Passado negativo: o processo de construção do Monument Against Racism

O antimonumento 2146 Stones – Monument Against Racism / The Invisible Monument é uma intervenção realizada em 1993 na praça Saarbrücken por Jochen Gerz e alunos de sua disciplina na faculdade Hochschule der Künste Saar, em Saarbrücken, Alemanha. Realizada segundo a prática constante de vigilância [1] de Gerz, a obra é fruto de um momento de inquietação na produção artística alemã que questionava a arte representativa de uma geração nascida no pós-guerra, assim como a busca de quem ao mesmo tempo viveu os eventos da 2ª Guerra Mundial, do início e do fim do Muro de Berlim, enquanto havia um esforço nacional para evitar as memórias do Holocausto.

Esta, então, é produto de uma reação ao período em que a cultura e o questionamento acerca da memória atingem seu auge em 1990 (década da produção dos Antimonumentos de Gerz). Dada a sua complexidade, torna-se um desafio entender a dimensão que a intervenção possui tanto na cidade em que foi realizada, quanto a relação com a opinião popular, mídia e governo, que foram palco de disputa e processo de “fazimento” da intervenção. 

Rudolf Frieling, curador de Artes Midiáticas da SFMOMA, destaca o processo formativo qual a obra de Gerz possui e a descreve a obra coletiva:

Para esta intervenção não comissionada no espaço público, a pesquisa foi feita nas comunidades judaicas na Alemanha e, em seguida, foi elaborada uma lista de todos os cemitérios judeus que existiam no país antes da Segunda Guerra Mundial e a perseguição do regime nazista aos judeus. Os nomes foram gravados na parte inferior das pedras do pavimento da avenida em frente ao Palácio de Saarbrucken – sede do parlamento estadual. Durante um período de vários meses, as pedras originais foram trocadas à noite até que todas as 2.146 pedras gravadas estavam no local. Quando a medida foi finalmente tornada pública, foi discutida a "disponibilização" de uma instalação invisível em espaço público, inclusive com o governo estadual. Isso levou à decisão de renomear a praça de "Praça do Monumento Invisível". O trabalho de Jochen Gerz aqui não foi apenas um processo temporal, mas também um processo interativo de formação. — MEDIEN KUNST NETZ, 2004. s.p.

De antemão é necessário nos debruçarmos um pouco sobre o palco de tal intervenção. Schlossplatz é a maior praça de Saarbrücken e nela está o Castelo de Saarbrücken, um palácio barroco construído por volta de 1738, tendo a origem de outro castelo datando desde 999 a.C (HISTORISCHES MUSEUM SAAR, 2007, s.p.). O Castelo foi adquirido pelo distrito de Saarbrücken entre 1908 a 1920, para dar espaço à crescente administração e ao mesmo tempo preservar o monumento (HISTORISCHES MUSEUM SAAR, 2007 s.p.).

Com a ascensão do partido nazista e sua chegada ao poder em 1935, a Gestapo (Polícia Secreta do Estado da Alemanha Nazista) se estabeleceu na ala norte do Castelo de Saarbrücken (Saarbrucken Schloss), e a partir daí, perseguidos políticos foram presos no porão do castelo, e ali foram torturados e interrogados em seus escritórios (REGIONALVERBAND-SAARBRUECKEN). Na noite de 9 de novembro de 1938, os judeus de Saarbrücken foram levados para Schlossplatz e lá foram ameaçados de morte, foi neste mesmo local que judeus foram deportados em 21 de outubro de 1940 (REGIONALVERBAND-SAARBRUECKEN). Assim, a Schlossplatz materializa a violência policial do Estado Nazista.

Nos ataques aéreos da Segunda Guerra Mundial, em 1944, o Castelo de Saarbrücken foi drasticamente afetado pelos ataques dos Aliados, onde apenas a fachada resistiu. Durante muitos anos os preservacionistas lutaram para reconstruir o palácio, até que em 1957 foi acordado em uma Assembleia Deliberativa sua reconstrução. Segundo Synenko (2014), o interesse estava em aproximar a Alemanha de uma política internacional por meio da criação de infraestruturas nacionais, estando fora de pauta a recuperação do passado:

[...] as diretrizes vindas de Berlim neste momento sugeriam que "remoção de entulhos prevaleceu sobre a preservação". Menos focada em lembrar o passado, a agenda nacional neste momento visava responder às demandas de urbanistas, agentes imobiliários, aproveitadores e partes interessadas estrangeiras. Em outras palavras [...] projetava a imagem de uma "cidade em construção"— um lugar onde a amnésia coletiva em relação às atrocidades do passado era essencial para a sobrevivência diária. — SYNENKO, 2014, s.p.

A importância de Berlim neste novo e industrial Estado alemão aumentou depois de 1961, quando as tentativas de desencorajar a emigração pelas autoridades orientais resultaram na construção de uma muralha protetora antifascista – o Muro de Berlim (SYNENKO, 2014, s.p.). Assim, o período da reconstrução do Castelo de Saarbrücken se insere em um período de tentativa de recuperação de um suposto “passado glorioso” (das dinastias monárquicas), ao mesmo tempo, a tentativa de “amnésia coletiva” das atrocidades Nazistas – mesmo que isso significasse adotar uma postura racista.

Uma vez entendida como uma "lousa em branco" para o mercado e especuladores, Berlim foi concebida em termos históricos mundiais como o local urbano de uma "memória dividida" entre superpotências globais opostas(SYNENKO, 2014, s.p.). As culturas memoriais que surgiram nos anos seguintes foram em geral responsivas a esta situação geopolítica (SYNENKO, 2014, s.p.). À medida que as duas Berlins espelhavam cada vez mais hostilidades ideológicas flutuantes no cenário internacional, suas práticas de memória nacional e cultural foram impactadas pelas antípodas de um conflito interno (SYNENKO, 2014, s.p.).

Nesse momento, as duas Berlins eram o ponto de eclosão de um conflito entre um Estado que tenta utilizar o poder da lembrança e do esquecimento, frente a uma situação de instabilidade política e social. Quando o Estado assume a função de resguardar a memória, também assume a responsabilidade pela elaboração de um determinado discurso de como aquilo deve ser lembrado.

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Sobreposição do levantamento de Gerz e seus alunos com imagem de satélite. Imagem de autoria própria, a partir das imagens do Google Satellite (2022)

A produção de Jochen Gerz nasce desse conflito. A partir de relatos de sua infância na década de 40, Gerz aponta uma falta de percepção coletiva sobre a realidade, que por sua vez é constantemente questionada em sua produção.

Como descrito por James Young, após o aclamado “Monument Agaist Fascism” de Gerz em 1986, o artista se torna professor convidado na School of Fine Arts in Saarbrucken (YOUNG, 1994, p. 1). Ele convida os alunos a participarem de um projeto de memória clandestino, uma “guerrilha de ação memorial” (YOUNG, 1994, p. 1).  A sala promete entusiástico segredo e ouve o plano: ao anoitecer, oito estudantes iriam roubar os paralelepípedos do piso da praça a frente do Castelo de Saarbrücken. 

Carregando bolsas cheias de pedras removidas de outras partes da cidade, os estudantes iriam se espalhar pela praça, sentados em pares, bebendo cerveja e gritando entre si, fingindo festejarem (YOUNG, 1994, p. 1). Porém, na verdade, eles arrancariam furtivamente 70 paralelepípedos e os substituiriam pelos que haviam trazido em suas bolsas, cada um com um prego virado para baixo, podendo ser localizados com um detector de metais (YOUNG, 1994, p. 2). Em alguns dias essa parte estava concluída como planejado. Enquanto isso, outros membros pesquisavam os nomes e locais de cada antigo cemitério judaico na Alemanha, mais de 2.000 deles abandonados ou desaparecidos (YOUNG, 1994, p. 2).

O paralelepípedo, a pedra, remete a prática judaica de deixar pedras nos túmulos para manter a memória dos mortos: “Ele escolheu cemitérios em vez de sinagogas para seu projeto porque na religião judaica eles são algo indissolúvel e indestrutível -– a continuidade da própria vida. Suas lápides são sacrossantas, ou pelo menos deveriam ser.” (JHERING, 1992, s.p.)

Quando os colegas voltam da “beer-party”, com suas bolsas cheias de paralelepípedos, todos estavam prontos para gravarem os nomes dos ausentes cemitérios nas pedras, uma por uma (YOUNG, 1994, p. 2). Na noite seguinte, após terminarem as guerrilhas de memória, retornam as pedras aos seus locais originais, todas inscritas e datadas (YOUNG, 1994, p. 2).

As pedras são colocadas com as inscrições voltadas para baixo, não deixando nenhum traço da operação: um memorial que seria invisível e, como Gerz esperava, presente na memória (YOUNG, 1994, p. 2). Essa operação de Gerz é crucial: ele cria uma forma de rememorar que não depende da materialidade, apesar dela ser ferramenta da sua intervenção, e sim do conhecimento da ação memorial quando fosse tornada pública.

Após uma primeira fase, de intervenção, em 70 das 2146 pedras planejadas, Gerz escreve para Oskar Lafontaine, Ministro-Presidente de Saarland e vice-presidente do Partido Social-Democrata da Alemanha, avisando-o da intervenção e pedindo apoio financeiro parlamentar para continuar a operação (YOUNG, 1994, p. 2). Sob o aviso de que o projeto era evidentemente ilegal (YOUNG, 1994, p. 2), Lafontaine destina 10.000 DM (marco-alemão) de um fundo especial de arte (YOUNG, 1994, p. 2). O projeto leva, a partir de então, três anos para ser concluído.

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2146 pedras seriam removidas e substituídas pelas pedras com os nomes dos cemitérios judaicos. Autoria própria

A partir desse momento o público se tornou parte do memorial: os jornais souberam do projeto, um tremendo furor surge com vandalizações na praça, editoriais se perguntam se essa intervenção era necessária, outros perguntam se tudo não é uma farsa conceitual projetada apenas para provocar uma tempestade memorial (YOUNG, 1994, p. 2).

Não que houvesse uma rejeição fundamental a tal memorial, mas a "não visibilidade" e a forma ilegal como o artista trabalhou foram [...] criticados na opinião pública e no parlamento da Câmara Municipal. Foi só depois de um debate altamente emocional que foi finalmente decidido apoiar o projeto financeiramente. — KUGLER, 1993, s.p.

De fato, o encanto da obra de Gerz está no fato de que não importa se há realmente paralelepípedos com os nomes dos cemitérios judaicos. Os estudantes poderiam jamais ter festejado sua guerrilha de ação de memória, já que as fotos existentes são extremamente discretas, não comprovando a realização da intervenção.

A metodologia de Gerz se aproxima das definições de práticas ativistas descritas por Paulo Tavares na atualidade, que “no fundamento das práticas ativistas, está o princípio de que é preciso revelar e expor, de que é preciso tornar transparente, de que é preciso trazer certos eventos, fenômenos e práticas aos olhos do público” (BENTES; BRUNO; FALTAY, 2019, p. 332).

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8000 pedras presentes na Schlossplatz, “este memorial torna-se insuportável porque seus componentes não podem ser identificados – quais pedras a piedade diligente dos pedestres deve evitar?” (GRASSKAMP, 1994, s.p.). Autoria própria

E é exatamente o que acontece, enquanto os visitantes se aglomeravam na praça em busca das 70 pedras iniciais entre mais de 8.000, eles se perguntavam onde estavam em relação às pedras memoriais: “Estavam de pé sobre elas? Estava mesmo lá?” (YOUNG, 1994, p. 2). Além da relutância, há o medo de uma nova forma de profanação, como o caso de um parlamentar chocado que um cachorro pudesse urinar na calçada com a inscrição de um cemitério judeu destruído (PERRIN, 2007, p. 52).

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Na primeira fase da intervenção, são substituídos 70 das 2146 pedras planejadas. Autoria própria
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“Não é um fato do passado que o Monumento invisível relembra: é o apagamento, sempre no presente [...] “ (WAJCMAN, 1998, s.p.). Autoria própria

A Schlossplatz serve tanto o mercado quanto o festival, pechinchas e danças, feriados e vida cotidiana. Então, este memorial torna-se insuportável porque seus componentes não podem ser identificados – quais pedras a piedade diligente dos pedestres deve evitar? Graças à discrição, este memorial invisível cria uma ligação escandalosa entre a vida cotidiana e a comemoração que prejudica todos os outros memoriais. — GRASSKAMP, 1994, s.p.

 Ao procurar a memória, Gerz esperava que eles percebessem que tal memória já estava neles (YOUNG, 1994, p. 3). Tal antimonumento não opera na materialidade das pedras ou na prova das fotos, mas sim nas pessoas. Esse é o caso descrito pelo artista, em que o autor Gérard Wajcman foi visitar o monumento que ele conhecia através do projeto, das intenções e reações, mas quando foi visitá-lo, só poderia descobrir que realmente não havia “nada” (PERRIN, 2007, p. 52). A expectativa de “ter algo” designou a expectativa de uma emoção para ter ou a expectativa de ver algo? (PERRIN, 2007, p. 52).

2146 Stones - Monument Agaist Racism é, antes de mais nada, um antimonumento, uma performance que foi materializada pelo invisível. Não se encaixa na ideia de um monumento tradicional, a materialidade de Gerz não são as pedras, a praça ou o Castelo de Saarbrücken, mas as pessoas. Ele cria encontros e debates que às vezes assumem uma forma controversa, mas no fim, ele o que ele realmente deseja é restaurar a curiosidade das pessoas e criar memória no plural (PERRIN, 2007, p. 52). Seus memoriais são trabalhos em andamento, seu suporte é a sociedade, que se regenera em perpétuo movimento, e sua obra permanece incompleta.

Segundo Young: “[...] nos lembramos da fragilidade essencial do memorial, sua dependência de outros para sua vida - que foi feito por mãos humanos em tempos e lugares humanos, e não é mais um pedaço natural da paisagem do que nós.” (YOUNG, 1994, p. 4). Assim o que Gerz propõe é levar as pessoas para um “passado negativo”, onde o vazio que elabora o assunto, um vazio significativo para uma época que não mais apresenta o otimismo e a euforia que impregnou a escultura pública do final do século XIX até a 1ª Guerra Mundial.

O monumento Saarbrücken não é um memorial de lembrança, mas um memorial de lapsos de memória, um memorial de esquecimento, perda, ausência, tantos eventos atuais - como a memória, o esquecimento é um ato contemporâneo. Não é um fato do passado que o Monumento invisível relembra: é o apagamento, sempre no presente, o fato de hoje não haver vestígio material, em lado nenhum, nem qualquer memória desta vida judaica. Que existia antes de 1933 na Alemanha, em pelo menos 2.146 comunidades [...]. — WAJCMAN, 1998, s.p.

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Nota

[1] A prática de constante vigilância de Gerz parte de seu entendimento através das décadas que os fenômenos que conjugaram o Nazismo, não estão superados. No seu site, ele descreve, depois de Auschwitz, uma série de situações em que há a existência de parâmetros em que a submissão da vida pela morte está legitimada.

Referências bibliográficas

  • GRASSKAMP, Walter. 1994. In: Jochen Gerz. 2146 Steine - Mahnmal gegen Rassismus Saarbrücken. Disponível em: <https://jochengerz.eu/works/mahnmal-gegen-rassismus>. Acesso em: 19/12/2022.
  • JHERING, Barbara von. 1992. In: Jochen Gerz. 2146 Steine - Mahnmal gegen Rassismus Saarbrücken. Disponível em: <https://jochengerz.eu/works/mahnmal-gegen-rassismus>. Acesso em: 19/12/2022.
  • Kugler, Lieselotte. 1993, s.p. In: Jochen Gerz. 2146 Steine - Mahnmal gegen Rassismus Saarbrücken. Disponível em: <https://jochengerz.eu/works/mahnmal-gegen-rassismus>. Acesso em: 19/12/2022.
  • MEDIEN KUNST NETZ. Jochen Gerz, 2146 Steine. Medien Kunstnetz, 2004. Disponível em:http://www.medienkunstnetz.de/works/2146-steine/. Acesso em: 25/10/2022.
  • PERRIN, Julie. Travail de mémoire, travail de l’oubli: Le Monument contre le Facisme de Harbourg. Nyon, 2007. Acesso: 07/11/2021. In: <https://core.ac.uk/download/pdf/20663023.pdf>.
  • REGIONALVERBAND-SAARBRUECKEN. Platz des Unsichtbaren Mahnmals. Disponível em: < https://www.regionalverband-saarbruecken.de/mahnmal/ >. Acesso em: 27/10/2021.
  • HISTORISCHES MUSEUM SAAR. Hintergründe und Freilegung, Geschichte 999 bis 2007. HISTORISCHES MUSEUM SAAR, s.d. Disponível em: <https://www.historisches-museum.org/startseite-en>. Acesso em: 12/12/2022.
  • SYNENKO, Joshua. The Remainders of Memory: Berlin’s Postnational Aesthetic. Ruin, Vol. 11:2, 2014. Disponível em: <http://drainmag.com/the-remainders-of-memory-berlins-postnational-aesthetic/>. Acesso em: 25/10/2022.
  • WAJCMAN, Gérard. 1998, s.p. In: Jochen Gerz. 2146 Steine - Mahnmal gegen Rassismus Saarbrücken. Disponível em: <https://jochengerz.eu/works/mahnmal-gegen-rassismus>. Acesso em: 19/12/2022.
  • YOUNG, James E., The Texture of Memory: Holocaust Memorials and Meaning (New Haven: Yale University Press, 1994).

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Sobre este autor
Cita: Fabiana Costa. "Passado negativo: o processo de construção do Monument Against Racism " 05 Fev 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/995833/passado-negativo-o-processo-de-construcao-do-monument-against-racism> ISSN 0719-8906

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