Edifício gentil: como a arquitetura pode melhorar a nossa cidade

Como é a experiência de caminhar ao longo dos prédios e casas da rua onde você mora? Ou da rua onde você trabalha, estuda, faz compras, leva as crianças para a escola? Que relação esses prédios/casas têm com a calçada? Como eles tratam os pedestres? Dá vontade de passar na frente deles? Eles acolhem ou repelem? 

São edifícios gentis… ou hostis?

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Este artigo apresenta o conceito do edifício gentil, ou seja, aquele que trata bem os pedestres, que é generoso com a cidade e melhora a experiência de quem caminha em frente a ele, ou que a ele se dirige. E, claro, do edifício que não faz nada disso: o edifício hostil.

Edifícios, em diferentes áreas das nossas cidades, ao invés de voltarem seus “olhos” para os espaços públicos, como já dizia Jane Jacobs em Morte e vida de grandes cidades — ou seja, suas frentes, com portas e janelas —, voltam seus lados, suas fachadas cegas ou fundos.

Fecham-se em muros altos e grades; elevam seus térreos para aflorar garagens, criando barreiras no nível do solo; interiorizam atividades que poderiam abrir-se diretamente para as calçadas; dão prioridade ao carro. Com tudo isso, prejudicam a experiência do pedestre e a vitalidade urbana onde se inserem, tornando os lugares desinteressantes, inseguros, ermos. Inúmeros são os exemplos, e ainda é escasso esse debate.

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Conjunto Nacional na Avenida Paulista, São Paulo. Foto © Daniel Ducci

Vários estudos dão conta de que há certas características de edifícios que tendem a favorecer a experiência das pessoas que circulam pela cidade: ausência de recuos frontais ou laterais, portas e janelas abrindo para o espaço público, fachadas ativas ou permeabilidade visual no nível do térreo… No entanto, infelizmente, a materialização dessas características vem sendo dificultada por um mau desenho urbano, pela legislação ou por exigências do contratante do projeto.

No entanto, proponho que é possível desenvolver uma interface gentil para o espaço público, mesmo com as limitações impostas pelas condições dos lotes, pelos parâmetros urbanísticos, pelo cliente, pelo programa de necessidades… Tudo é uma questão de escolha. O edifício gentil representaria uma arquitetura que lança mão de um repertório que torna sua interface agradável a quem passa.

Esse termo faz pensar em outros semelhantes. O livro Gentle architecture (Malcolm Wells, 1982) e o projeto de pesquisa Kind architecture (Saeidi e Anderson, 2020) relacionam arquitetura e meio ambiente. Em que pesem as fundamentais preocupações ecológicas e a necessidade de se incorporar, na prática arquitetônica, técnicas de baixo impacto ambiental, o edifício gentil volta-se para as pessoas, em sua experiência local e cotidiana.

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Conjunto Nacional na Avenida Paulista, São Paulo. Foto © Daniel Ducci

O termo gentileza urbana vem comparecendo na divulgação de empreendimentos imobiliários para designar ações voluntárias de melhoria nos espaços públicos a eles adjacentes. É como um “presente” que a nova construção estaria dando para a cidade, normalmente englobando ampliação e melhoria de calçadas, criação de locais de estar e projeto paisagístico que, não raro, contribuem para sua própria valorização.

No entanto, essas melhorias não substituem os atributos necessários a um edifício gentil. Embora muitas sejam positivas e possam ser estimuladas, costumam mascarar a hostilidade das novas construções.

Como a definição de um conceito traz sua antítese, no outro extremo temos o edifício hostil. Assim, vem à mente a expressão arquitetura hostil, que designa o produto de uma prática tão antiga quanto deplorável: a de colocar, em espaços públicos ou no entorno de edifícios, elementos de mobiliário urbano ou obstáculos para afastar as pessoas, restringir seu comportamento ou tornar sua experiência menos confortável. No edifício gentil, como veremos, não cabe essa prática.

As características do edifício gentil são oito:

Está na altura do solo

O edifício gentil se assenta no terreno de tal forma que todas as suas fachadas voltadas para logradouros públicos estejam niveladas com eles. Ele procura resolver problemas de desnível internamente. Ele não faz aflorar seu subsolo. Ele integra seu térreo ao espaço público. Ele é acessível sem gerar barreiras.

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Faculdade de Direito de Buenos Aires, Argentina, e sua escadaria tão desnecessária quanto pretensiosa. Imagem: UBA
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Casa Rosada, sede do Governo Federal Argentino (Carl Kihlberg, Henrik Åberg, Francesco Tamburin) mostra-se acessível a partir da fronteiriça Plaza de Mayo. Imagem: Ted McGrath/Flickr
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Edifício em rua comercial de Brasília, com subsolo aflorado, elevando seu térreo e separando-o do fluxo da calçada. Imagem: Gabriela Tenorio
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Tipo edilício em Montague Street, Londres, Reino Unido. Embora o acesso não seja no mesmo nível da calçada, a elevação do térreo e a visibilidade do pavimento semi-enterrado não prejudicam a experiência do pedestre. Imagem: Reinaldo Germano

O edifício gentil alinha-se com o espaço público, configurando-o e voltando sua(s) frente(s) para ele

Ele organiza sua fachada para estar alinhada ao espaço público circundante. Ele não dá ombros ou costas. Ele trata todas as suas fachadas para logradouros públicos como frentes.

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Primeira Avenida, em Nova York, EUA. Vista aérea de trecho que contrasta os edifícios não alinhados com as vias e soltos no espaço público da Peter Cooper Village com edifícios contíguos voltados para as ruas. Imagem: Google Street View
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O Comércio Local Sul, em Brasília, possui duas frentes para o espaço público, sendo a da esquerda tratada como tal. Imagens: Gabriela Tenorio
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E a da direita tratada como fundos. Imagens: Gabriela Tenorio

Convida e recebe o pedestre e o ciclista antes que o automóvel

Não coloca bolsões de estacionamento entre si e a rua. Ele considera a localização de paradas de ônibus, ciclovias, faixas de pedestre. Ele dá continuidade às calçadas, sem bloqueios, interrupções ou estrangulamentos. Ele se preocupa com as normas de acessibilidade. O acesso dos carros ao lote e as rampas de garagem não prejudicam a experiência do pedestre/ciclista.

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Os carros têm precedência aos pedestres na área em frente a essa lanchonete no Guará, Distrito Federal. Imagem: Gabriela Tenorio
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A rampa de garagem deste prédio em Brasília rompe a calçada, obrigando o pedestre a ir para a pista. Imagem: Gabriela Tenorio

Abre portas para o espaço público

Ele se abre, no nível do térreo, para o espaço público. Suas entradas principais são para os pedestres. Que são claras e evidentes. Ele traz mais transparências que opacidades na fachada térrea.

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Edifícios na Via W3, Brasília. Esquerda: edifícios contíguos, fachadas estreitas e muitas portas e vitrines. Imagem: Google Street View
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Na mesma avenida, o edifício construído a partir do remembramento de vários lotes manteve apenas uma porta. O restante da fachada térrea possui superfícies opacas e desinteressantes. Imagem: Google Street View

Abre janelas para os espaços públicos

Ele possui janelas e varandas nas faces voltadas para logradouros públicos. Ele traz mais transparências que opacidades na fachada dos pavimentos superiores.

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Copenhague, Dinamarca. Parede sem janelas de edifício na Gammel Kongevej. Imagem: Gabriela Tenorio
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Também em Copenhague, luzes acesas nos pavimentos superiores ajudam a iluminar o espaço público. Imagem: Reinaldo Germano

Não usa muros ou elementos opacos em seus limites

Ele delimita sua área privada com elementos que permitam permeabilidade visual, ou utiliza estratégias de áreas de transição.

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Escola murada na Ceilândia, Distrito Federal. Imagem: Google Street View
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Escola gradeada em Vicente Pires, Distrito Federal. Imagem: Google Street View
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O belo edifício de Elvin Dubugras para a Cultura Inglesa da Asa Sul, com estratégia de distanciamento da calçada, preservando a atividade educacional e, ao mesmo tempo, incluindo os passantes em sua área livre. Imagem: Google Street View

Não utiliza elementos para afastar as pessoas

Ele não lança mão de artifícios da arquitetura hostil para impedir que as pessoas sentem, deitem ou se aproximem, ou para prejudicar suas práticas.

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Edifício em Buenos Aires, Argentina. Imagem: Gabriela Tenorio

Não coloca em sua fachada elementos que piorem o microclima exterior

Ele busca resolver seus problemas de microclima interno sem piorar o ambiente externo. Ele não usa revestimentos que possam gerar ofuscamento ou desconforto térmico. Ele não volta para o espaço público equipamentos que gerem ruído ou calor.

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Ao fundo, 20 Fenchurch Street, edifício conhecido como Walkie Talkie, Londres, Reino Unido, chegou a derreter a lataria de um carro. Imagem: Boortz47/Flickr
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O hotel Parkroyal on Pickering, Singapura, já recebeu prêmio internacional de sustentabilidade, mas pouco contribui para a experiência do pedestre no nível local. Imagem: Choo Yut Shing/Flickr

As características do edifício gentil não estão vinculadas a um uso específico. Parece lógico imaginar que edifícios comerciais tendem a ser mais gentis pela natureza da atividade que abrigam, mas, na verdade, qualquer programa pode gerar um edifício hostil ou gentil, a depender das escolhas arquitetônicas.

A embaixada de Israel fica localizada ao lado da embaixada do México, em Brasília, e suas interfaces não poderiam ser mais diferentes. O Museu da República, também em Brasília, como concepção de edifício cultural, é radicalmente oposto ao Centro Internacional de Congresso Le Vinci, em Tours, que desdobrou seu programa na fachada térrea voltada para uma rua preexistente, criando uma série de lojinhas cujas dimensões e quantidade auxiliam a manter a escala e o caráter do lugar, mesmo frente a uma intervenção contemporânea daquela monta.

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Embaixada de Israel. Imagem: Google Street View
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Embaixada do México. Teodoro González de León, Abraham Zabludowsky e Francisco Serrano. Imagem: Google Street View
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Centro Internacional de Congresso Le Vinci, Tours, França. Atelier Jean Nouvel. Imagem: Gabriela Tenorio

Tudo é uma questão de escolha, e não há ingenuidade aqui. Como professora de arquitetura e urbanismo, a motivação para explorar essa temática e criar esses termos foi auxiliar na formação de novos arquitetos, para lhes dar uma lente que lhes fizesse ver esses efeitos específicos da forma arquitetônica, a ser usada na sala de aula e incorporada para a vida profissional afora.

No entanto, sei que grande parte da produção da arquitetura hostil não vem de desconhecimento de seus efeitos, mas de escolhas conscientes — políticas, sobretudo, mas também econômico-financeiras, sendo que legislações restritivas e anacrônicas também levam a isso. Netto, Saboya, Vargas e Carvalho, no livro Efeitos da arquitetura, dizem que “quando coisas e relações ganham nomes, elas passam a existir conscientemente em nossas visões e práticas”.

As expressões edifício gentil e edifício hostil são propostas para destacar padrões de interface positivos e negativos e, com isso, auxiliar arquitetos e não-arquitetos a distinguir os edifícios que prestam um serviço dos que prestam um desserviço ao espaço público e à vida pública de nossas cidades. A contribuição vem no sentido de denominar o fenômeno, tornando didática a sua compreensão para, com sorte, orientar práticas arquitetônicas mais generosas.

Via Caos Planejado.

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Sobre este autor
Cita: Gabriela Tenorio. "Edifício gentil: como a arquitetura pode melhorar a nossa cidade" 24 Set 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/988709/edificio-gentil-como-a-arquitetura-pode-melhorar-a-nossa-cidade> ISSN 0719-8906

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