A necessidade de materiais adaptáveis na habitação social latino-americana

A série de artigos de Nikos A. Salingaros, David Brain, Andrés M. Duany, Michael W. Mehaffy y Ernesto Philibert-Petit sobre o estudo da habitação social na América Latina continua, e nesta ocasião os autores questionam as escolhas dos materiais construtivos mais frequentemente empregados. 

11. Habitação social na América Latina: a necessidade de materiais adaptáveis

Os preconceitos escondidos e as imagens de auto-estima

O mais difícil e negligenciado fator na escolha de materiais é a sua atração ao usuário. As pessoas ricas pagam muito por materiais “amigáveis” para que seu entorno propicie um preenchimento emocional. As casas auto-construídas seguem os mesmos princípios inconscientes, utilizando material barato e descartado, em maneiras criativas para criar um ambiente emocionalmente satisfatório (descaracterizado meramente como “primitiva” expressão artística). Compare-se isto com as superfícies hostis que são regularmente escolhidas para habitação social, num esforço de fazer aquelas estruturas mais duráveis. Estes tipos de materiais e de superfícies “duras” dão a impressão de dominação e de rejeição. É possível criar superfícies duráveis e que sejam amigáveis, mesmo que os planejadores não tenham pensado que valesse a pena ter esse trabalho para fazer habitação social.

© Pedro Kok

Para complicar este quadro ainda mais, a questão dos materiais de construção desejados, vai diretamente agir sobre os preconceitos escondidos e as imagens de auto-estima, que são específicas culturalmente e talvez, até mesmo, localmente. As agências de controle, em alguns casos, banem certos materiais considerados de “baixo status”, como, por exemplo, o adobe (cuja superfície é tanto amigável como fácil de ser moldada, diferentemente do concreto). Em muitos casos são os próprios donos / proprietários os que rejeitam os materiais adaptáveis, nas regiões onde eles são usados na construção tradicional. Hassan Fathy não conseguiu fazer com que os pobres aceitassem viver nas casas de barro (Fathy, 1973). Este é um grande problema em todo o mundo: é a imagem representando um passado desprezado ao invés de um futuro utópico, promissor.

A solução definitiva para este problema deve ser cultural. Os cidadãos devem descobrir orgulho nas suas heranças e construções tradicionais, e o grande prazer e valor que eles trazem. Ao mesmo tempo, o mito de uma utópica abordagem tecnológica precisa ser exposto pelo que ele é — uma imagem de marketing para feita para um público inocente — enquanto os reais benefícios da modernidade são mostrados como sendo inteiramente compatíveis com as práticas tradicionais (os encanamentos de água, a eletricidade, eletrodomésticos, etc.). Desta forma nós podemos gerar a “inteligência coletiva” que está incorporada na tradição cultural e imbuí-la com as melhores novas adaptações.

Como foi colocado por Jorge Luís Borges: “entre o tradicional e o novo, ou entre a ordem e a aventura, não há uma real oposição; o que nós chamamos de tradição hoje é a trama de séculos de aventura”. 

Quando um governo constrói habitação social, ele está querendo resolver dois problemas de uma só vez: abrigar as pessoas que não tem os meios para prover a sua própria moradia e para promover a indústria de materiais e estimular a economia. Há uma boa razão para a última, pois o governo é associado aos maiores produtores de indústria de materiais de construção. É do interesse da economia consumir estes materiais em projetos financiados. No entanto, esta pode não ser a melhor solução para a moradia. Há duas razões para isto: uma relacionada à economia e outra com conexão emocional.

© Ana Cecilia Garza Villarreal

A competição entre permanência e adaptabilidade

Uma favela auto-construída usa material barato e disponível tal como madeira, papelão, folhas de metal corrugado, pedras, plástico, restos de blocos de concreto, etc. Embora haja uma óbvia deficiência quanto a durabilidade destes materiais (o que se torna catastrófico durante tempestades e inundações) a enorme vantagem que estes materiais possuem é a adaptabilidade. Os proprietários têm uma enorme liberdade para determinar a forma e os detalhes de suas casas. Eles utilizam esta liberdade de desenho para adaptar a estrutura às sensibilidades humanas. Isto não é possível quando o governo constrói módulos habitacionais com materiais muito mais duráveis, tais como concreto armado. As pessoas têm que poder fazer modificações em suas casa como uma questão de princípio. Aqui nós temos uma oposição entre permanência/rigidez e impermanência / liberdade, no que influencia a forma dos prédios.

A habitação social deve ser feita de materiais permanentes, pois construções baratas e frágeis são um desserviço para a população. Favelas construídas com gravetos e papelão são modelos inaceitáveis de serem seguidos. No entanto, nós desejamos preservar tanto quanto possível, a LIBERDADE DE DESENHO, inerente à utilização de materiais impermanentes. Isto é essencial para garantir os ajustamentos no desenho que irão permitir uma geometria viva. Nas melhores casas auto-construídas, cada lasca de material é utilizada em uma maneira muito precisa para criar um tecido urbano vivo — um processo sofisticado que se compara às grandes aquisições arquitetônicas em qualquer lugar. A única solução que nós vemos para este conflito é o governo prover material apropriado (permanente, mas fácil de organizar, de cortar e de modelar) para que seja usado pelos moradores na construção ou na modificação de suas casas.

Tijolos de adobe em Canela. Imagem © Julien Harneis, licença CC BY 2.0

Nós voltamos sempre para a competição entre permanência e adaptabilidade. Mudanças adaptativas na forma são próximas do reparo e da auto-cura de um organismo, mas são com freqüência mal interpretadas como uma degradação do projeto. Na verdade a geometria está tentando curar-se (através da ação humana) depois da imposição de uma forma não-natural, alienada. Esta é a evolução orgânica natural e não deveria ser desencorajada só porque ela contradiz a visão “pura” de um arquiteto sobre como as pessoas DEVERIAM viver. Nós devemos enfaticamente condenar como não humana esta prática de proibir qualquer modificação na habitação social feita por seus moradores. Desde que amarradas a nossas sugestões para a propriedade, nós defendemos o direito fundamental de um proprietário / residente de modificar sua moradia de qualquer maneira desde que não invada os direitos dos vizinhos ou o espaço urbano.

Embora a intenção original da legislação de proibir mudanças na moradia fosse bem intencionada, ela não atingiu os seus objetivos. Sua intenção era de impedir legalmente que o prédio construído pelo governo, e onde ele investiu dinheiro, fosse destruído. Isto, no entanto, nunca funcionou. Prédios que são odiados por seus residentes (devido a suas superfícies e geometrias hostis) têm sido sistematicamente vandalizados e destruídos, e nenhuma legislação tem sido capaz de prevenir isto. O crescente uso de materiais duros, leva a unidades habitacionais que parecem fortalezas, mas os seus moradores, cada vez mais, as odeiam e as destroem. Espaços e superfícies opressivas impedem o sentido de bem-estar, gerando reações hostis. A solução está numa diferente direção: fazer unidades habitacionais que os moradores amem, e eles as manterão ao invés de destruí-las.

Sistema de cordas: reforço estrutural para edificações de adobe. Imagem © Camilo Giribas

Usar materiais baratos e localmente disponíveis

Em seu projeto em Mexicali, México, Alexander introduziu um método inovador para produzir tijolos, no sítio, usando uma prensa manual e o barro local (Alexander et al. 1985). Ele enfatizou isto como um aspecto determinante do projeto, mesmo considerando que havia blocos de concreto prontos e disponíveis. Uma razão era a de estabelecer um suprimento local para todos os futuros residentes. Blocos de concreto não são caros, mas eles colocam um desafio financeiro. Outra razão é que eles limitam as possibilidades de desenho. Blocos de concreto padrão levam a configurações estruturais padrão, inviabilizando algumas das formas adaptativas que Alexander desejava introduzir.

Há oportunidade para a indústria da construção participar — através dos esforços diretos dos governos — provendo elementos industrializados, que podem, em muitos casos ser incluídos nos projetos. Um dos autores (EPP) desenvolveu um modelo para a auto-construção com materiais baratos e disponíveis no local, tais como terra socadapara os perímetros, junto com a introdução de módulos sanitários industrializados de baixo custo. Estes módulos incluem depósito de água, vaso sanitário, pia, chuveiro e um filtro para o tratamento de águas usadas, para reciclagem. Eles podem ter também usos estruturais e incluir células solares para eletricidade e painéis solares para aquecimento de água e mesmo para cozinhar. Estes módulos podem ser construídos em grandes quantidades, baixando os custos e oferecendo tecnologia, ao mesmo tampo em que permitem a necessária flexibilidade e liberdade para o desenho e o desenvolvimento futuro das unidades.

Um de nós, (AMD), investigou este conceito mais recentemente para um projeto em Kingston, na Jamaica. Este “módulo-molhado” oferece, de modo custo-efetivo, os elementos básicos mecânicos e sanitários de uma casa, que são justamente os mais caros, ao mesmo tempo em que se combina com a habilidade dos moradores de construírem suas próprias casas bem adaptadas.

Nós devemos mencionar um caso em que estes módulos industriais foram reduzidos em complexidade, de maneira que a construção pode ser inicialmente mais adaptável às necessidades sociais. Alexander, em 1980, trabalhou em habitação social na Índia, e pensou em usar uma caixa de concreto pré-fabricado, contendo encanamentos para banho, vaso sanitário e cozinha (Alexander, 2005, livro 2, página 320). Esta solução seguiu as soluções de sucesso, anteriormente desenvolvidos por Balkrishna V. Doshi. No entanto, logo se mostrou claro que construir, para cada casa, uma base sólida (um espaço que representasse um padrão tradicional) era na verdade mais importante na seqüência da construção (porque era uma prioridade para os residentes) do que ter um módulo de concreto pré-fabricado com as instalações hidro-sanitárias. Então Alexander decidiu gastar a quantidade limitada de dinheiro disponível em um terraço, deixando uma passagem para a futura adição de encanamentos. Os residentes, então, utilizaram água e sanitários comunitários até que puderam construir os seus próprios. A fundação era mais vital para a vida da família do que o módulo de concreto pré-fabricado com as instalações.

Versão anterior deste artigo foi apresentada por NAS como uma palestra no Congresso Ibero-Americano de Habitação Social, Florianópolis, Brasil, 2006. Publicado em URBE: Revista Brasileira de Gestão Urbana, Vol. 3 No. 1 (Janeiro/Junho 2011), páginas 125-136.

Tradução para Português: Lívia Salomão Piccinini.

Bibliografia

  • Christopher Alexander (2001-2005) The Nature of Order: Books One to Four (Center for Environmental Structure, Berkeley, California).
  • Christopher Alexander, Howard Davis, Julio Martinez & Donald Corner (1985) The Production of Houses (Oxford University Press, New York).
  • Hassan Fathy (1973) Architecture for the Poor (University of Chicago Press, Chicago, Illinois). Edición en Español (1982) Arquitectura para los pobres (Extemporáneos, México).

Sobre este autor
Cita: Nikos A. Salingaros, David Brain, Andrés M. Duany, Michael W. Mehaffy & Ernesto Philibert-Petit. "A necessidade de materiais adaptáveis na habitação social latino-americana" [La necesidad de materiales adaptables en la vivienda social latinoamericana] 09 Jul 2019. ArchDaily Brasil. (Trad. Baratto, Romullo) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/920498/a-necessidade-de-materiais-adaptaveis-na-habitacao-social-latino-americana> ISSN 0719-8906

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