
Historicamente, as primeiras universidades do modelo contemporâneo foram implantadas na Europa como instituições voltadas à formação de elites para servir ao Estado e à Igreja, e não para promover a emancipação social. Com o avanço do capitalismo, consolidaram-se como espaços privilegiados de produção e reprodução da cultura ocidental moderna. Contudo, a partir da década de 1960 — especialmente após as revoltas estudantis de maio de 1968 —, a ênfase acadêmica se voltou para valores relacionados ao mercado, substituindo os ideais humanistas e críticos. As ciências humanas perderam espaço, enquanto as áreas técnicas, passaram a ocupar lugar central, muitas vezes afastando-se da reflexão crítica sobre o impacto social de suas práticas.
Na era de globalização neoliberal, essa lógica se intensificou. No contexto latino-americano muitos cursos de arquitetura e urbanismo se alinharam mais aos interesses do capital do que às necessidades sociais, priorizando soluções padronizadas e abstratas em detrimento de contextos locais. No entanto, não se pode generalizar: novas iniciativas e experiências têm buscado romper com esse modelo, sobretudo diante dos desafios emergentes do século XXI, como a crise climática, as desigualdades urbanas e a urgência de práticas mais sustentáveis e inclusivas. Diante desse cenário, surge uma questão crucial: como formar arquitetos capazes de atuar de maneira crítica e criativa, conectados às complexidades da América Latina?

A formação acadêmica nas escolas de arquitetura em todo o mundo enfrenta desafios significativos diante das rápidas transformações sociais, ambientais e culturais do século XXI. Enquanto o contexto se altera constantemente, muitas salas de aula permanecem presas a um modelo tradicional, focado exclusivamente em aspectos técnicos e estéticos, mantendo a profissão distante das necessidades reais da sociedade. Uma abordagem que reflete a herança do modernismo, marcada pela ênfase na forma e pela centralização do projeto arquitetônico na prática profissional em detrimento da experimentação e experienciação.
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No contexto latino-americano, esse cenário, complexo por si só, é agravado por desafios específicos que influenciam diretamente o ensino de arquitetura. Embora a região esteja inserida na chamada "aldeia global", enfrenta problemas particulares, como a profunda desigualdade na distribuição de renda, a pobreza extrema, a expansão de assentamentos informais em metrópoles superlotadas e intensos fluxos migratórios, tanto internos quanto externos. Esses fatores resultam em sérias deficiências de infraestrutura e habitat, demandando respostas urgentes de profissionais da área. Diante dessa realidade, propõe-se a construção de um "pensamento alternativo de alternativas", baseado em uma nova epistemologia do Sul, que busca desaprender conceitos enraizados para reaprender a partir dos saberes locais. Uma perspectiva que possibilita enfrentar os problemas sociais com uma visão genuinamente latino-americana, mais sensível e conectada às necessidades da região.

Essa perspectiva também serve como contraponto à valorização excessiva de referências e cronologias internacionais como, por exemplo, a cultura unívoca do concreto armado, marginalizando outras técnicas e tecnologias construtivas, ou a supervalorização do trabalho autoral no qual o arquiteto é o único responsável pela criação. Uma lógica que reduz o debate acadêmico sobre a produção arquitetônica latino-americana e silencia a herança construtiva e espacial de povos indígenas e africanos. Como consequência, alimenta-se uma desconexão entre os estudantes e a realidade sociocultural em que estão inseridos, afastando-os das problemáticas e potencialidades locais.
O afastamento da realidade talvez seja a questão central deste tema, já que repensar o ensino de arquitetura no século XXI está diretamente ligado ao desenvolvimento da empatia. O arquiteto Juhani Pallasmaa defende que a formação deve desenvolver a "imaginação empática", isto é, a habilidade de compreender profundamente as experiências das pessoas que irão habitar os espaços projetados. Segundo ele, muitos arquitetos dominam a técnica de erguer muros, mas desconhecem as vidas que se desenrolam além deles. Assim, promover empatia no processo de ensino significa integrar história e contexto sociocultural, incentivando os estudantes a projetar de forma mais humana e conectada à realidade, ou seja, ver o que está acontecendo por trás desses muros.

Como educar nesse contexto: espaços, sujeitos e objetos
Para educar nesse contexto, Ortiz e Trachana propõem três dimensões fundamentais: espaços de aprendizagem, que vão além da sala de aula; sujeitos de aprendizagem, envolvendo diversos atores em processos colaborativos; e objetos de aprendizagem, práticas diretamente ligadas a desafios reais da sociedade. Esses três eixos direcionam uma formação mais crítica, prática e profundamente conectada à realidade.
Espaços de aprendizagem (onde)
O ensino de arquitetura vem se transformando, deixando de se restringir à sala de aula para reconhecer que aprender pode acontecer em qualquer lugar — na rua, na praça, durante uma conversa no ônibus, ao observar e interagir com o mundo ao redor. Essa perspectiva valoriza uma aprendizagem viva e sensível, que se alimenta de diferentes experiências e fontes de conhecimento. Em vez de um modelo baseado apenas na transmissão de informações, busca-se uma abordagem colaborativa e conectada à realidade, na qual os estudantes participam ativamente do processo.

No Brasil, o projeto "Floresta Cidade", da Universidade Federal do Rio de Janeiro, busca construir cidades mais sustentáveis e democráticas por meio da colaboração com favelas da Gamboa e Maré, além de frentes indígenas. Organizada nas escalas de cidade, bairro, quintal, casa e corpo, a iniciativa propõe classificar a cidade do Rio a partir de "pontos de floresta"– locais estratégicos que incluam a natureza como parte principal do território. A iniciativa integra saberes acadêmicos e tradicionais por meio de atividades que possibilitam a experienciação da cidade.
Sujeitos de aprendizagem (quem)
Por meio de oficinas e workshops que envolvem a comunidade, os estudantes têm a oportunidade de se aproximar de sujeitos reais, pessoas com rostos, histórias e necessidades concretas, que dão sentido ao ato de projetar. O contato com esses sujeitos favorece a troca mútua criando uma rede de conhecimento coletivo e vivo. Nesse contexto, o papel do professor deixa de ser o de avaliador distante e passa a ser o de mediador, alguém que estimula a escuta, o diálogo e a reflexão crítica. Ao integrar os usuários no processo de criação, os projetos ganham profundidade e relevância social, rompendo com a lógica de uma aprendizagem voltada apenas para satisfazer expectativas pessoais ou acadêmicas.

Nesse contexto, destaca-se a iniciativa da Universidad Nacional de La Plata, Argentina, que promove os "Ciclos de Diálogos Comunitários", encontros periódicos entre acadêmicos, profissionais e moradores de diferentes regiões. Esses diálogos abordam temas como planejamento urbano, sustentabilidade e patrimônio. O objetivo é compartilhar conhecimentos sobre práticas arquitetônicas tradicionais e contemporâneas, promovendo uma aprendizagem mútua e o fortalecimento dos vínculos comunitários.
Objetos de aprendizagem (como)
A formação em arquitetura vai além do desenvolvimento de habilidades técnicas, buscando preparar profissionais capazes de atuar na transformação social. Estágios e projetos práticos permitem que os estudantes lidem com situações reais, promovendo aprendizagem comunitária, cooperação e fortalecimento das relações entre os alunos. Esse processo desenvolve competências que permitem responder às demandas da sociedade contemporânea, integrando conhecimentos gerais e específicos. A prática – mais além do desenho -, a que envolve discussão e vivência no espaço contribui para a percepção crítica da realidade e para a criação de soluções inovadoras. O objetivo é formar arquitetos criativos, conscientes do meio ambiente, socialmente engajados e preparados para enfrentar os desafios do século XXI, combinando competência técnica com empatia e senso ético.
Na região rural da Colômbia, a Universidade Nacional tem implementado projetos de arquitetura participativa, colaborando com comunidades locais para desenvolver soluções habitacionais e urbanas que respeitem a cultura e as necessidades específicas dos moradores. Esses projetos envolvem os estudantes em todas as etapas, desde o diagnóstico até a execução, promovendo uma aprendizagem prática e contextualizada.

Em um contexto marcado pelo aumento das desigualdades, pelo domínio midiático e pela fragilização das instituições democráticas, é da educação que surge o impulso emancipador para compreender e transformar a relação entre seres humanos e seus espaços. A ideia, portanto, é repensar profundamente o ensino arquitetônico: substituir a ênfase em metodologias universalistas e abstratas por abordagens empíricas, intuitivas e contextualizadas, que valorizem a diversidade tectônica e cultural latino-americana. Assim, o aprendizado deixa de ser mera reprodução de modelos para se tornar um espaço de resistência e inovação, formando profissionais empáticos, aptos não apenas a projetar edificações, mas a transformar realidades.
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