Pelo fim do subsídio do setor elétrico à ocupação de áreas de risco

No período de chuvas mais intensas, é recorrente o noticiário de desastres urbanos, como deslizamentos de terras, enchentes e alagamentos, com perda de vidas humanas e gravíssimos danos materiais. Na maioria dos casos, a vulnerabilidade das áreas atingidas já era conhecida, mas não se impediu sua ocupação. Via de regra, as áreas devastadas serão novamente ocupadas pelos sobreviventes tão logo quanto possível, sem que qualquer obra seja realizada para remover o risco.

A baixa renda de parte da população, combinada com as restrições regulatórias à ocupação do solo urbano regular em alta densidade, são fatores importantes para se compreender a ocupação das áreas de risco e a formação de assentamentos irregulares em geral.

Trata-se, no entanto, de uma explicação incompleta. Existem muitos loteamentos e condomínios de renda média e alta implantados à margem da lei e, mesmo nas favelas, há moradores que pagam aluguel ou que compraram terrenos de ocupantes anteriores.

Há um mercado imobiliário em pleno funcionamento nessas áreas, que se distancia muito da imagem pré-concebida de pessoas desesperadas que ocupam terrenos sem função social porque não têm onde morar.

Independentemente do que motiva as pessoas a residir ou a investir em assentamentos ilegais, o fato é que estes não sobreviveriam sem conexão com as redes públicas de infraestrutura que caracterizam o tecido urbano. A presença da infraestrutura não apenas viabiliza, mas também legitima a ocupação, que passa a ser vista pelos moradores como avalizada pelo poder público.

Apesar de a ocupação de áreas de risco ser expressamente proibida, seus moradores contam com pleno acesso à energia elétrica. E não se trata, na maioria dos casos, de ligações clandestinas (“gatos”), mas de ligações oficiais, com conta de luz em nome dos moradores. O que explica esse fato? Como pode uma infraestrutura essencial ao processo de urbanização ser instalada em direta contrariedade aos mais elementares princípios do urbanismo?

A ilegalidade da ocupação das áreas de risco

A Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6.766/79), que disciplina o processo de urbanização, proíbe a ocupação de áreas de risco, como terrenos de alta declividade ou sujeitos a inundações (art. 3.º, parágrafo único).

O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), por sua vez, instituiu como diretriz de política urbana a ordenação do uso do solo, de modo a evitar a exposição da população a riscos de desastres (art. 2.º, VI, h) e exige o mapeamento, no plano diretor, das áreas de risco, com base em carta geotécnica, com a indicação das ações de intervenção preventiva e realocação da população (art. 42-A, II, III, e § 1.º).

Mesmo a Lei da Regularização Fundiária Urbana (Lei 13.465/17), voltada para a regularização de assentamentos informais consolidados, prevê a realocação dos ocupantes de áreas cujos riscos não possam ser eliminados, corrigidos ou administrados (art. 39, § 2.º).

Muitas dessas áreas também são de proteção permanente (APP), nos termos do Código Florestal (Lei 12.651/12), pois cumprem “função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas” (art. 3.º, II).

A energia elétrica é uma infraestrutura essencial ao desenvolvimento urbano

A energia elétrica é uma das infraestruturas essenciais ao que se entende por “solo urbano”. Tanto é assim que a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6.766/1979) define o lote, que é o terreno preparado para receber edificações, como aquele “servido de infraestrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor” (art. 2.º, § 4.º), sendo a infraestrutura básica “constituída pelos equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação” (§ 5.º). 

A criação de lotes (parcelamento do solo) deve observar projeto urbanístico compatível com o plano diretor, que indicará a localização dos equipamentos urbanos (para abastecimento de água, esgotamento sanitário, energia elétrica, coletas de águas pluviais, telecomunicações e gás canalizado) e comunitários (educação, cultura, saúde, lazer e similares) (art. 4.º, § 2.º, art. 5.º, parágrafo único e art. 7.º, III).

Aprovado o projeto, cabe ao empreendedor instalar a infraestrutura básica, que será em seguida transferida para o poder público, diretamente ou por meio de suas concessionárias, para prestação dos serviços públicos. Uma adequada aplicação desse sistema permite ao Município controlar seu desenvolvimento urbano, recusando aprovação a empreendimentos muito afastados, nocivos ao meio ambiente ou localizados em áreas de risco e dimensionando a exigência de infraestrutura para a densidade de ocupação prevista pelo plano diretor (art. 4.º, I).

A implantação de redes de energia elétrica é uma dimensão da regularização fundiária

É sabido, no entanto, que grande parte do tecido urbano surge à margem da lei, seja pela ocupação direta pela população, seja pela venda irregular de terrenos. Nesses casos, cabe ao município avaliar a conveniência ou não de regularizar o assentamento, levando em consideração seu grau de consolidação, o perfil da população moradora, o grau de dano provocado à ordem urbanística, ao meio ambiente e ao patrimônio cultural e os custos de urbanização.

Na hipótese de regularização, deve ser observada a Lei da Regularização Fundiária Urbana (Lei 13.465/17), que também exige a elaboração de projeto urbanístico específico (arts. 35 a 39). Este deverá obrigatoriamente conter cronograma de implantação da infraestrutura essencial (art. 35, IX), que abrange “sistema de abastecimento de água potável, coletivo ou individual; sistema de coleta e tratamento do esgotamento sanitário, coletivo ou individual; rede de energia elétrica domiciliar; soluções de drenagem, quando necessário; e outros equipamentos a serem definidos pelos Municípios em função das necessidades locais e características regionais” (art. 36, § 1.º). Instalada a infraestrutura, sua conexão às edificações é obrigatória (art. 13, § 7.º).

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Casas destruídas em deslizamentos na Barra do Sahy após tempestades no litoral norte de São Paulo. Imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil

Tanto no caso da urbanização formal quanto da informal, portanto, a implantação da infraestrutura, elemento definidor do próprio conceito de “solo urbano”, deve observar projeto urbanístico aprovado pelo município, que é o ente da Federação responsável pelo ordenamento territorial urbano. O que explica, então, a presença de redes de energia elétrica em áreas de risco? A resposta deve ser buscada na legislação deste setor.

As redes de energia elétrica são implantadas nos assentamentos irregulares pelas concessionárias de distribuição

A produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica são serviços públicos federais regulados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). As relações entre distribuidoras e consumidores finais são regidas pela Resolução 414/2010, que estabelece as “condições gerais de fornecimento”.

Em acréscimo ao atendimento a empreendimentos regulares e em regularização, a Resolução admite, em flagrante violação da legislação urbanística, o “fornecimento provisório” a assentamentos irregulares de baixa renda, independentemente do interesse do município em regularizá-los e sem qualquer ressalva com relação a áreas de risco ou ambientalmente sensíveis (art. 52, § 2.º).

Ao contrário dos assentamentos regulares, em que a obrigação de implantar a infraestrutura é do empreendedor, no caso dos irregulares essa responsabilidade é inexplicavelmente transferida para a distribuidora de energia elétrica!

O custo das obras é transferido para os consumidores de energia elétrica

A Resolução 414/2010 autoriza, mas não obriga as distribuidoras a fornecerem energia aos assentamentos irregulares. Por que, então, praticamente todos eles recebem energia? A explicação se encontra na Resolução 223/2003, editada para regulamentar os arts. 14 e 15 da Lei 10.438/2002, relativos à universalização dos serviços de energia elétrica.

Em síntese, foram estabelecidas metas de universalização por município, cujo não atendimento enseja penalidades para a concessionária, a serem aplicadas por ocasião da revisão tarifária (art. 14). As metas de universalização adotam como indicador o percentual de domicílios estimados pelo Censo de 2010 do IBGE que também sejam unidades consumidoras de energia elétrica (art. 12).

O IBDE considera domicílio o “local estruturalmente separado e independente, que se destina a servir de habitação a uma ou mais pessoas, ou que esteja sendo utilizado como tal”. A contagem de domicílios do IBGE abrange, portanto, todas as formas de ocupação do solo, inclusive as situadas em áreas de risco ou ambientalmente sensíveis, independentemente da sua regularidade.

A constatação de que determinado domicílio não conta com energia elétrica nada informa, entretanto, sobre a conveniência desse fornecimento. O domicílio pode ser uma construção em núcleo irregular consolidado, mas também pode ser um acampamento na Esplanada dos Ministérios, uma casa de luxo na Mata Atlântica ou um lote clandestino cujos efluentes estejam poluindo os mananciais de água da cidade.

A universalização deve ser promovida sem ônus para o beneficiário (art. 4.º), mas não abrange os “lotes urbanos situados em loteamentos” (art. 16, III), que são, precisamente, os regulares. Ou seja, o critério de identificação dos beneficiários da universalização é, precisamente, a ilegalidade da ocupação! Embora não haja pagamento por parte dos beneficiários, a empresa não tem prejuízo, pois a política tarifária distribui esses custos entre todos os consumidores.

O que se conclui de tudo isso é que a política energética subsidia com recursos dos consumidores que ocupam imóveis regulares a ocupação e o parcelamento irregular do solo, tanto em zonas urbanas quanto rurais, inclusive em áreas de risco ou ambientalmente sensíveis, como unidades de conservação e áreas de preservação permanente.

As políticas setoriais têm que observar as políticas transversais de ordenamento do território

A ocupação de áreas de risco é um exemplo de efeito adverso de políticas setoriais contraditórias com a política de desenvolvimento urbano. Trata-se de um fenômeno preocupante e que tende a se agravar na medida em que estas políticas sejam mais institucionalizadas que a política urbana.

No caso em questão, empresas de grande porte, que recebem tarifas de milhões de usuários e respaldadas por uma agência federal bem estruturada (ANEEL), contrapõem-se a milhares de municípios, a maioria dos quais carentes de recursos financeiros, humanos e tecnológicos.

As políticas setoriais operam por meio de indicadores e metas quantitativas, com base nos quais seus dirigentes são avaliados. Na busca de alcançar essas metas, no entanto, os órgãos setoriais tendem a sacrificar a dimensão qualitativa, a desconsiderar outros interesses públicos e a recusar responsabilidade pelos efeitos perversos eventualmente gerados em outras áreas.

As políticas setoriais são permeadas, no entanto, por trade-offs, que se refletem principalmente no território, razão pela qual devem ser coordenadas por políticas transversais, como a de recursos hídricos, a ambiental e a urbana.

No caso do urbanismo, o Estatuto da Cidade estabelece como diretriz a “adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano” (art. 2.º, X).

A Lei da Regularização Fundiária, por sua vez, exige que todos os poderes públicos desenvolvam as políticas de sua competência de acordo com os princípios de sustentabilidade econômica, social e ambiental e ordenação territorial, buscando a ocupação do solo de maneira eficiente (art. 9.º, § 1.º), de modo a prevenir e desestimular a formação de novos assentamentos informais (art. 10, X).

Iniciativas para corrigir o problema

Além dos dispositivos apontados, a regulação da ANEEL viola diversos dispositivos constitucionais e legais relativos à política urbana, ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, à ordem econômica e ao direito de propriedade.

Nesse sentido, o Ministério Público tem recomendado às concessionárias que se abstenham de fornecer energia elétrica a loteamentos clandestinos e promovido ações civis públicas quando necessário. A jurisprudência ainda oscila, entretanto, entre a defesa da ordem urbanística e a proteção dos adquirentes.

Daí a importância dos projetos de lei voltados para reforçar a observância do ordenamento territorial por parte das concessionárias de energia elétrica: PLS 70/2006, PLS 99/2010 (ambos arquivados), e PLS 745/2015 (em tramitação no Senado Federal).

Uma oportunidade de correção de rumos foi aberta pela própria ANEEL, que convocou a Audiência Pública 68/2017, sobre a adequação da Resolução 414/2010 à nova Lei da Regularização Fundiária. Embora não proíba o fornecimento de energia a assentamentos irregulares que não sejam passíveis de regularização, a minuta de resolução apresentada pela Agência suprime a responsabilidade das concessionárias pela implantação das redes, acabando, assim, com o incentivo à ocupação irregular do solo. Ainda não é o ideal, mas não deixa de ser um importante passo na preservação de vidas e na defesa do meio ambiente e da ordem urbanística.

Via Caos Planejado.

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Sobre este autor
Cita: Victor Carvalho Pinto. "Pelo fim do subsídio do setor elétrico à ocupação de áreas de risco" 05 Mar 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/997183/pelo-fim-do-subsidio-do-setor-eletrico-a-ocupacao-de-areas-de-risco> ISSN 0719-8906

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