Edifícios transparentes e a ilusão da democracia

Entre 1914 e 1915, Le Corbusier projetava a Maison Dom-Ino, uma proposta de sistema estrutural que subvertia os modelos de então substituindo densas paredes portantes por pilares e lajes de concreto reforçado com aço. Muito mais leve e composto por elementos esbeltos, a este sistema se uniria o uso de grandes superfícies de vidro que garantiriam, de uma só vez, a entrada de higiênica luz solar nos espaços interiores e uma almejada transparência arquitetônica que diluiria as fronteiras entre interior e exterior – ao menos, metaforicamente.

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Mais de um século depois de Le Corbusier compartilhar suas ideias para a Dom-Ino, a arquitetura contemporânea, na esteira de uma prolongada modernidade, continua investindo no vidro como solução para fechamentos. É claro que ao longo de tanto tempo o significado atribuído a este material mudou, ao menos em parte: da transparência inicial que possibilitava a compreensão estrutural da obra, o vidro passou a ser associado a valores ideológicos, vindo a ser empregado em projetos de cunho político por evocar uma abertura que extrapola o plano físico e passa a compreender também a esfera do simbólico. Um exemplo disso, comenta o crítico e historiador Hal Foster no livro O complexo arte-arquitetura, é o projeto de remodelação do Reichstag, o Parlamento Alemão em Berlim, desenvolvido pela Foster + Partners. Neste, assim como em outros projetos concebidos pelo mesmo escritório e por diversas outras firmas, busca-se uma analogia entre abertura arquitetônica e abertura política: o vidro expressa a transparência e acessibilidade do processo democrático.

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Reichstag, Berlim. Foto de Ricardo Gomez Angel, via Unsplash

Outro projeto que explora esta analogia é o Tribunal de Justiça de Bordeaux, de Rogers Stirk Harbour + Partners. Amigo e ex-sócio de Norman Foster, Richard Rogers compartilha com o autor do Reichstag a ideia de que a transparência material do vidro pode refletir a transparência de um estado democrático – ou, pelo menos, esta é a ideia que seus projetos tentaram vender para os governos europeus (mas não só) em um momento marcado pelo espírito de unificação, anterior à crise de 2008. Projetos como este, diz o historiador de arte, buscam encarnar valores democráticos de abertura e participação.

A analogia é, entretanto, ingênua e duvidosa. Forçar uma aproximação entre valores materiais, valores democráticos e valores simbólicos pode ser perigoso e, em alguns casos, absurdo. Exemplo disso é o projeto para o Supremo Tribunal de Singapura, também projetado pela Foster + Partners – dado o histórico geral daquele governo, a associação direta entre a materialidade do edifício de vidro e valores simbólicos de abertura e transparência não faz sentido algum e parece estar muito mais atrelada à imagem de uma arquitetura espetacular, brilhante, que a uma instituição criada para atender às necessidades do povo. 

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New City Hall in Buenos Aires / Foster + Partners. Cortesia de Foster + Partners

A transferência de uma característica física a um valor simbólico é explorado ainda em outros projeto, como a Nova Sede Prefeitura Buenos Aires, do mesmo escritório: uma caixa de vidro coberta por uma superfície ondulante de concreto cujos "espaços de atividades são abertos, naturalmente iluminados e visíveis, garantindo uma boa comunicação entre os departamentos e promovendo um senso de integração com a comunidade". Ou ainda na Sede da Ordem dos Advogados de Paris (MOdA), de Renzo Piano Building Workshop, escritório comandado por outro amigo de Richard Rogers. Com uma curiosa planta triangular e praticamente todo revestido em vidro, o "MOdA se revela como um edifício leve e transparente, expondo conscientemente o seu programa e conteúdo para a cidade.

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MOdA - Sede da Ordem dos Advogados de Paris / Renzo Piano Building Workshop. Foto: © Sergio Grazia
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United States Courthouse / Richard Meier & Partners. Cortesia de Richard Meier & Partners

O projeto para o Palácio de Justiça dos Estados Unidos em Phoenix, projetado por Richard Meier & Partners, é outro exemplo do emprego dessa analogia: uma enorme caixa de vidro sobre a qual repousa uma cobertura estruturada por treliças metálicas que se apoiam em colunas muito esbeltas. No centro da planta, um átrio – um espaço intensamente iluminado que garante clareza e visibilidade em todas as direções. Na França, o Palácio de Justiça de Paris, outro projeto de Piano, se constitui como um empilhamento de blocos envidraçados e, apesar da escala maior que dificulta uma apreensão direta do público, os arquitetos deixam claro que "a ampla recepção é completamente visível a partir do exterior devido a sua fachada de vidro, reforçando o conceito de um edifício transparente e de fácil orientação".

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Palácio de Justiça de Paris / Renzo Piano Building Workshop. Foto: © Sergio Grazia

Estratégias semelhantes são encontradas ainda no Anexo do Palácio de Justiça de León na Espanha, do escritório Enrique Bardají & Asociados, na Prefeitura de Westland em Naaldwijk, Países Baixos, projetada pelo architectenbureau cepezed, ou no Tribunal de Justiça Queen Elizabeth II em Queensland, Austrália, por Architectus + Guymer Bailey Architects. Este último, "divergindo radicalmente do projeto tradicional de tribunais, proporcionando espaços abertos, acessíveis e transparentes concebidos para expressar os valores que estão no cerne de nosso modo de vida democrático, incluindo a justiça e a abertura."

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Courthouse Extension / Enrique Bardají & Asociados. Foto: © José Manuel Cutillas Medina

Paralelepípedos de vidro, com ou sem elementos de proteção solar, cobertos pelas mais variadas estruturas parecem conformar um novo arquétipo para edifícios governamentais e institucionais. A solidez e opacidade das edificações clássicas, que durante séculos serviram ao poder não só funcionalmente, mas sobretudo simbolicamente, passou no século XX por um exame de raio-X do qual restou apenas a imagem de um esqueleto estrutural envolto por uma leve superfície quase imperceptível. Os valores envolvidos nessa translação sugerem o maior comprometimento destas instituições com a democracia e com o povo, mas exemplos já consolidados mostram que essa relação direta pode ser duvidosa ou leviana. Então, por que os arquitetos continuam projetando estes edifícios assim? Seria por um apego às antigas virtudes da transparência, ou pela ingênua esperança de que, ao parecer transparente, chegarão a sê-lo?

Arquiteturas translúcidas e turvas, que não deixam ver claramente o que se passa em seus interiores, talvez simbolizassem melhor o cenário político atual. Em um momento histórico tão desafiador para a democracia e os direitos humanos, uma coisa permanece como verdade: edifícios transparentes podem abrigar governos autoritários, opacos e fascistas.

As citações no texto foram retiradas dos memoriais enviados pelos autores de cada projeto. 

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "Edifícios transparentes e a ilusão da democracia " 23 Jan 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/955107/edificios-transparentes-e-a-ilusao-da-democracia> ISSN 0719-8906

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