Arquiteturas e máscaras: a representação do tempo nas imagens

Fabricado entre 1924 e 1928, o Avions Voisin C7 apresentava uma construção inovadora para a época. O uso intenso de vidro, uma carroceria de alumínio e os ângulos agudos remetiam às formas de uma aeronave. Este era o automóvel que Le Corbusier gostava de estacionar em frente às suas obras – para o arquiteto, o automóvel era a tradução definitiva da modernidade e da técnica combinadas em um único objeto. Ele acreditava firmemente que a arquitetura tinha muitas lições a aprender com a máquina.

Com 3 marchas e 30 cavalos de força, dificilmente alguém utilizaria esse carro atualmente, e a indústria automobilística já sofreu inúmeras inovações desde a época. A arquitetura de Corbusier, no entanto, não parece tão datada aos olhos: são os automóveis registrados junto a um edifício recém construído que mais evidenciam o quão antiga é a foto. Localizar subsídios que denunciem o período da fotografia é um método eficiente, e para a arquitetura isso é ainda mais evidente. Seja um eletrodoméstico, um monitor de computador ou um detalhe específico, há elementos que tornam esse trabalho mais fácil. 

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O registro do tempo em que a imagem da arquitetura foi produzida é uma questão há muito em pauta. Contudo, não se trata apenas de o que as fotografias registram, mas como elas registram. Ignasi de Solà Morales, em seu livro Territorios (2002), oferece um interessante olhar sobre a relação entre cidade e suas imagens. Segundo ele, os modos de representar a cidade – e, consequentemente, suas arquiteturas – se transformam à medida que novos aparatos técnicos vão sendo desenvolvidos e, mais importante, quando os meios estéticos correntes passam a não dar mais conta de representar as complexidades da cidade e da vida urbana.

Paris, Londres e Viena, chamadas de “cidades-capital” pelo autor, apresentaram intenso desenvolvimento urbano e industrial a partir de meados do século XIX. Não por acaso, o meio mais recorrente de representação das imagens do mundo até então – a pintura – passa, pouco a pouco, a dar lugar à fotografia, uma tecnologia daquele tempo, que serve de ferramenta de registro das grandes transformações que aconteceram naqueles centros urbanos. “Imagens da acumulação, da aglomeração, das massas nas ruas”, marcaram o período. O autor segue: “A cidade-capital se apresenta destas maneiras. Perspectivas longas e focadas em um monumento de utilidade pública: uma estação ferroviária ou um teatro de ópera substituem o aspecto pitoresco das vedutte do século XVIII.”[1]

O crescimento acelerado e as mudanças estruturais de cidades como Barcelona e Berlim nas primeiras décadas do século XX é, por sua vez, acompanhado de uma mudança nos modos de representação da urbe. Fotografias focadas em monumentos ou grandes obras já não davam conta de representar a cidade que se espalhava fragmentariamente pelo território, e os retratos passaram a dar lugar a fotomontagens e colagens que não mais elegiam um foco específico, mas revelavam um olhar difuso, pouco centralizado sobre as cidades. Colagens de Paul Citroën, László Moholy-Nagy e El Lissitzky, para mencionar apenas alguns, ajudam a conformar um quadro que representa não apenas o crescimento das cidades da época, mas a atmosfera sociocultural daquele momento histórico. 

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Paul Citroen, "Metropolis" (City of My Birth) (Weltstadt [Meine Geburtsstadt]). Créditos © 2015 Paul Citroen/Artist Rights Society (ARS), New York/Pictoright, Amsterdam

Essas transformações nos modos de representar a cidade em decorrência das particularidades do tempo presente ocorrem ao longo de todo o século XX e podem ser vistas, também, em imagens de arquitetura. As fotografias feitas por Julius Shulman das Case Study Houses são um interessante exemplo. Promovido pela revista Arts & Architecture entre 1945 e 1966, o projeto convidou arquitetos de prestígio internacional a projetarem residências unifamiliares eficientes e acessíveis que representassem o espírito daquele tempo – um momento marcado pelo fim da Segunda Guerra Mundial e intenso crescimento e espraiamento das cidades norte-americanas. Alguns daqueles projetos saíram do papel e se tornaram ícones do que se convencionou chamar de Estilo Internacional.

Mais do que arquitetura, aquelas casas representavam um estilo de vida – um sonho – e suas imagens deveriam expressar este desejo. As fotografias feitas por Shulman para as Casas #9, #20B, #21B e #22, por exemplo, não se resumem ao registro material de superfícies arquitetônicas – paredes, piso, teto –, elas representam um espaço moderno vivido, ocupado por seus habitantes também modernos. Elementos de mobiliário, vestuário e, em alguns casos, as cores nos transportam para algum momento entre as décadas de 1940 e 1960 em que fumar não fazia mal à saúde e o sonho de todo cidadão norte-americano era ter sua casa própria com piscina no subúrbio e um carro (muito mais moderno que o Avions Voisin C7 de Le Corbusier) na garagem. Aos olhos de hoje, as imagens de Shulman são datadas. No entanto, sua capacidade de representar não apenas o espaço, como também o tempo, é inegável.

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Julius Shulman. Case Study House #22, 1960 (Architect: Pierre Koenig) © J. Paul Getty Trust. Usada com permissão. Julius Shulman Photography Archive, Research Library at the Getty Research Institute (2004.R.10). Cortesia de Barbican Art Gallery
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Julius Shulman. Case Study House #22, 1960 (arquiteto: Pierre Koenig) © J. Paul Getty Trust. Usada com permissão. Julius Shulman Photography Archive, Research Library at the Getty Research Institute (2004.R.10). Cortesia de Barbican Art Gallery

Outro modo de registrar o tempo pode ser encontrado nas fotografias de longuíssima exposição de Michael Wesely. O artista alemão desenvolveu câmeras que permitem a exposição de um mesmo negativo por grandes períodos: horas, dias ou até anos. A imagem resultante é uma sobreposição simultânea de inúmeras camadas, variando entre a nitidez e o enevoamento, representando de alguma forma tudo o que passou pelo frame durante o tempo de abertura do diafragma. Possivelmente sua série mais conhecida tenha sido da reconstrução da Potsdamer-Leipziger Platz em Berlim, entre 1997 e 1999, cujas imagens resultantes mostram uma mistura entre o panorama da cidade ao fundo, andaimes e borrões dos novos edifícios construídos. Guilherme Wisnik afirma que “a perturbação da nitidez das cenas lança luz sobre o fato de que toda imagem sintética é ilusória, pois carrega sempre inúmeras dimensões ocultas que não chegam a nós, ou que preferimos não ver.” [2] 

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Nova Iorque fotografada por Michael Wesely. 9 August 2001 - 2 May 2003 The Museum of Modern Art, New York, 2001-03. © 2018 Artists Rights Society (ARS), New York/VG Bild-Kunst, Bonn. Crédito: MoMA. Comprado. Sob termos de "Fair Use"

Questões relativas ao momento presente, isto é, ao tempo em que vivemos, vêm sendo incorporadas às imagens do espaço, seja por meio do artifício estético empregado – por exemplo, as colagens de Moholy-Nagy ou as fotografias de longuíssima exposição de Wesely –, seja pelos elementos e objetos presentes na imagem – recordemos o carro de Le Corbusier e as fotografias de Shulman. Mais recentemente, durante o ano de 2020, uma série de projetos enviados para publicação no ArchDaily têm mostrado pessoas usando máscaras. Mais do que meras escalas de projeto, estas pessoas figuram como atores nestas imagens, testemunhas do período histórico em que as obras foram fotografadas. Seja em contextos domésticos, como na Casa RM, de Pedro Miguel Santos, comerciais (Apple Marina Bay Sands / Foster + Partners), ou urbanos, como em um projeto de Renovação em Shenzhen, esta decisão compositiva do registro arquitetônico é uma evidência de como o vírus mudou os cotidianos, as formas de habitar e nos relacionarmos com os espaços.

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Casa RM / Pedro Miguel Santos. Image © Alexander Bogorodskiy
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Apple Marina Bay Sands / Foster + Partners. Image © Finbarr Fallon
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Micro Tropicality, RAD+ar HQ / RAD+ar (Research Artistic Design + architecture). Image © William Sutanto

Mascaradas, distantes pelo menos 1,5m umas das outras, estas escalas humanas desmascaram o assombroso fato que não vivemos um tempo de exceção: coronavírus já é a história; coronavida [3], o nosso presente. 

Notas
[1] Solà-Morales, Ignasi de. Territorios. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002 / 62 pp.
[2] Wisnik, Guilherme. Dentro do Nevoeiro: arquitetura, arte e tecnologia contemporânea. São Paulo: Ubu Editora, 2018 / 352 pp.
[3] Beiguelman, Giselle. Coronavida: pandemia, cidade e cultura urbana. São Paulo: ECidade, 2020.

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Sobre este autor
Cita: Eduardo Souza e Romullo Baratto. "Arquiteturas e máscaras: a representação do tempo nas imagens " 01 Nov 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/948913/arquiteturas-e-mascaras-a-representacao-do-tempo-nas-imagens> ISSN 0719-8906

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