Combatendo a escravidão e o trabalho infantil na arquitetura: entrevista com Sharon Prince

Desmantelar o sistema de trabalho escravo e infantil na indústria da arquitetura e construção não parece uma tarefa simples. Ainda mais em escala global. No entanto, é justamente esta a missão da iniciativa Design for Freedom (DFF), criada pela CEO e fundadora da Grace Farms Foundation, Sharon Prince, junto com Bill Menking, professor e editor-chefe do The Architect’s Newspaper.

Através de eventos e ferramentas disponibilizadas gratuitamente, Design for Freedom busca “aumentar a conscientização e inspirar respostas para interromper o trabalho forçado na cadeia de suprimentos de materiais de construção”, oferecendo caminhos para garantir a transparência e a ética no processo produtivo da arquitetura.

Em entrevista concedida ao fotógrafo de arquitetura Paul Clemence, Sharon Prince fala sobre o surgimento da iniciativa, como os arquitetos podem contribuir e o que tem aprendido desde que Design for Freedom foi iniciado.

Paul Clemence: De onde surge seu interesse pela relação entre arquitetura e justiça social? 

Sharon Prince: Sempre fui fascinada por lugares e como nós somos moldados pela arquitetura. O espaço tem o poder de comunicar, e essa noção se tornou a gênese da Grace Farms Foundation (GFF). Quando comecei a pensar no conceito da fundação, a Grace Farms seria um espaço onde poderíamos convidar pessoas de diferentes origens — local e globalmente — para quebrar barreiras entre pessoas, setores e ideias. A Grace Farms permite este encontro, é um lugar de esperança. 

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Escultura "Temporal Shift" de Alyson Shotz em Grace Farms. Foto © Jacek Dolata

A arquitetura tem o poder de promover o bem no mundo e também pode criar novos resultados humanitários, como o Design for Freedom, nosso novo movimento para eliminar o trabalho forçado da cadeia dos materiais de construção.

PC: Conte mais sobre o movimento Design for Freedom, por favor.

SP: O setor da construção não representa apenas a maior contribuição individual para as mudanças climáticas, como também é o setor industrial com o maior risco de trabalho forçado e infantil no mundo. É também o mais desagregado e o menos modernizado, ao mesmo tempo que é responsável por mais de 13% do PIB global. 

Design for Freedom (DFF) é um movimento em busca de uma mudança radical de paradigma para acabar com o trabalho forçado e infantil na cadeia de suprimentos de materiais de construção. Mobilizamos líderes da indústria e profissionais de todos os setores para conscientizar o mercado e construir um futuro mais igualitário e humano. A Grace Farms iniciou uma iniciativa de transparência de materiais éticos na cadeia de suprimentos com o primeiro relatório DFF em 2020, além de um kit de ferramentas para a indústria em março passado. Agora, os projetos piloto já estão em três continentes.

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Sharon Prince na "Black Chapel" no Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil. Foto © Harry Richards

No entanto, desmantelar a vasta indústria criminosa de trabalho forçado e tráfico humano é uma tarefa complexa e gigantesca que exige ação em todos os pontos da cadeia de suprimentos. Aproveitando a experiência da GFF, trabalhamos globalmente para implementar políticas e capacitação. Acreditamos que o setor de construção está posicionado de forma única para criar uma mudança ética no mercado, sobretudo devido à escala e ao número de pessoas e organizações envolvidas em cada projeto. Resultados humanitários importantes podem começar com a simples pergunta: “Onde nossos materiais são feitos e por quem?”.

PC: Como o movimento Design for Freedom se relaciona com a justiça na arquitetura?

SP: O Design for Freedom leva o movimento verde um passo adiante ao perguntar: “Seu edifício é projetado de forma sustentável e de forma ética?” É uma progressão natural — as pessoas estão preocupadas com a origem de seus alimentos e roupas. Elas estão pressionando as indústrias e pedindo mais transparência. Primeiro foi a indústria alimentícia, depois a do vestuário. Agora, propomos questionar o abrigo. Diariamente, quase 28 milhões de homens, mulheres e crianças trabalham em condições desumanas — milhões que extraem, fabricam e transportam materiais de construção como madeira, aço, cobre e têxteis. As pessoas que passam por essas condições geralmente estão entre as mais vulneráveis, provenientes de comunidades empobrecidas, áreas de conflitos ou regiões afetadas por desastres naturais.

PC: Qual o papel dos arquitetos, designers e estudantes neste movimento?

SP: Todos nós fazemos parte do ambiente construído e, portanto, todos nós precisamos estar cientes desse problema e entender o papel que podemos desempenhar para resolvê-lo. A principal diferença entre o movimento verde na construção e o DFF é que o primeiro é essencialmente voluntário, enquanto que o fornecimento ético de materiais é um imperativo legal, bem como uma obrigação moral.

O Design for Freedom Working Group é composto por líderes de vários setores — desde empresas de arquitetura, engenharia e construção, faculdades e universidades, meios de comunicação, fabricantes e o setor corporativo – e envolve todos nós. Temos parcerias com mais de uma dúzia de universidades em todos os EUA, como o Illinois Institute of Technology e Yale, que criaram cursos sobre Design for Freedom. Estamos educando profissionais e a próxima geração de líderes para entender o escopo do problema, meios e métodos atuais para criar transparência, incluindo o nosso Design for Freedom Toolkit com documentos de especificações éticas para oferecer respostas institucionais.

Também reunimos centenas de pessoas todos os anos, seja em nosso Design for Freedom Summit, que este ano será realizado em 30 de março, ou no Fórum de Paisagens, em 10 de maio. 

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"Black Chapel" de Theaster Gates. Foto © Iwan Baan

PC: Pode falar um pouco sobre o Toolkit?

SP: Claro! Lançamos o Design for Freedom Toolkit durante o Design for Freedom Summit do ano passado. É um recurso novo e abrangente que os profissionais de design e construção podem usar para ajudar a implementar estratégias éticas de fornecimento de materiais sem trabalho forçado em suas próprias práticas. O kit mergulha profundamente em mais de uma dúzia de materiais, como madeira, aço, cobre, borracha e polisilício, que mostram maiores incidências de trabalho forçado, ao mesmo tempo em que fornece certificações e padrões relevantes que dão suporte a escolhas éticas de materiais. 

Além disso, oferece um questionário a ser aplicado aos fornecedores e especificações de amostras que podem ajudar os profissionais da indústria de AEC a selecionar e adquirir materiais de baixo risco, sem trabalho forçado ou infantil. O kit é gratuito e está disponível no site da DFF.

PC: Como estão sendo desenvolvidos os projetos piloto e qual sua importância?

SP: Os projetos piloto são o próximo passo no movimento Design for Freedom. Eles demonstram os princípios da iniciativa em ação, mostrando que é possível usar materiais com menos risco de trabalho forçado. Eles também mostram como criar cadeias de suprimentos transparentes, oferecendo novas referências ao nosso escopo de conhecimento, que ainda é escasso.

Anunciamos cinco projetos piloto do Design for Freedom nos EUA, no Reino Unido e na Índia, entre os quais está a Black Chapel de Theaster Gates. Como consultores de materiais, trabalhamos com a equipe de projeto do Serpentine Pavilion para aumentar a transparência dos materiais e priorizar a aquisição ética. O pavilhão ficou aberto em Londres de junho a outubro do ano passado. Também estamos trabalhando com a designer Nina Cooke John em seu monumento à abolicionista e ativista Harriet Tubman, em Newark, no estado de Nova Jersey. O monumento de dois andares, intitulado Shadow of a Face, traça a linha entre a escravidão histórica e a escravidão contemporânea.

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"Black Chapel" de Theaster Gates. Foto © Iwan Baan
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Monumento a Harriet Tubman, de Nina Cooke John. Foto © Cesar Melgar

Outro projeto foi Temporal Shift do artista Alyson Shotz, uma escultura responsiva instalada em Grace Farms no ano passado. Trabalhamos com Joe Mizzi e Jay Gorman, da Sciame, para rastrear o aço inoxidável e o concreto usados ​​na escultura. O processo de aplicação de uma estrutura ética para o fornecimento de materiais deixou claro que isso é possível — 100% do aço e concreto usados ​​em Temporal Shift foram obtidos de forma ética.

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Escultura "Temporal Shift" de Alyson Shotz em Grace Farms. Foto © Paul Clemence

PC: Conte um pouco sobre o Design for Freedom Summit, que acontecerá agora em 30 de março.

SP: Em 2022, lançamos nosso primeiro Design for Freedom Summit, reunindo 300 líderes da indústria da construção. Com base no engajamento do ano passado, a segunda edição será realizada em 30 de março. Este ano, esperamos que mais de 400 líderes e especialistas globais se juntem a nós em Grace Farms para um dia de conscientização e ação. A lista de palestrantes é incrível e haverá três painéis e seis mesas redondas ocorrendo simultaneamente.

Nosso diferencial é que não estamos realizando uma conferência, mas convocando aqueles que disseram "sim" antes que tudo seja resolvido, para acelerar um movimento humanitário em uma indústria desagregada. Aqueles que estão liderando o movimento Design for Freedom conosco há alguns anos, como Chris Sharples da SHoP, juntam-se aos principais construtores e incorporadores, como Turner e Lendlease, agências governamentais, como a OBO do Departamento de Estado dos EUA, e estudantes que estão chegando para acelerar a transformação.

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Paul Clemence e Hayes Slade conduzem mesa redonda no Design for Freedom Summit de 2022. Foto © Jacek Dolata

PC: O que você aprendeu desde que o DFF começou?

SP: Muita coisa, e cada dia mais. Mais importante, aprendi que uma vez que os líderes se conscientizam do problema, eles querem fazer algo a respeito. Desde que o DFF Working Group foi formado, os líderes disseram “sim” para ingressar e “sim” para usar sua influência e experiência para promover o Design for Freedom dentro do setor e em suas próprias organizações.

Uma vez me perguntaram se acabar com a escravidão em nosso setor é uma tarefa impossível. Respondi: “E se você fosse o escravizado?” A resposta é clara. A escravidão ou trabalho forçado é errado, legal e moralmente. É uma das poucas áreas em que as pessoas realmente concordam. A única maneira de eliminá-lo é intervir e fazer o que for preciso para enfrentar esse problema. E assim, aprendi que as pessoas realmente querem enfrentar esse problema, mesmo que pareça impossível.

Quanto mais as pessoas sabem, mais elas querem se envolver e fazer. Depois que você passa a saber, não há como deixar de saber, e você começa a enxergar cada material e elemento da arquitetura com outros olhos.

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "Combatendo a escravidão e o trabalho infantil na arquitetura: entrevista com Sharon Prince" 09 Abr 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/998258/combatendo-a-escravidao-e-o-trabalho-infantil-na-arquitetura-entrevista-com-sharon-prince> ISSN 0719-8906

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