A urbanização de Xangai: vitrine de uma nova China

Em 2013, o filme “Ela”, onde o protagonista se apaixona por uma assistente virtual, tentava representar um futuro não tão distante de uma realidade relativamente distópica. Apesar da cidade representada ser, provavelmente, uma Los Angeles futurista, as filmagens foram feitas em Xangai. Depois de visitar a cidade, acredito que foi uma decisão acertada, dada a atmosfera constante que leva a essa temática. Lembro de me encontrar sobre uma gigantesca passarela de pedestres circular sobre a rotatória Mingzhu, que liga importantes avenidas no coração de Pudong, o atual centro de negócios de Xangai. À minha frente vejo a bizarra Oriental Pearl Tower, torre de TV com 467 metros de altura construída por uma estatal chinesa em 1994. Quando olho para trás e para cima e vejo a Shanghai Tower, segundo maior edifício do planeta com impressionantes 632 metros de altura, o impacto é ainda maior. Esta é a imagem de Xangai para o mundo, a vitrine de uma nova China, quebrando paradigmas e atingindo os céus.

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Do ponto de vista urbanístico, não são apenas os prédios altos que interessam no estudo de Xangai, mas também a sobreposição de diferentes camadas de planejamento urbano de cada época. A origem da cidade como assentamento pode ser traçada milhares de anos atrás, sendo a origem estrutural da Xangai atual de quase 700 anos, no início da dinastia Yuan, iniciada pelo reino de Kublai Khan, neto de Genghis Khan. Em 1553, durante a dinastia Ming, foi construída uma muralha ao redor da cidade para protegê-la de piratas japoneses, formando a primeira limitação urbana evidente. Avançando para o século XIX, com a Guerra do Ópio, a China foi ocupada por ingleses, franceses e americanos durante quase 100 anos, levando a influências profundas em um momento de aceleração da urbanização pelo mundo. Em resumo, os ingleses começaram a contrabandear ópio para dentro da China. Em 1839, em uma tentativa chinesa de barrar o contrabando, ingleses retaliaram com seu poderio naval, tendo ganho a guerra e, neste primeiro episódio definitivamente vitorioso para os ingleses, recebendo em troca a ilha de Hong Kong e tratados de portos comerciais em cinco cidades, sendo Xangai uma delas.

A cidade então foi dividida em três áreas: a área antiga e central, antigamente murada, permaneceu sob controle dos chineses. Ingleses e americanos ocuparam a área ao norte e os franceses a área ao sul. As ocupações, que duraram até o início da Segunda Guerra Mundial, tiveram forte impacto no desenvolvimento da cidade, e cada região cresceu de forma característica à cultura que ali habitava. Por exemplo, o famoso “Bund”, área central da orla do rio Huangpu, apresenta uma sequência de edificações de arquitetura britânica da época, e a região francesa também ainda mantém características visuais que podem nos lembrar da cidade de Paris.

Vista noturna do Bund: uma série de edifícios neoclássicos da época da concessão britânica abrigavam, até os anos 40, bancos e instituições financeiras. Tomados pelo governo durante a era comunista, foram gradualmente sendo devolvidos a usos comerciais a partir dos anos 80. Imagem: NW Leung/Flickr

Assim como Pequim, Xangai também tem um enorme pavilhão de exibição sobre o seu planejamento urbano. Mapas mostram que, no final do século 19, Xangai era apenas um pequeno entreposto comercial ocupado pelos ocidentais. Foi em 1927 a proposta do “Great Shanghai Plan”, ou “Grande Plano de Xangai”, que incorporava as ideias modernistas de planejamento da época, com um xadrez viário de ruas mais largas e divididas hierarquicamente, além de introduzir o conceito do zoneamento. Este formato era um contraponto tanto ao desenvolvimento urbano tradicional chinês, com ruas estreitas, e ao desenvolvimento das áreas ocupadas, que ainda mantinham características pré-modernas e sem foco no automóvel, dada a época anterior à Revolução Industrial.

Mas este plano não foi realizado, sendo apenas na década de 50, após a Segunda Guerra Mundial, que foram implementados os primeiros planos urbanísticos após o período das concessões europeias. O Plano Urbano da Grande Xangai começou incorporando sua zona metropolitana, que aumentou em 1958, englobando dez outros condados, com a meta de atingir 15 milhões de habitantes em 50 anos. Com a maioria dos habitantes ocupando as regiões centrais, o plano propunha uma “descentralização orgânica”, transformando as zonas industriais centrais em residenciais e criando cidades satélites para acomodar as indústrias, prevendo acessibilidade viária para as periferias. Por incrível que pareça, a cidade conseguiu superar a marca do plano, tendo hoje quase 25 milhões de habitantes.

Maquete da região central de Shanghai no Pavilhão de Planejamento Urbano: edifícios iluminados são os novos empreendimentos. Imagem © Anthony Ling

Os leilões para leasing, ou arrendamento, de terra iniciaram em Xangai em 1988 e deslancharam na década de 90. Entre 1989 e 1993 o valor de aluguel em edifícios de escritórios quadruplicou, e em 1993 o governo federal chinês designou uma Zona Econômica Especial em Pudong, a margem leste do Rio Huangpu, chamada Lujiazui. Foi neste momento que se iniciou a transformação radical da paisagem para a Xangai contemporânea, movida pelo investimento de estatais chinesas e coroado com a emblemática torre Oriental Pearl. Segundo Alain Bertaud, outro fator que levou ao desenvolvimento de Pudong foi o forte investimento em infraestrutura realizado pela prefeitura. Em 1991 foi construída a primeira ponte ligando o Bund e Pudong. Em seguida vieram outras duas pontes, quatro túneis e quatro linhas de metrô que permitiam chegar em Pudong em uma questão de minutos. O modelo de desenvolvimento em Pudong segue até hoje: o Shanghai Tower, arranha-céu que perde apenas para o Burj Kahlifa em Dubai, é de um consórcio de empresas estatais chinesas e foi financiado em grande parte pelo governo municipal de Xangai. Assim como outros projetos de torres gigantescas pelo mundo, desde o Empire State ao atual líder em altura Burj Kahlifa, parte significativa do edifício permaneceu vazio após sua inauguração em 2015, e continua até a data desta postagem.

Lilongs, na Velha Shanghai próximo à zona turística do Yu Garden. Imagem © Anthony Ling

Em constraste significativo, do outro lado do rio de Pudong ainda é possível encontrar a “Velha Xangai” em Laoximen, no distrito de Huangpu. Ocupando basicamente a “seção chinesa” de Xangai e parte da concessão francesa, ao norte, Huangpu é um dos últimos lugares que mantém as características de Xangai após as grandes transformações dos últimos vinte anos. Apesar da arquitetura tradicional e baixa altura dos seus prédios, tem uma densidade maior que a média da cidade, com cerca de 32 mil habitantes por quilômetro quadrado. Parte desta área foi protegida como patrimônio histórico da cidade, mas nem toda ela é atraente do ponto de vista turístico. Caminhando poucas quadras além do imperdível Yu Garden ainda é possível experienciar os lilongs, como chamam os pequenos becos destas comunidades antigas em Xangai. Predominam comunidades de baixa renda, construções deterioradas e um comércio de baixa qualidade que não é visto com bons olhos pelo governo local, que gradualmente tem redesenvolvido a área a partir de suas iniciativas de planejamento urbano.

Tradicional shikumen “Cité Bourgogne”, próximo à West Jianguo Road. Imagem © Anthony Ling

Um tipo específico de lilong é chamado de shikumen, onde conjuntos de edificações geminadas separadas por becos estreitos misturam conceitos da arquitetura tradicional chinesa com as ocidentais que ocupavam a cidade durante o período de concessão. Elas lembram, de certa forma, as casas geminadas inglesas que se popularizaram durante a Revolução Industrial. Iniciadas na metade do século 19, os shikumen foram construídos em Xangai até o fim do período das concessões na Segunda Guerra, sendo uma forma lucrativa para produção de moradia acessível. Assim como os lilongs, muitos shikumen já foram demolidos, embora alguns tenham sido recentemente demarcados como patrimônio histórico. A característica atual destas comunidades varia pela cidade: os moradores do shikumen que visitamos eram de uma classe média trabalhadora, resistindo o crescente custo de oportunidade de morar na zona da concessão francesa, área central e valorizada da cidade. No entanto, já é possível encontrar na internet apartamentos de shikumens que foram remodelados para receber turistas, e relatos de xangaineses que, após período morando no exterior, retornaram a sua cidade com o olhar de preservar o patrimônio arquitetônico das rápidas transformações que a cidade passou durante seu tempo fora, preservando e reformando as edificações tradicionais.

Área emblemática que já passou por transformação radical é Xintiandi, que até poucos anos atrás também era um conjunto de lilongs populares, hoje totalmente demolidos. O empreendimento, atualmente um destino que chama atenção na cidade, foi desenvolvido pelo grupo Shui On, que investiu cerca de U$170 milhões para renovar a área. Artigos sobre Xintiandi dizem que o projetou preservou algumas das casas antigas, mas grande parte do projeto é uma mistura arquitetônica um tanto forçada de réplicas de construções antigas e de projetos contemporâneos, um estilo “Disney” que novamente reflete a menor preocupação com a originalidade na cultura chinesa.

Xintiandi, o modelo “Disney”: destino turístico da cidade onde a arquitetura foi totalmente refeita, com pouca preservação histórica. Imagem: Fabio Achilli/Flickr

Em termos quantitativos, a transformação da rápida renovação do estoque residencial tem conseguido acompanhar o crescimento populacional assim como o crescimento da renda ao longo dos anos, que tende a aumentar a área média demandada por habitante. De acordo com a Secretaria Municipal de Estatística de Xangai, 154 milhões de metros quadrados residenciais foram construídos entre 1998 e 2003, equivalente a 165 metros quadrados adicionais por domicílio adicional. Isso não significa, no entanto, que Xangai não passa, assim como outras metrópoles chineses, por problemas sociais na remoção e realocação de populações de rendas mais baixas.

Xangai, assim como o 798 Art District em Pequim, também possui transformações de ordem totalmente espontânea, sem incentivos ou planejamento de cunho governamental. Um dos populares destinos turísticos da cidade hoje é TianZiFang, um antigo bairro na área da concessão francesa. Anteriormente uma zona residencial de origem simples, iniciou uma transformação demográfica massiva quando o artista Chen Yifei, considerado um dos maiores artistas contemporâneos da China, estabeleceu seu ateliê de trabalho em 1998. Em pouco tempo outros artistas e designers também migraram para o local, e a partir de 2007 se iniciou o desenvolvimento de atividades comerciais como lojas, restaurantes e bares.

TianZiFang, bairro localizado na região de antiga concessão francesa. Imagem © Anthony Ling

Na exposição sobre o planejamento urbano de Xangai, uma série de painéis mostram a cidade que os governantes almejam para o futuro: seguindo a mesma linha de Pequim, o objetivo hoje é de limitar o tamanho da população em 25 milhões a partir de 2020, e a área urbanizada dentro de 3.200 quilômetros quadrados. Analisando o fenômeno espontâneo do crescimento urbano das cidades, com o atual fracasso chinês de controle populacional através do sistema hukou e a pujança do mercado de trabalho de Xangai, é possível prever que, neste caso, será mais difícil limitar o crescimento do que promovê-lo.

A tecnicismo absoluto do desenvolvimento urbano, com métricas e valores, caracteriza a exposição. Por exemplo, a gestão urbana busca um acesso a parques de mais de quatrocentos metros quadrados dentro de quatro minutos a pé, e uma área verde de mais de treze metros quadrados per capita. Também é uma das primeiras cidades a desenvolver um “Índice de Congestão Viária” que, diferente da métrica de velocidade (que varia de uma rua para outra), leva em consideração a tolerância e sensação emocional das pessoas em relação ao trânsito. Seguindo as tendências de planejamento urbano da atualidade — e talvez desconsiderando as preferências de alguns passageiros — o objetivo é de que 80% do deslocamento da cidade seja a pé, de bicicleta ou utilizando transporte público. Isso é refletido, em grande parte, na expansão do metrô de Xangai. A rede hoje é a mais extensa do mundo, quase sete vezes a rede de São Paulo, com 676km, apesar de ter sido inaugurada somente em 1993.

Ter obras “campeãs” certamente tem prioridade nas finalidades políticas das obras chinesas. Xangai também possui o trem elétrico mais rápido do mundo, o Maglev, que pode atingir velocidade comercial de 431 km/h. É uma linha curta feita apenas para ligar a zona central da cidade ao aeroporto, mas mesmo assim custou quase R$5 bilhões para ser construído e sofre um tremendo prejuízo operacional de cerca de R$250 milhões por ano, variando conforme a quantidade de passageiros atendidos.

Trilhos do Maglev, ligando o centro da cidade ao aeroporto: o trem elétrico pode atingir velocidade comercial de 431 km/h. Imagem © Anthony Ling

A vontade de mostrar tecnologias de ponta em Xangai acaba implementando políticas que excluem meios de transporte eficientes mas estigmatizados no mundo do transporte, como o chamado, no Brasil, de “transporte alternativo” por vans ou micro-ônibus. Xangai, assim como outras grandes cidades como Guangzhou, eliminaram do seu sistema alternativas de transporte ofertadas por pequenos empreendedores, tendo focado em grandes obras de infraestrutura como a sua rede de metrô. Hoje tais alternativas operam apenas em periferias mais distantes do controle regulatório ou em cidades menos visíveis para o resto do mundo.

Quanto à rede de ônibus em Xangai, de prioridade inferior ao metrô, também tem um sistema direcionado pelo poder público. Durante todo o período de economia socialista até 1996, o sistema era totalmente estatal. De 1996 a 2008 a cidade teve uma experiência de concessão operacional de linhas com rotas definidas para o setor privado, modelo que não teve bons resultados pela disparidade dos resultados econômicos dos concessionários dependendo da linha de atuação que, por sua vez, levou à disparidade de qualidade. Ao invés de flexibilizar rotas ou permitir veículos menores para o atendimento das periferias, a partir de 2008 o município reformou o sistema novamente, voltando a ter uma operação essencialmente pública. O novo sistema de governança, no entanto, tem uma orientação empresarial, de forma a tentar aliar a eficiência do sistema com sua sustentabilidade financeira. O objetivo tem sido atingido, de certa forma, pelo monopólio e controle do sistema como um todo, proibindo formas empreendedoras de transporte coletivo.

Huaihai Road, espécie de “Quinta Avenida” de Shanghai.

Xangai é a principal vitrine da China para o mundo, sendo evidente o esforço para mostrar as conquistas tecnológicas do regime. É difícil não fazer a comparação com a União Soviética que, enquanto milhões de cidadãos passavam fome nas zonas rurais, Moscou construía a rede de metrô mais extravagante que o mundo já tinha visto. Por outro lado, a abertura comercial aliada a tal investimento em infraestrutura inequivocamente produziu ganhos econômicos significativos, tendo praticamente triplicado o PIB per capita da cidade em um período um pouco maior que uma década. Dentre as cidades que visitei, talvez Xangai seja a que melhor reflete o estereótipo que temos da China atual: o contraste do crescimento acelerado com uma estrutura urbana histórica que desaparece, resultado de políticas de um governo interventor que, ao mesmo tempo, promove abertura econômica, e o paradoxo da coexistência da riqueza e da pobreza urbana, aliada a uma miscigenação cultural que cada vez mais representa a China contemporânea.

Via Caos Planejado.

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Sobre este autor
Cita: Anthony Ling. "A urbanização de Xangai: vitrine de uma nova China" 07 Ago 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/944815/a-urbanizacao-de-xangai-vitrine-de-uma-nova-china> ISSN 0719-8906

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