro de Manhattan era uma das mais significativas contribuições da cidade para o que ela chamou de uma “dramática revolução na história da arquitetura”. Num momento decisivo da luta pela emancipação da mulher, o 270 Park Avenue foi o primeiro edifício empresarial do século XX a ser concluído nos Estados Unidos sob responsabilidade de uma arquiteta: Natalie de Bois. Inaugurado no início dos anos 1960 como Union Carbide Building, o 270 Park Avenue é considerado junto ao Seagram Builing de Mies Van der Rohe um dos principais ícones modernistas de toda uma geração.

The original lobby of the Union Carbide Building. Imagem © Ezra Stoller

No início de 2018, a intenção da proprietária J.P. Morgan Chase em demolir o edifício sede de sua empresa na Park Avenue número 270 veio finalmente à público. A instituição líder mundial em serviços financeiros anunciava publicamente que o famoso arranha-céu de 215 metros seria demolido para dar lugar a uma novo edifício projetado pela Foster + Partners. Caso esta tragédia se consolidasse, o antigo Union Carbide se tornaria conhecido como o edifício mais alto do mundo a ser demolido, assim como o primeiro arranha-céu de mais de 200 metros de altura a ser desmantelado piso por piso. A notícia comoveu não apenas a comunidade de arquitetos, mas também toda a população da cidade de Nova Iorque. Um apelo assinado por algumas das mais proeminentes figuras no cenário da arquitetura contemporânea foi enviado diretamente ao Conselho de Preservação do Patrimônio Histórico da cidade de Nova Iorque. Acontece que, o pedido de tombamento do edifício já havia sido enviado ao órgão municipal ainda em 2013, o qual foi abertamente negado pela instituição responsável pela salvaguarda do patrimônio construído da maior cidade dos Estados Unidos e portanto, não havia muito o que poderia ser feito para mudar o trágico destino do 270 Park Avenue, o qual, muito provavelmente, começará a ser demolido já no inicio do ano que vem.

Não muito longe dali, na Madison Avenue número 550, uma das obras primas de Philip Johnson e um dos mais notáveis expoentes da arquitetura pós-moderna nos Estados Unidos, vive uma situação muito parecida. Em 2017, o Snøhetta foi contratado para desenvolver um amplo projeto de reforma e revitalização de boa parte da estrutura do icônico edifício da Madison Avenue. Quando as primeiras imagens foram publicadas, revelando uma intervenção avassaladora que transformaria completamente o projeto original de Philip Johnson, a comunidade especializada entrou em choque. Os nova-iorquinos se sentiram atacados pessoalmente e foram as ruas para manifestar a sua indignação e insatisfação com o projeto apresentado pelo escritório norueguês. O próprio Robert Stern apareceu em público com uma maquete do edifício em mãos em defesa daquele que é conhecido como o primeiro arranha-céu pós-moderno do mundo. E desta vez parece que o esforço valeu a pena. As fachadas do edifício foram tombadas e protegidas pelo órgão responsável pela preservação do patrimônio arquitetônico da cidade de Nova Iorque e o Snøhetta voltou à prancheta para revisar a sua proposta. Mais recentemente, o novo projeto foi finalmente aprovado pelas autoridades da cidade de Nova Iorque além de ser bem recebido pelos moradores que agora aguardam ansiosamente para ver a nova roupagem de um de seus mais queridos edifícios.

Proposed interior lobby rendering. Imagem Cortesia de Snohetta

Cada um à sua maneira, o 270 Park Avenue e o 550 Madison Avenue representam algo a mais do que um mero número em uma movimentada avenida da cidade de Nova Iorque. Estas estruturas icônicas carregam consigo um valor imaterial inestimável, tanto como notáveis exemplos de um determinado período da história da arquitetura quanto para a vida das pessoas que por ali passam todos os dias. A questão é: o que exatamente diferencia tanto estes dois edifícios a ponto de um ser cuidadosamente preservado e outro, deliberadamente “tombado”. E o que estes impasses revelam sobre o significado e a importância material e imaterial da arquitetura nos dias de hoje?

A arquitetura talvez seja a mais duradoura forma de expressão cultural já produzida pelo homem. Nossas cidades, por sua vez, operam como registros das mudanças ideológicas as quais a nossa sociedade atravessam ao longo do tempo. Como materialidade, a arquitetura fala por si só. Seus elementos físicos e componentes estruturais, soluções técnicas e tecnológicas, cada um de seus ingredientes revelam algo sobre o espirito de seu tempo. Edifícios projetados por nossos antepassados e que ainda habitam as nossas cidades, nos fazem questionar todos os dias nossos próprios critérios à respeito de quais estruturas devemos preservar e quais não. O que é que faz de um edifício digno de perdurar no tempo, em um tempo onde tudo parece envelhecer tão rapidamente?

270 Park Avenue Exterior. Imagem © Flickr User Reading Tom Licensed Under CC BY 2.0t

Enquanto isso, pouco tem sido feito para evitar a demolição precoce de muitos edifícios exemplares que um dia habitaram as nossas cidades. Arquitetos, em sua maioria, não são conhecidos pela sua capacidade de economizar recursos, minimizar desperdícios, construir menos e preservar mais. Talvez seja hora de nós, arquitetos e arquitetas, assumirmos um outro discurso, de comerciarmos a projetar para o futuro, não necessariamente um futuro perene e duradouro, mas um amanhã onde nossas estruturas possam continuar existindo, adaptando-se e transformando-se ao longo do tempo.

Neste momento, a única maneira efetiva de garantirmos que valiosas estruturas do passado sejam preservadas da fúria gananciosa de alguns poucos empreendedores, é encarar com seriedade o árduo processo de tombamento através da sua inclusão na lista de monumentos protegidos pelos institutos de patrimônio histórico locais. E como vimos anteriormente através dos exemplos do 270 Park Avenue e 550 Madison Avenue, esse caminho não é nada fácil e tampouco honesto — a decisão não depende só de nós assim como este processo não é tão transparente quanto gostaríamos que fosse. Quem disse que apenas estruturas fascinantes e construídas por arquitetos famosos devem ser preservas? Que obras banais, erguidas pelas mãos imprecisas de alguém que nunca frequentou uma sala de aula não possa perdurar, sendo ressignificada ao longo do tempo segundo as necessidades especificas de cada momento. De onde vem o valor imaterial de um edifício? O que faz de uma obra de arquitetura mais importante que outra? Estas perguntas permanecem sem respostas, mas é perguntando-as hoje que encontraremos melhores respostas no dia de amanhã.

Protesters outside of 550 Madison (2017). Imagem Cortesia de Nathan Eddy
Sobre este autor
Cita: Overstreet, Kaley. "Preservar ou demolir: duas caras de uma mesma moeda" [A Tale of Two Buildings: The Argument Behind Preservation and Reuse] 13 Ago 2020. ArchDaily Brasil. (Trad. Libardoni, Vinicius) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/945164/preservar-ou-demolir-duas-caras-de-uma-mesma-moeda> ISSN 0719-8906

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