A arquitetura e os espaços que nos permeiam, assim como a arte, a moda, a alimentação, e tantos outros aspectos que amparam a construção física e social de uma sociedade, desempenham um papel essencial na manutenção dos valores morais e culturais ali estabelecidos. Dentre os espaços construídos, talvez tenha sido a moradia quem exerceu o principal papel na produção e reprodução de relações de poder dentro e fora do âmbito privado.
Sob uma perspectiva de gênero e sexualidade, é no ambiente doméstico que percebemos de forma mais explícita o uso da arquitetura como vetor moral, auxiliando na construção de papéis específicos para as figuras feminina e masculina, e para a compreensão da família nuclear como base da sociedade ocidental.
Como a cidade, a casa é uma das formas simbólicas mais poderosas da cultura. Ela incorpora ideologias específicas, geralmente dominantes, sobre como as pessoas devem viver, quais tipos de valores e hierarquias devem ser promovidos dentro da família e como seus ocupantes devem se relacionar com o mundo público. Historicamente, a imagem, a forma e a estrutura da habitação têm sido usadas tanto por governantes quanto por reformadores para reforçar suas crenças. Portanto, podemos entender por que, assim como na virada do século, as feministas de hoje estão tentando criar suas próprias imagens domésticas para promover a ideia de uma sociedade igualitária não sexista. — Susana Torre. Espaço Como Matrix, 1981
Compreendendo o espaço habitado como construção social, é possível perceber como o sistema econômico, as relações de afeto e a distribuição das tarefas alteram a organização tradicional das moradias de uma determinada sociedade e, partindo de uma compreensão territorial, social e cronológica de sua implantação, pode-se compreender quais aspectos da construção residencial sumiram ou prevaleceram, quais são comuns a diferentes classes sociais e quais as relações de poder intrínsecas à determinada forma de habitar.
Teóricas como Susana Torre (1981) e Leslie Weisman (1981) discorrem sobre a produção habitacional como uma expressão de ideologias específicas promovidas pelo poder dominante. Assumindo esta percepção, é possível analisar a relevância de marcos históricos - como guerras e revoluções - para o incentivo de uma revisão dos valores e hierarquias que constituem o morar. Neste sentido, é por meio da análise das diferentes reformulações nos padrões de moradia que se torna claro o protagonismo do lar enquanto ferramenta política, utilizado como instrumento para controlar e influenciar a forma como nos relacionamos não só no âmbito doméstico, como também no mundo público.
Se na Europa, após a Primeira Guerra Mundial, o déficit habitacional impulsionou uma revisão dos padrões de moradia por meio da construção de habitações com uma redução significativa na média de metros quadrados por apartamento (COSTA, 2018 apud GALLONI, 2021, p.28), essas escolhas práticas também evidenciaram os principais valores sociais, culturais e morais ali vigentes. Frente às limitações de espaço, foi tarefa de profissionais da arquitetura projetar ambientes que permitissem a perpetuação de um sistema social carregado por implicações de raça, classe, gênero e sexualidade.
Para os alemães, uma cozinha altamente funcional e racionalizada foi considerada uma prioridade. A Cozinha de Frankfurt, desenhada por Margarette Schutte-Lihotzky em 1926, foi concebida com o objetivo de englobar, no menor espaço possível, todos os serviços relativos ao cuidado com a casa. Ainda que emblemática por ter sido projetada por e para mulheres com o objetivo de facilitar as tarefas domésticas, esse tipo de design evidencia alguns dos papéis e hierarquias que regiam a organização social do período: o trabalho doméstico deveria ser realizado por apenas uma pessoa (não é uma tarefa que possa ser compartilhada) e a pessoa responsável seria uma mulher (TORRE, 2020 apud GALLONI, 2021, p. 930)
Em oposição à compreensão de que as tarefas domésticas deveriam ser realizadas dentro da esfera privada, para a população russa, após a revolução de 1917, as experiências de reformulação do lar coletivizaram a maior parte dos espaços que compunham a tipologia residencial, como a cozinha, a lavadeira, a sala de visitas e por vezes o banheiro.
No texto “Remaking the Bed: Utopia in Daily Life” (1996), a pesquisadora Olga Matich descreve o conceito “Novyi Byt” (novas formas de domesticidade), promovido por membros da Lef (jornal promovido pela frente esquerdista de artes). A fim de reformar a vida cotidiana e baseados na rearticulação dos limites entre público e privado, propôs-se que os novos núcleos domésticos fossem desatrelados dos valores burgueses de família e domesticidade. A família biológica, assim como a monogamia e a divisão sexual do trabalho, seria dissolvida, e as tarefas domésticas e maternidade tornar-se-iam responsabilidade do estado.
O poder público financiou as Kommunalkis, - apartamentos comunais compartilhados por diferentes famílias - e conjuntos habitacionais como o Narkomfin, complexo residencial composto por pequenos apartamentos que podiam usufruir de programas comunitários como cozinhas e salas de jantar coletivas, lavanderia e jardim de infância. (LUCARELLI, 2016).
No contexto brasileiro, também é possível analisar como mudanças na organização social e política acarretaram transformações radicais nos padrões de moradia. No livro “Gênero e Artefato: O Sistema Doméstico na Perspectiva da Cultura Material”, publicado em 2008, a pesquisadora Vânia Carneiro de Carvalho, discorre sobre a organização do espaço nas moradias de São Paulo entre 1870 e 1920. Até a segunda metade do século XIX a burguesia paulistana tinha como morada típica o sobrado português. A tipologia, concebida em dois andares de planta estreita e profunda, incorporava em um mesmo edifício trabalho e moradia. O andar térreo era dedicado às transações comerciais e, no piso superior, ficavam os cômodos relativo ao âmbito doméstico (CARVALHO, 2008).
Comumente o andar de cima do sobrado tinha uma planta bastante livre, com divisões pontuais. A maioria dos espaços eram usados tanto pela família quanto pelos empregados domésticos, e não havia atividades específicas atribuídas a cada cômodo. A sala de jantar era usada como cozinha, área de serviços e sala de visitas para encontros informais. Os dormitórios, na ausência de um corredor, eram interligados entre si e exerciam a função de conectar os fundos da casa ao espaço mais próximo à fachada. E, na entrada, ficava o salão, um cômodo de tamanho reduzido, pouco frequentado no dia a dia, que era usado como a área mais pública do lar, para se receber visitas formais (CARVALHO, 2008).
A partir do final do século XIX, o fim da escravidão, assim como um contexto de intensa modernização e urbanização mundial e nacional, acarretou uma série de mudanças nos núcleos familiares e suas rotinas domésticas. Uma sociedade que até então tinha suas relações de poder explicitadas por conta de um modelo econômico baseado na colonização e escravidão, encontrou na arquitetura da casa burguesa uma forma de manter as estruturas sociais nítidas.
A “casa moderna”, resultado da apropriação de modelos residenciais da aristocracia europeia para o contexto brasileiro (CARVALHO, 2008), foi concebida com o intuito de evidenciar e facilitar a organização social do período. Valores como a heterossexualidade compulsória, a monogamia, o racismo, e uma ordem social que coloca a figura do pai como superior, seguida da figura materna, dos filhos e dos empregados domésticos foram materializados, tonando-se um componente essencial na concepção das habitações produzidas a partir do século XIX.
Muitas das soluções projetuais que nortearam esta produção habitacional operam ainda hoje no espaço. Aqui pode-se destacar o corredor, mecanismo que organiza a circulação dos usuários da casa evitando encontros indesejados; a fragmentação da moradia em áreas sociais, íntimas e de serviço, o que hierarquiza os usos e, consequentemente, seus usuários; a diferença no tamanho e localização dos dormitórios, que indica a posição social de cada um dos residentes; e a rígida separação entre o trabalho, localizado no caos do meio urbano, e o lar, visto como refúgio, propriedade e um retrato da família por meio de seus bens materiais.
Se a família nuclear, suas relações de poder e afeto, rotinas e comportamentos, é utilizada como molde para o desenho de habitação, é possível compreender que a ideia de lar presente no imaginário ocidental é constituída como um cenário, desenvolvido para que seus personagens exerçam suas performances de gênero, sexualidade e desigualdade com maior eficiência. Nesse sentido, talvez a principal ferramenta para a inversão de normas espaciais esteja em seus usuários. Se casas canônicas são desenhadas para melhor amparar um núcleo doméstico heterossexual e monogâmico, como seria um espaço projetado para abrigar outros tipos de relações sociais e afetivas?
A partir da compreensão do lar não só como uma metáfora para a família nuclear, mas também como veículo para a produção de novas relações sociais, como poderíamos moldá-lo de forma menos atrelada ao regime heteropatriarcal (PRECIADO, 2019, apud GALLONI, 2021, p.50)? Qual é o potencial revolucionário da casa? A lógica heterossexual e patriarcal está tão inserida na formulação da casa ocidental que não conseguimos estudar o papel da mulher no lar sem reproduzir a ideia de que cabe a ela cuidar da casa, alimentar a família e criar os filhos. Como a mulher poderia existir no ambiente doméstico fora desse papel? A mulher lésbica não é uma mulher (WITTIG, 1992, apud GALLONI, 2021, p.50)? A mulher solteira não é uma mulher?
Especialmente no caso de mulheres solteiras, lésbicas ou que experienciam suas vidas afetivas e familiares de forma alternativa àquela que lhes foi atribuída, suas expressões de domesticidade tendem a subverter alguns dos padrões dicotômicos tão comuns ao imaginário construído do que é um lar, como a oposição entre espaços íntimos e compartilhados, femininos e masculinos e a rígida diferenciação entre os âmbitos público e privado.
Compreendendo a produção arquitetônica como um trabalho colaborativo entre todos os agentes envolvidos, Alice Friedman, no livro “Women and the Making of the Modern House” (1998) analisa casas que, embora concebidas por figuras canônicas da arquitetura, têm como principal variante o fato de terem sido encomendadas por mulheres lésbicas, solteiras ou em núcleos domésticos não convencionais. Idealizadas a partir da interpretação de suas próprias necessidades, divergentes daquelas estabelecidas pela família nuclear, estas casas proporcionaram uma nova forma de integrar programa, design e simbolismo, suscitando desenhos transgressores que reformularam o imaginário de domesticidade estabelecido até então.
Nesse sentido, a autora compreende que a chave para o sucesso destes projetos estava em suas usuárias que, por ocuparem uma posição social pouco convencional, impeliram seus arquitetos a fornecer uma gama mais ampla de escolhas, quebrando com normas pré-estabelecidas e criando espaço para novos usos e comportamentos.
Trazendo a análise de Friedman para o sul global, é possível identificar projetos brasileiros que, por meio da autoconstrução, conseguiram se desvencilhar das moradias convencionais ofertadas pelo mercado imobiliário. É o caso das mães do Derick, uma família composta por mulheres lésbicas e não monogâmicas que dividem a maternidade de uma criança na cidade de Matinhos, no litoral do Paraná. A busca desta família por um lar foi documentada no filme “Mães do Derick”, dirigido por Cássio Kelm e lançado em 2020.
Impulsionadas pela insatisfação com a oferta de imóveis em sua cidade - que apresentava organizações internas limitantes e não lhes dava liberdade para fazer reformas conforme seus próprios desejos e demandas - Thammy, Chiva, Bruna e Derick projetaram a própria casa. Por meio de um mutirão feminino e autodidata, construíram uma moradia que abriga não só a família, como também as atividades do Espaço Sideral – um centro cultural comandado por elas.
O propósito de construir uma casa que amparasse as particularidades específicas daquela família, resultou no apontamento de novos caminhos para a organização interna do lar. Ao reiterar a individualidade de cada moradora, elas tornaram obsoleta a figura do quarto de casal, propondo quartos individuais independentemente das relações românticas previamente estabelecidas entre elas. A cozinha, um espaço caracterizado como de serviço e, por esse motivo, muitas vezes isolada e com tamanho reduzido, foi deslocada para a varanda, tornando-se a área mais nobre da casa e possibilitando que as tarefas fossem compartilhadas e socializadas.
É possível presumir que a ausência das normas e amarras impostas pela organização da família nuclear contribuíram para que estas mulheres – assim como aquelas apresentadas no livro de Alice Friedman - buscassem um vínculo maior com seu bairro e comunidade. Sob um olhar voltado para um recorte de gênero e sexualidade, também podemos especular que, por conta de uma dicotomia que associa a figura masculina aos espaços públicos, e a figura feminina aos espaços privados, é pouco surpreendente que, enquanto a comunidade gay se apropriava de tipologias urbanas (criando a sauna, o “banheirão” e o “cinemão”), mulheres lésbicas criaram, dentro de suas casas, seus próprios espaços de socialização e empoderamento.
Este ensaio é fruto do Trabalho de Conclusão de Curso “Corpos Dissidentes, Lares Desviantes: Gênero e Sexualidade na Configuração do Lar”, orientado pela Profa.. Dra. Sabrina Fontenele.
Referências bibliográficas
- CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e Artefato: O Sistema Doméstico na Perspectiva da Cultura Material -. São Paulo, 1870-1920. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2008.
- FRIEDMAN, Alice. Women and the Making of the Modern House: A Social and Architectural History. New Heaven e Londres: Yale University Press, 1998.
- LUCARELLI, Fosco. The Narkomfin Building in Moscow (1928-29): A Built Experiment on Everyday Life. In: Socks Studio, 12 abr. 2016. Disponível em: https://socks-studio.com/2016/12/04/the-narkomfin-building-in-moscow-1928-29-a-built-experiment-on-everyday-life/ Acesso em 15 de julho de 2021.
- GALLONI, Fernanda. Corpos Dissidentes, Lares Desviantes: Gênero e sexualidade na configuração do lar. Orientadora: Sabrina Fontenele. TC (Trabalho de Curso) – Associação Escola da Cidade rquitetura e Urbanismo. 2021.
- MALICH, Olga. Remaking the Bed: Utopia in Daily Life. in Laboratories of Dreams: The Russian Avant-Garde and Cultural Experience. Main Quad: Stanford University Press, 1996, pp. 59-78.
- TORRE, Susana. Space as Matrix. In: Heresies N ° 11: Making Room: Women and architecture, Nova Iorque, v. 3, n. 3, p. 51, 1981
- WEISMAN, Leslie Kanes. Women’s Environmental Rights: A Manifesto. In: Heresies N ° 11: Making Room: Women and architecture, Nova Iorque, v. 3, n. 3, 1981
Este artigo é parte dos Tópicos do ArchDaily: Mulheres na arquitetura. Mensalmente, exploramos um tema específico através de artigos, entrevistas, notícias e projetos. Saiba mais sobre os tópicos do ArchDaily. Como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossos leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.
Além disso, convidamos você a assistir ao lançamento de Women in Architecture, um documentário realizado pela Sky-Frame sobre três arquitetas inspiradoras: Gabriela Carrillo, Johanna Meyer-Grohbrügge e Toshiko Mori. O filme será lançado no dia 3 de novembro de 2022.