Bogotá: das guerras aos caminhos para a solução

Em dezembro de 2021, chegava em Bogotá, na Colômbia, a jovem nascida e criada da favela do Colombo. Passaporte carimbado, mãos trêmulas e uma mistura de medo e alegria. Eram os primeiros passos para o novo, o desconhecido, a mudança e o aprendizado fora dos muros, a realização do primeiro intercâmbio, de um sonho até pouco tempo distante.

Durante aproximadamente dois meses, aquele seria o meu lar, um lugar que já foi marcado por violência, sangue derramado e insegurança, e ainda considerado um dos países mais desiguais do mundo.

Esses tempos de guerra haviam ficado pra trás? De acordo com a colombiana Diana Jerônimo, “a guerra não terminou. Não é como antes, claro, mas ainda existem conflitos, as FARCs (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) permanecem atuando. Em dezembro de 2021, por exemplo, estavam matando pessoas numa parte da Colômbia”.

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Imagem: Brian Shrader

Ainda que os conflitos permaneçam, esse cenário passou a ser alterado pelas mudanças aplicadas pela gestão pública. Acordos de paz desenvolvidos por organizações, investimento de iniciativas privadas e mobilização social tornaram a cidade referência em urbanismo social e transformação territorial. Um contexto de extrema importância para inspirar e guiar ações e projetos desenvolvidos no Instituto Fazendinhando.

Em Bogotá, me integrei à Fundação Jesus El Bueno Pastor durante 45 dias. Lá, o trabalho ocorria de forma voluntária, durando entre cinco a seis horas por dia, com crianças colombianas e venezuelanas em situação de vulnerabilidade social.

Nos demais horários e aos finais de semana, existia a possibilidade de conexão com a cidade e seus moradores. Esse contato com a realidade era transformador. Através dos relatos, da escuta ativa de quem vive o dia a dia e das análises de todo o contexto urbano, era possível criar comparativos com o Brasil, como se verá em alguns projetos a seguir:

Transmilênio

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Sistema de transporte público, Transmilênio. Imagem: Mariana Gil/ EMBARQ Brasil

Sistema de ônibus que percorre a cidade de Bogotá em faixas exclusivas. Por um lado, facilita a vida dos moradores, já que o trânsito é terrível, por outro, não consegue atender toda a demanda e fluxo existente. A cidade não possui um sistema de metrô e os moradores sofrem com a ausência e as promessas repetidas a quase quarenta anos.

TransMiCable

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Sistema de TransMiCable e intervenções urbanas no território. Imagem: Armando Gallardo/IFC

Sistema de teleférico implementado pela cidade, complementar ao sistema Transmilênio. O modal representa dignidade numa cidade onde o transporte público é extremamente caótico. Ele simplifica o fluxo de tráfego numa das regiões mais pobres de Bogotá, possibilitando que os moradores das áreas mais afastadas não tenham que levar mais de duas horas para atravessar os morros e chegar em suas respectivas casas.

O TransMiCable também conta com a utilização de painéis solares que geram a energia responsável pelo seu funcionamento, mostrando o caráter sustentável do projeto.

Além disso, nesse percurso, é possível encontrar salões comunitários, centros culturais, museus, parques, miradouro, passeio pedonal, pintura e grafites de diversas cores, trazendo mais vida e qualidade urbana.

Eje Ambiental

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Intervenção urbanística Eje Ambiental. Imagem: autora

Em 1997, foi construído um dos projetos mais ambiciosos do espaço público, integrado ao centro de Bogotá, que consiste em um grande trajeto urbano, conectando o córrego que atravessa a região e recuperando o uso sustentável dos bens comuns municipais.

Na proposta idealizada por Rogelio Salmona e Luis Kopec, a Avenida Jiménez constituiu-se como um grande caminho de tijolos acompanhado pelo canal do Rio São Francisco, povoado por espécies da flora nativa, como a palmeira de cera e as pimentas da primavera.

Buscava-se também resgatar a memória histórica do Rio São Francisco, conduzindo a água por um canal que lembrava seu traçado, e que homenageava seu nome muisca Viracachá, que significa brilho da água no escuro.

Passeio Público

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Calçada e rua de Bogotá. Imagem: Mariana Gil/WRI Brasil

As ruas e calçadas representam a maior parcela dos espaços livres urbanos, e os passeios públicos comportam o deslocamento de pedestres e ciclistas, os sistemas de infraestrutura, a arborização e o mobiliário urbano.

Jane Jacobs defende que a manutenção da segurança não é feita apenas pela polícia mas pela rede intrincada, quase inconsciente, de controles e padrões de comportamento espontâneos presentes em meio ao próprio povo e por ele aplicados. O principal atributo de um distrito urbano próspero é que as pessoas se sintam seguras e protegidas na rua em meio a desconhecidos.

Os passeios públicos de Bogotá impressionam, tanto em bairros periféricos quanto nos bairros nobres. Em muitos casos, as faixas dos automóveis são menores que as calçadas — diferente do que acontece em São Paulo —, o que traz a sensação de segurança e conforto ao caminhar, e deixa nítida a prioridade a pedestres e ciclistas.

Ao longo das calçadas, há mobiliários urbanos com lixeiras separando os resíduos orgânicos dos recicláveis, bancos, árvores e iluminação pública. Vale ressaltar que quase não há fiação elétrica visível, o que contribui para a paisagem urbana. Os edifícios possuem fachadas ativas, que possibilita uma maior circulação de pessoas, a troca e o encontro.

Habitação de Interesse Social

A iniciativa privada investe nessas construções com apoio do governo, que concede subsídios. Para ter direito ao benefício, o cidadão precisa ser maior de 28 anos de idade, não ter registro de imóvel em seu nome e receber até dois salários mínimos.

As edificações possuem qualidade arquitetônica e características que contribuem para a qualidade de vida dos moradores, tais como:

  • Fachada ativa, comércios e pequenos negócios no térreo;
  • Área de estacionamento dentro dos blocos residenciais, evitando veículos nas calçadas;
  • Apartamentos de no mínimo 42 m²;
  • Ventilação e iluminação natural, com grandes aberturas em todos os ambientes;
  • Áreas de lazer e convivência entre os blocos;
  • Passeio público excepcional, com grandes calçadas na maioria das vias.

Equipamentos institucionais e culturais

Bogotá é cercada de equipamentos públicos, culturais e educacionais, que convidam o estar e permanecer, com excelentes projetos arquitetônicos, manutenção dos espaços e construções, além de muita arte, cor e vida.

A biblioteca Virgilio Barco, projetada por Rogelio Salmona, encanta com toda a sua leveza, transparência e aberturas. Inserida no espaço urbano, valoriza e abraça o seu entorno verde, com uma estrutura circular de tijolo rodeada por espelhos d’água.

Ao caminhar pelo centro da cidade, é possível conhecer mais sobre o processo histórico, o passado e o presente de Bogotá, a partir dos monumentos, esculturas, museus, catedrais, grafites, que deixam perceptível a luta, os sonhos e avanços deste povo.

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Parque Simón Bolivar. Imagem: Dominic Chavez/World Bank

Parques e praças

É impressionante a quantidade de áreas verdes e de lazer dessa cidade, composta por parques, várias praças arborizadas e excelente infraestrutura urbana. São pequenos pulmões verdes inseridos em diversos lugares, de um extremo a outro, proporcionando o bem-estar dos seus moradores e atividades de forma coletiva.

Uma dessas belezas é o parque Simón Bolivar, considerado o maior parque da cidade, superando inclusive as dimensões do Central Park. O espaço é marcado por lagos, bosques, pontes, monumentos, áreas para acampamento, equipamentos urbanos para todas as idades e lindos gramados que possibilitam caminhar com os pés descalços.

Um outro lugar mágico por sua imensidão verde e o contato com a natureza é o Jardim Botânico de Bogotá, fundado em 1955 em homenagem ao naturalista, matemático e astrônomo José Celestino Mutis.

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Jardim Botânico José Celestino Mutis, Bogotá. Imagem: autora

O espaço apresenta um orquidário com cinco mil espécies, um jardim de rosas de diferentes cores, a flor de Mutis, palmeiras e plantas medicinais, e a árvore nacional da Colômbia: o Nogal. O passeio encanta com tanta diversidade, riqueza natural e cultura atraindo diversos turistas e deixando a sensação de que uma única visita é muito pouca para contemplar e respirar o puro dos diversos ambientes.

A incrível cidade de Bogotá, com suas dificuldades, crescimento e desenvolvimento, é hoje referência para a arquiteta e urbanista social da favela. As fotos, vídeos, textos, memórias e lembranças serão sempre resgatadas para recordar os momentos, o esperar, o viver, o aprender, mas, acima de tudo, para contar histórias marcantes de quem ali vive e viveu, e do potencial transformador dessa cidade.

Retornar ao Brasil me mostra que ainda há um árduo caminho a ser trilhado e estudado, que a luta deve continuar articulando ações e projetos com um olhar para quem mais precisa, buscando entregar o melhor com qualidade estética, conforto, permeabilidade e acolhimento, além de criar a disponibilidade para o processo participativo e a escuta ativa.

As respostas estão aqui, na leitura das cidades, dos territórios, da sociedade, da valorização cultural e da riqueza natural que vem se perdendo ao longo dos anos. É preciso agir, mas agir de forma coletiva com a ambição de construir e desconstruir o que segrega e destrói vidas, com novos modelos de planejamento, conscientização e gestão sustentáveis.

Bogotá, uma cidade um tanto caótica, de desigualdades, de altos vales, da arte, da trajetória valente, nos inspira a evoluir, fazer, sensibilizar, impactar e transformar.

Via Caos Planejado.

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Sobre este autor
Cita: Ester Carro. "Bogotá: das guerras aos caminhos para a solução" 10 Abr 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/979019/bogota-das-guerras-aos-caminhos-para-a-solucao> ISSN 0719-8906

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