Paisagens Privadas

A constituição formal dos sistemas de espaços livres das cidades brasileiras, qualificados ou não, tem contribuição significativa dos empreendimentos privados, uma vez que o planejamento e desenho urbano por parte do poder público têm sido exceções.

A produção de novas áreas urbanizadas nas cidades brasileiras nas últimas décadas do século XX passou a se caracterizar pela popularização de empreendimentos com extensas áreas muradas de acesso restrito. Nestes, os espaços livres - que deveriam ter acesso irrestrito - são apropriados para usos privados em contrariedade à Lei Federal 6766/1979 (também conhecida como Lei Lehmann), que estabelece os principais parâmetros para o parcelamento do solo no país.

Tal processo leva a uma situação na qual, segundo Macedo et al. em seu mais recente livro (2018, p.24): “(...) é praticamente impossível, dentro das condições gerais da urbanização nacional, estabelecer a priori como, quando e onde será constituído um espaço livre, já que a reserva de locais para parques, praças, etc. depende das ações implementadas pela iniciativa privada.”

Diversas têm sido as tentativas de legitimar o fechamento de loteamentos, podendo se destacar o caso de vários municípios brasileiros que têm criado mecanismos que buscam justificá-lo, todos em contrariedade aos parâmetros estabelecidos pela Lei Lehmann. Em 2012, Paula Santoro, por meio de sua pesquisa de doutorado, constatou que, só no Estado de São Paulo, 28 dentre 100 municípios pesquisados continham regramentos que possibilitavam aprovação de novos loteamentos com fechamentos, sendo que 19 deles permitiam também a regularização de fechamentos já existentes, mesmo estando ambos os procedimentos em desconformidade com a lei federal de parcelamento do solo vigente na época.

Após quase vinte anos de discussões a respeito da legalidade da viabilização de tais mecanismos, a promulgação da Lei Federal 13.465/2017 parece representar uma significativa vitória das pressões realizadas há décadas para a legitimação de práticas correntes do mercado imobiliário, podendo acentuar relevantes prejuízos aos interesses da coletividade no que tange à estruturação de sistemas de espaços livres efetivamente públicos com relação à apropriação.

Loteamento em Vargem Grande Paulista. Image Cortesia de Leonardo Loyolla Coelho

Antecedentes: 20 anos preparando o terreno

Desde os anos 2000 busca-se legitimar o fechamento de loteamentos por meio de instrumentos legais de âmbito federal, algo sintetizado pelo Projeto de Lei (PL) 3057/2000, no qual se buscava introduzir a figura do “condomínio urbanístico”.

Outras tentativas mais recentes de redesenho da Lei Lehmann apareceram a partir de 2014. No Projeto de Lei Complementar (PLC) 109/2014 propunha-se permitir, mediante a concessão aos titulares das unidades, o controle de acesso e a gestão sobre as áreas e equipamentos públicos nos loteamentos.

O Projeto de Lei do Senado (PLS) 208/2015 criava a figura do condomínio edilício de lotes urbanos, buscando estabelecer que em um imóvel pudesse haver lotes de propriedade exclusiva e utilização independente.

Mas a gênese dos conceitos de condomínios de lotes e loteamentos de acesso controlado presentes na Lei 13.465/2017 se encontra no substitutivo da Medida Provisória (MP) 759/2016, cujo processo de aprovação apresentou diversas polêmicas e críticas, dentre as quais se destacam a falta de participação popular, a expiração do prazo final para a sua votação no Congresso Nacional e a violação de diversos direitos e funções sociais, como o da propriedade pública.

Características dos novos mecanismos

Na parte relacionada aos processos de parcelamento do solo, a lei 13.465/2017 criou duas novas figuras urbanísticas: o condomínio de lotes e o loteamento de acesso controlado.

A primeira se refere a empreendimentos nos quais as unidades imobiliárias autônomas são lotes e não casas ou apartamentos, passando a “poder haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva” (BRASIL, 2017)

Do ponto de vista dos encargos da iniciativa privada, tal figura considera que, como nos condomínios convencionais, as áreas coletivas serão de propriedade privada e constituirão fração ideal, sendo que a despesas de manutenção das áreas comuns dividida coletivamente, por força de lei.

O loteamento de acesso controlado introduz como novidade a legitimação de fechamentos para a área parcelada, considerando que “(...) o controle de acesso será regulamentado por ato do poder público municipal, sendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados.” (art. 78 parágrafo 8).

Uma vez que esse controle deverá ser regulamentado pela municipalidade, a principal questão decorrente dessa lógica é: como garantir que esse “controle de acesso” não se constituirá fechamento total e permanente?

Tal expediente legitima possibilidades de apropriações indevidas de espaços livres pela iniciativa privada, antes contraditórias aos princípios estabelecidos pela Lei Lehmann, uma vez que, de acordo com esta, deviam obrigatoriamente ser de acesso livre e irrestrito.

Alphaville Burle Marx. Image Cortesia de Leonardo Loyolla Coelho

 Os potenciais impactos

Ao se pesquisar as opiniões de profissionais oriundos da área de Direito sobre os novos instrumentos de parcelamento do solo previstos na Lei Federal 13.465/2017 aproximadamente dois anos após sua implementação, pode-se constatar a predominância de abordagens elogiosas a respeito. É recorrente a argumentação de que a legislação brasileira estaria até então em “descompasso” com a realidade prática dos processos de parcelamento do solo no país.  Tal lógica parece se ancorar em um raciocínio – aqui entendido como bastante equivocado - segundo o qual as dinâmicas da sociedade , mesmo que estas passem a advogar apenas em favor de grupos minoritários porém dominantes do ponto de vista econômico, deveriam sempre ser os principais parâmetros para se revisar / alterar as leis, ainda que esses princípios estejam em conflito com interesses da coletividade.

O impacto mais direto dos novos instrumentos no tocante aos sistemas de espaços livres das cidades brasileiras diz respeito à possibilidade de livre acesso às áreas parceladas. Reduz-se a possibilidade de criação de novos espaços livres efetivamente públicos nas novas áreas urbanizadas, uma vez que a Lei Lehmann obrigava que todas as municipalidades atendessem aos parâmetros por ela estabelecidos com relação à quantidade mínima de espaços efetivamente públicos que deveria ser doada pelos incorporadores.

Outro possível efeito significativo é a ampliação das já extensas áreas muradas que conformam barreiras urbanas tanto para empreendimentos existentes – por meio da figura dos loteamentos de acesso controlado - quanto para os novos – por meio dos condomínios de lotes. Em nenhum dos dois casos se estabeleceu na legislação limites máximo quantitativos do perímetro de cercamento contínuo permitido nos empreendimentos por ela viabilizados. Embora se argumente, no caso dos loteamentos de acesso controlado, que não poderá ser vedado o livre acesso de qualquer pessoa a esse tipo de empreendimento, são abundantes em todo o país os exemplos de fechamentos com elevados graus de hostilidade, dentre os quais se pode exemplificar os projetos urbanísticos distribuídos em praticamente todo o território nacional.

Aldeia da Serra. Image Cortesia de Leonardo Loyolla Coelho

Privando paisagens e o convívio público

Os dois novos dispositivos legais aqui analisados têm significativo potencial para impactar diretamente a possibilidade de acesso público irrestrito e a estruturação dos sistemas de espaços livres urbanos nas cidades brasileiras, legitimando processos que já vinham ocorrendo desde o final do século XX em conflito com a legislação federal e atendiam sobretudo não só a interesses dos empreendedores privados, mas também dos próprios moradores e até mesmo de uma parte dos representantes do poder público.

A figura do condomínio de lotes reduz a possibilidade de criação de novos espaços livres de efetiva apropriação pública por meio da legislação de parcelamento do solo, uma vez que legitima a criação de áreas muradas cuja extensão máxima não é estipulada. Além disso, transfere às municipalidades e ao empreendedor a responsabilidade (facultativa) da delimitação de áreas destinadas ao uso público, que já vinham sendo frequentemente incorporadas ao perímetro intramuros de loteamentos em diversas cidades brasileiras desde o final do século XX.

Ao mesmo tempo, o conceito de loteamento de acesso controlado possibilita que os empreendimentos já existentes delimitem perímetros murados nos quais possam ser incorporadas tanto as vias quanto as demais áreas públicas anteriormente doadas no processo de parcelamento do solo disciplinado pela Lei Lehmann, não sendo mais esse processo considerado contradição com os parâmetros anteriormente estabelecidos por essa legislação.

Tem-se, desse modo, a legitimação a priori – por meio do condomínio de lotes - e a posteriori – por meio do loteamento de acesso controlado – do processo de fechamento e utilização privativa de espaços livres que deveriam ser públicos.

Embora a implantação efetiva de empreendimentos viabilizados pela nova legislação ainda seja incipiente e possivelmente demande razoável tempo para ocorrer, pode-se especular como resultado de sua aplicação um futuro incremento significativo de áreas urbanizadas nas cidades brasileiras caracterizadas por expressivas extensões muradas e com reduzida presença de espaços livres públicos voltados ao convívio e lazer.

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Sobre este autor
Cita: Leonardo Loyolla Coelho. "Paisagens Privadas" 06 Ago 2019. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/922406/paisagens-privadas> ISSN 0719-8906

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