O que um sachê de fermento biológico tem a dizer sobre o futuro das nossas cidades

Desde o início do surto de coronavírus no Chile, o consumo de pão no país alcançou níveis jamais registrados anteriormente. Isso que o Chile é o segundo maior consumidor de pão per capita do mundo. Como resposta às medidas de distanciamento social, os chilenos correram para os supermercados esgotando os estoques de fermento biológico na capital Santiago em poucos dias, levando-nos a acreditar que ao que parece, a maioria da população decidiu estocar ingredientes para a fabricação caseira de pães como uma medida para lidar com as incertezas trazidas pela pandemia. Todo mundo decidiu botar a mão na massa, e lá em casa não foi diferente.

Quando entregaram as minhas compras hoje pela manhã, decidi dar uma lida nas embalagens do produtos e sachês de fermento biológico que havia encomendado para dar início a minha fabricação caseira de pães. Para a minha surpresa, a levedura é um produto importado, fabricado por uma empresa qualquer com sede em algum lugar distante do outro lado da Cordilheira dos Andes. Os hambúrgueres, por sua vez, antes de chegar até a minha geladeira, também fizeram uma longa viagem do sul do país até a cidade de Santiago, e pelo que se pode ver nas embalagens, alguns deles vão continuar viajando até a Colômbia ou fazendo o caminho inverso dos pacotinhos de fermento em direção a Argentina.

Embora atualmente temas como a globalização, as cadeias produtivas e de abastecimento de produtos de necessidade básica tenham sido ofuscados pela urgente necessidade de discutir questões relativas à pandemia de COVID-19 – e os desafios que ela nos propõe –, fica cada dia mais evidente que tais questões estão profundamente relacionadas.

A jornada de um sachê de fermento

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© Marcin Jozwiak / Shutterstock. ImageAerial view of a distribution center

O sachêzinho de 125 gramas de fermento que tenho em mãos foi produzido em El Manantial, uma zona industrial nos arredores da cidade de Tucumán, no norte da Argentina. A fábrica é de propriedade da Calsa, uma empresa cuja sede fica a 1.257 km de El Manantial: em Lanús, na região metropolitana de Buenos Aires. O ingrediente mágico do pão viaja até o Chile de caminhão, atravessando a cadeia de montanhas que separa os dois países em direção à cidade de Valdivia, percorrendo nada mais nada menos que 2.151 quilômetros até chegar a sede da distribuidora chilena Levaduras Collico. Entretanto, este não é o seu destino final. O fermento, que chega ao Chile a granel, é embalado por uma terceira empresa, a Plaspak, com sede em Buin, 816 km ao norte da sede da importadora chilena.

Ainda assim, os sachêzinhos de fermento que eu comprei não foram vendidos ao supermercado perto de minha casa nem pela Calsa nem pela Plaspak. Esta é uma tarefa delegada à Collico, empresa com sede no pólo industrial de ENEA nos arredores da capital Santiago - 37 quilômetros ao norte de Buin.

Partindo do pólo industrial de Santiago, os pacotinhos de levedura seguem viajem agora rumo as prateleiras do hipermercado aonde eu faço as minhas compras. O Jumbo pertence a uma cadeia de supermercados de propriedade da Cencosud, uma holding chilena que opera na Argentina, Colômbia, Brasil e Peru. A Distribuidora de Leveduras Collico, aquela que recebeu o fermento da Argentina, costuma terceirizar a distribuição de seus produtos, operando em parceria com uma empresa subcontratada, a qual finalmente é paga para levar os sachêzinhos até o Hipermercado aqui perto de onde eu moro. Geralmente eu mesmo me encarregaria do transporte do pacotinho de fermento do supermercado até a minha casa, mas nas atuais condições este processo passou a incluir mais algumas pessoas – esta etapa é o que podemos chamar de “serviço de última milha”, ou seja, aquela última corridinha de bicicleta que nos habituamos a ver nas ruas de nossas cidades ao longo dos últimos anos.

Como conseqüência direta do lockdown imposto por governos do mundo todo como medida de combate à disseminação do surto de coronavírus, foram registradas quedas significativas dos níveis de poluição atmosférica nos quatro cantos do mundo. Animais selvagens estão sendo flagrados constantemente pelas ruas de nossas cidades, enquanto as infra-estruturas urbanas, principalmente ruas e estacionamentos estão amplamente subutilizados segundo os padrões da antiga normalidade. Neste sentido, parece até que a semana tem sete domingos. No auge das restrições de mobilidade urbana, pelas ruas das grandes cidades se viam apenas trabalhadores informais, correndo pra cima e pra baixo com suas bicicletas e suas mochilas nas costas. Uber Eats, Cornershop, Instacart e afins. Outra mudança que pudemos observar, foi que empresas, restaurantes, lojas de conveniência e outros negócios ,decidiram estabelecer seus próprios sistemas de entrega.

As mais graves crises que a humanidade já enfrentou também foram responsáveis pelas mais profundas mudanças em nosso modo de vida. Momentos difíceis geralmente são seguidos por profundas transformações nos processos de produção, assim como também funcionam como um catalizador das principais tendências. Inteligência artificial, bitcoins, a ascensão de uma nova extrema direita, mudanças climáticas e a impressão 3D são algumas destas novidades – já não tão novas assim. Acredita-se que tudo isso vá mudar ainda mais rapidamente daqui pra frente. Enquanto isso, esta nova normalidade nos permitiu por a prova uma série de coisas, como o teletrabalho em massa e um comércio digital ainda mais pervasivo - uma tendência que tende a aumentar exponencialmente nos próximos anos. Tenhamos como exemplo um país de renda média, como o Chile, onde atualmente há mais smartphones do que habitantes. Embora em 2018 as transações realizadas de forma online representem apenas 1% do total de vendas dos supermercados no país naquele ano, um ano depois a mesma pesquisa estimou que 6 em cada 10 consumidores chilenos utilizavam o sistema online para fazer suas compras pelo menos uma vez ao mês.

Mas voltemos ao que interessa: o pacotinho de fermento.

Uma rede de periferias

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© Magnifier / Shutterstock. ImageContainer ships in a cargo area

Observando o trajeto do pacotinho de fermento da fábrica ao pão, descobrimos uma rede de infra-estruturas periféricas. Tanto a produção, quanto o empacotamento e a distribuição partem de empresas localizadas na periferia de quatro grandes cidades. E mais do que isso, algumas etapas desse fluxo de mercadorias opera em uma série de “segunda periferia”, pois tem lugar em cidades cujo desenvolvimento econômico encontra-se subordinado a um centro gravitacional de maior escala – enquanto Tucumán se versa à Buenos Aires, Valdivia se volta à Santiago. Esta segunda camada das redes periféricas opera de uma uma maneira muito silenciosa, quase invisível porém eficiente. A maioria destas empresas são completamente desconhecidas, as quais empregam milhões de pessoas tão anônimas quanto elas mesmas. Isso me faz lembrar de uma antiga história, quando um burocrata russo, logo depois do colapso da União Soviética, viajou ao oeste e perguntou ao economista Paul Seabright quem era o responsável pela distribuição de pães na cidade de Londres. O burocrata ficou surpreso com a resposta de Seabright: ninguém. A questão é: qual a relevância desta pergunta? Aparentemente nenhuma.

Acompanhando a tendência ditada pelo mercado, o Jumbo – o hipermercado aonde eu compro meu fermento – lançou seu próprio aplicativo de celular em abril de 2019, apenas sete meses depois da multinacional líder no setor ter feito o mesmo. O Walmart, que chegou ao Chile em 2009 depois de adquirir os direitos da Lider, a principal concorrente do Jumbo – anunciou no ano passo que também adquiria os direitos da start-up chilena de entregas à domicílio Cornershop. Naquela época, o então CEO da Commerce Groceries Cencosud (proprietária da cadeira de hipermercados a qual pertence o Jumbo), Hans Hanckes, declarou em uma entrevista:

Os usuários do nosso aplicativo estão comprando diretamente da Jumbo. Não há nenhum terceiro envolvido nessa operação. Desta forma, as pessoas que escolhem fazer as suas compras no Jumbo, sabem que o serviço de entrega prestado é também administrado pela mesma empresa.

De forma muito sagaz, Hanckes decidiu chamar a atenção dos seus clientes convidando-os a refletir sobre o impacto de suas escolhas como consumidor. A sua mensagem não podia ser mais clara. Ao utilizar o aplicativo, o freguês está comprando de uma só empresa, ou utilizando um serviço devidamente contratado pela anterior, que deste modo, torna visível parte destas redes periféricas invisíveis assim como dá nome àquelas pessoas que operam anonimamente servindo a seus concorrentes.

Aplicativos de entrega à domicílio operam sob um modelo muito similar ao da Uber: quem compra o produto e quem o entrega, não são contratados por nenhuma das partes, nem pelo aplicativo tampouco pelo supermercado. Estas pessoas não possuem contrato de trabalho nem vínculo empregatício, isso significa que elas também não contam com direitos trabalhistas, férias ou décimo terceiro, quem diria vale transporte, seguro de saúde ou seguro desemprego. Outro item que falta nesta conta é a certeza sobre o futuro. Esta precarização, ou sub-emprego, é resultado de uma junção da fome com a vontade de comer, um aplicativo que se alimenta do consumismo generalizado para explorar as necessidades urgentes de muitos trabalhadores desesperados por um pouco de dinheiro. Estes “aplicativos de fome”, cobram uma determinada taxa para cada produto oferecido – algo que varia entre 8% e 16%, como é o caso do Cornershop. Os entregadores por sua vez recebem uma comissão fixa definida pelo volume dos pedidos e o peso que eles carregam nas costas, ponderados pela quantidade total de pedidos (somente os recebidos pelo consumidor final é claro) e a distância entre o ponto de coleta e entrega. Os precaristas, como sugere Guy Standing, não são pessoas anônimas porque escondem seus rostos atrás de máscaras, mas porque as empresas que as sub-contratam desejam que elas desapareçam, e nós, consumidores, apenas nos comunicamos com um aplicativo – que ainda não tem um rosto, mas que definitivamente em breve terá. A questão é que sabemos que o “aplicativo” trará o seu pedido imediatamente, em troca de seu nome, seu número de telefone e também o seu endereço. Talvez ele até saiba mais sobre nós do que nós mesmos.

O serviço de entregas praticado pela Jumbo, por outro lado, utiliza o sistema da Beetrack, uma empresa chilena que opera através de um software de distribuição capaz de rastrear todos os seus pedidos instantaneamente, com uma capacidade de mais de 12.000 remessas por hora e mais de 400 clientes ao redor do mundo. A Beetrack é capaz de rastrear todas as suas entregas, compartilhar dados em tempo real com os usuários, informando seus clientes e enviando notificações sobre o status dos pedidos além de otimizar a força de trabalho, reduzindo a carga no sistema e o que é melhor, facilitando a vida dos entregadores. Algo muito parecido com a tecnologia utilizada pelo Google Maps ou pelo Waze quando estamos dirigindo. Uma tecnologia que hoje faz parte da nossa rotina a muito pouco tempo, mas que parece existir a décadas.

Uma crise global simultânea e em câmera lenta

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A cyclist on Paris during the period of lockdown due to the COVID-19 pandemic. Image © Frederic Legrand - COMEO

Obviamente, para aqueles que podem trabalhar de casa – incluso aqueles que já o fazia antes – , a quarentena parece ser algo relativamente simples. Outro setores, no entanto, seguiram operando como se nada tivesse acontecido, mas isso é algo difícil de enxergar desde o conforto do nosso lar – ou é exatamente por isso que somos incapazes de ver. A invisibilidade destas pessoas, só virá a tona quando estivermos dispostos a encarar de frente as consequências das nossas escolhas como consumidor consciente.

É neste contexto que movimentos como o comércio justo, o veganismo ou slow food se fortalecem, uma tendência que cada vez mais aponta em direção a um consumo consciente, principalmente no que se refere à cadeia de produção e distribuição daquilo que a gente come. Essa abordagem tem se destacado como uma das principais formas de driblar o sistema, minimizando a pressão da produção mecânica e industrial de alimentos sobre a biodiversidade do planeta. Isso também significa comprar dos pequenos produtores locais, os quais não tem a menor chance na negociação com as grandes corporações. Conscientizar-se sobre a potencial extinção das culturas e tradições alimentares locais, porque as mesmas não se encaixam nas exigências da indústria alimentícia, é outra forma de promover a resiliência na micro escala. O antropólogo francês Claude Fischler foi que disse que a industrialização dos meios de produção do campo cunhou um novo conceito: a gastro-anomia. Isso significa dizer que, se não soubermos de onde vem aquilo que estamos comendo, tampouco saberemos quem nós somos e de onde viemos – ou até para onde estamos indo. Essa questão de cunho existencialista vem ao encontro daquilo que vínhamos discutindo a pouco: na atual lógica de mercado, as empresas sabem muito bem aquilo que estão vendendo, mas quem compra, não faz a menor idéia daquilo que está adquirindo. As gigantes da tecnologia, como o Facebook e a Google, faturam bilhões todos os anos apenas reproduzindo esta lógica nefasta.

A pandemia da COVID-19 se desdobrou em uma crise global, simultânea e em câmera lenta. Para a comunidade de arquitetos e urbanistas, a crise sanitária mundial tornou ainda mais evidente a urgente necessidade por mudanças radicais tanto na prática profissional quanto na disciplina da arquitetura. Superado o pior momento, é hora de começarmos a refletir sobre o futuro. Mas antes disso, talvez, devêssemos primeiramente observar mais atentamente a atual condição das nossas cidades, e o que aconteceu com elas depois da chegada da Amazon, Uber, Cornershop, WeChat, Tinder, Grindr, Instagram, Facebook, Twitter, Youtube, Netflix, Spotify e a Beetrack também. Não há nenhuma certeza em meio a tantas incertezas. Não fazemos ideia do que está por vir e é muito difícil afirmar com convicção que desta crise emergirá um novo ser humano, mais humano e menos egoísta, assim como os arquitetos serão capazes de projetar cidades melhores, também mais equitativas e sustentáveis. Talvez este período de confinamento tenha nos deixado um pouco mais esperançosos para com o futuro da humanidade, mais isso não quer dizer que o que será, será melhor do que antes.

Há algumas semanas, Michael Spence, galardoado Prêmio Nobel de Ciências Econômicas em 2001, quando questionado sobre as potenciais mudanças no cenário econômico mundial depois do COVID-19, disse que as mais prováveis consequências são uma “maior aversão ao risco, uma guinada mais forte em direção ao desenvolvimento de novas tecnologias, e uma maior diversidade nas cadeias de abastecimento de produtos como uma consequência direta da evidente dependência de alguns países em relação à outros.” Então, a pergunta que me vem à mente é: onde será produzido o sachêzinho de fermento que eu compro para fazer meu pão daqui a dez anos?

É evidente que o impacto desta crise sanitária na economia mundial e consequentemente, em nosso modus vivendis, terá uma influência muito maior para o futuro de nossas cidades do que a própria arquitetura em si. Cidades informais continuarão existindo não importa como, quando ou onde; o tijolo continuará sendo utilizado para levantar paredes, o concreto também; assim como as tecnologias de última geração e os projetos paramétricos de Zaha Hadid. Enquanto este futuro de que tanto se fala não chega, parece que estamos atascados em um presente eterno, confinados entre quatro paredes e com uma ansiedade que nos consome a medida que este futuro parece cada dia mais distante. Talvez não tenhamos nos dado conta – compulsivamente preocupados com outras coisas –, mas cidades são como organismos vivos e em constante processo de transformação – e tem sido assim desde que o mundo é mundo, e provavelmente continuará sendo depois que esta tempestade passar.

Este artigo faz parte de uma pesquisa em andamento sobre as consequências da pandemia de COVID-19 no futuro da arquitetura e das nossas cidades realizada pelo autor deste ensaio. Fique atento as próximas novidades que virão por ai .

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Sobre este autor
Cita: Valencia, Nicolás. "O que um sachê de fermento biológico tem a dizer sobre o futuro das nossas cidades" [What a Yeast Sachet Can Tell Us About the Cities of the Future] 13 Mai 2020. ArchDaily Brasil. (Trad. Libardoni, Vinicius) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/939352/o-que-um-sache-de-fermento-biologico-tem-a-dizer-sobre-o-futuro-das-nossas-cidades> ISSN 0719-8906

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