A casa como pele: trazendo Hundertwasser para o século XXI

“Eu sou tolerante. Mas revolto-me. Acuso. É a minha obrigação. Estou sozinho. Por trás de mim não há qualquer ditadura, qualquer partido, qualquer grupo, nem qualquer máfia. Nem um esquema intelectual coletivo, nem uma ideologia. A revolução verde não é uma revolução política. É sustentada pela base e não é nem minoritária nem elitista. É uma evolução criadora em harmonia com o curso orgânico da natureza e do universo.”

O parágrafo acima foi proferido em meados do século XX por Friedensreich Hundertwasser, artista e arquiteto austríaco nascido em 1928 que marcou a história da arquitetura com seu estilo único de incorporar formas irregulares e vibrantes nas obras. Seus projetos eram um verdadeiro manifesto contra a arquitetura racional e repetitiva nos quais há direito de intervenções nas janelas para os inquilinos, pisos irregulares, telhados verdes e vegetação espontânea. Como arquiteto, ele sempre colocou a diversidade antes da monotonia, acreditando no direito de cada indivíduo de modificar a sua casa e expressar sua criatividade. Porém, acima de tudo, Hundertwasser acreditava na importância da identificação do homem com a natureza e o mundo ao seu redor, abordando conceitos relacionados à vida em comunidade e ao respeito pelo meio ambiente.

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Os edifícios de Hundertwasser: manifestos construídos de uma arquitetura para o ser humano. © Anton Repponen

Esse entendimento do homem em uma esfera mais ampla foi desenvolvido por meio do conceito das cinco peles que, segundo o arquiteto, cada um nós carregamos: a epiderme natural, o vestuário, a casa, o meio ambiente onde vivemos e, a última, a pele planetária relacionada à biosfera, à qualidade do ar que se respira e ao estado da crosta terrestre que nos protege e nos alimenta. Nesse sentido, a convivência harmoniosa entre todas as partes resultaria na reconstrução de um mundo novo em diálogo com a natureza onde os indivíduos exerceriam livremente a sua criatividade sobre o ambiente imediato. Com esse pensamento vanguardista, Hundertwasser trazia à tona a importância da natureza e as possibilidades de relação com a arquitetura quando a biofilia sequer era um conceito e a assepsia formal, marcada pelos volumes racionais e industriais, ditava a regra.

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Hotel Therme Rogner Bad Blumau realizado por Hundertwasser. Foto: Intentionalart, CC BY-SA 3.0 , via Wikimedia Commons

Dentre seus manifestos extremamente atuais vale ressaltar O teu direito de janela – O teu dever de árvore de 1972, por meio do qual Hundertwasser postula a favor de um habitat de melhor qualidade que, na sua visão, consiste em telhados cobertos de vegetação que purificam a água da chuva, filtrando-a e regenerando o ciclo através, também, da utilização do húmus da matéria orgânica produzida pelos moradores da casa. Um habitat-manifesto com terraços jardins, varandas-bosques e pontos de encontro para promover a interação entre os moradores. Esse habitat ecoa as ideias apresentadas ainda em 1958 no seu Manifesto do bolor, no qual indicava que “cada habitante deveria cultivar o seu próprio bolor doméstico”. Esse posicionamento dava fim a tendência de distanciamento entre o homem e a natureza em prol de uma falsa assepsia, propondo um retorno da participação do homem no ciclo orgânico como um ser biológico.

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Os edifícios de Hundertwasser: janelas personalizadas. © Vía Flickr, Usuario Mc Nastia

Hoje em dia, 60 anos depois, a ideias de Hundertwasser estão mais presentes do que nunca, marcando a urgência pelo retorno à natureza como estratégia de sobrevivência, para arquitetura e para seu habitante. A começar pelo entendimento de uma arquitetura orgânica, que respeita os ciclos e se aproxima do natural em detrimento das formas rígidas e artificiais. Os exemplos contemporâneos que aplicam materiais renováveis como madeira recuperada, bambu, cortiça ou terra se relacionam diretamente a este pensamento promovendo edificações que impactam minimamente o ambiente natural. A “arquitetura respirável” que muito se aborda hoje nada mais é do que uma evolução do Manifesto do bolor de Hundertwasser em uma tentativa de conciliação entre o ambiente construído e o ciclo natural da vida.

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Casa Ensamble Chacarrá / Ruta 4 taller de arquitectura . Imagem Cortesia de Ruta 4

Além disso, outro aspecto muito presente na obra teórica e prática do arquiteto austríaco é a importância da singularização de cada moradia — vista como terceira pele — expressando a criatividade e a personalidade dos seus habitantes. Nesse sentido, a criação de edificações que melhor respondem às necessidades e desejos das pessoas que as habitam tem sido um ponto de discussão cada vez mais presente no século XXI, seja nos projetos que abrem margem para intervenções personalizadas, como as famosas habitações de interesse social Quinta Monroy, do arquiteto Alejandro Aravena, seja nos projetos evolutivos que possibilitam adaptações às mudanças no tamanho ou estilo de vida das famílias. Essa personalização, entretanto, também pode incluir o uso de impressão 3D para criar componentes de construção personalizados ou a incorporação de tecnologia doméstica inteligente para tornar nossas casas mais confortáveis e eficientes.

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Quinta Monroy / ELEMENTAL. Imagem © ELEMENTAL

Hundertwasser foi visionário ao colocar em pauta assuntos que viriam a ser tão urgentes para o futuro da humanidade e ao prever o distanciamento catastrófico da arquitetura em relação à natureza, o indivíduo e a comunidade. A consciência ecológica integral, refletida na teoria das cinco peles, reforça a busca por uma prática mais sustentável e endossa o atual desenvolvimento de arquiteturas que estejam relacionadas diretamente ao meio natural e social nos quais estão inseridas.   

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Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "A casa como pele: trazendo Hundertwasser para o século XXI" 01 Mai 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/999099/a-casa-como-pele-trazendo-hundertwasser-para-o-seculo-xxi> ISSN 0719-8906

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