Diálogos entre arquitetura e cidade: entrevista com ARX Portugal

Com objetivo de conhecer os arquitetos, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa de referência, Sara Nunes, da produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, lançou o podcast No País dos Arquitectos, em que conversa com importantes nomes da produção portuguesa contemporânea.

No episódio desta semana, Sara convidou o arquiteto José Mateus, do ateliê ARX Portugal, para falar sobre o projeto Castilho 203, em Lisboa. Ouça o podcast da conversa ou leia a transcrição da entrevista com Mateus, a seguir:

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Reveja, também, as entrevistas já publicadas do podcast No País dos Arquitectos:

José Mateus - Olá! Bom dia! Agradeço, desde já, o convite e felicito também pelo trabalho que têm feito com esta série de entrevistas do podcast! 

Sara Nunes - Nós é que agradecemos, José! Estamos muito entusiasmados com esta conversa porque o José é um óptimo conversador! Mas antes de falarmos sobre o edifício Castilho, que nos traz aqui hoje, queria que falássemos sobre o arquitecto. O José tem um trabalho que – para além do escritório de arquitectura desenvolvido pela ARX Portugal – empenha-se muito na divulgação da arquitectura quer na Trienal de Arquitectura, quer nas funções que desempenha agora no CCB e no programa ‘Tempo e Traço’ que fez para a SIC Notícias. Poderíamos estar aqui a enumerar os inúmeros projectos que o José já abraçou. Pergunto-lhe, tendo em conta a sua experiência, porque é que em Portugal somos tão exigentes na escolha dos nossos carros, na escolha dos nossos computadores e telemóveis, mas parece que com a Arquitectura, nos espaços em que vivemos, não temos a mesma exigência. Porque é que acha que isso acontece? E que mais-valias teríamos se fôssemos mais exigentes com a Arquitectura e as escolhas que fazemos para as nossas cidades?

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JM - Bom, de facto, é uma pergunta muito pertinente e é uma resposta difícil. É, de facto, uma questão cultural que existe em Portugal, há muitos anos. As pessoas, por vezes, são capazes de viver em condições bastante limitadas, sem grandes condições, mas depois fazem um investimento grande na compra de um automóvel ou de um gadget. Existe uma ideia associada. Parece que, perante algumas dificuldades, as pessoas procuram expor uma dimensão mais luxuosa num automóvel ou em algo de maior qualidade que não a casa para compensar essa limitação. Mas é, de facto, uma questão cultural que marca o país. Aliás, nas obras – quando fazemos o acompanhamento de obra e a recepção provisória – eu costumo ser bastante exigente perante aquela ideia de que é possível uma tolerância maior do que, por exemplo, quando compramos um automóvel. O automóvel, quando é comprado, ninguém admite que tenha um risco.

SN - Exactamente! 

JM - Mas, por vezes, na recepção provisória das obras, quando os arquitectos vão à obra, parece que na compra de uma casa é aceitável uma pessoa receber uma habitação com problemas e defeitos e não uma casa impecavelmente executada. Eu costumo dar um exemplo, nós não compramos um carro com defeitos, portanto as pessoas não vão comprar uma casa com defeitos. A casa tem de estar impecavelmente executada. Por outro lado, também penso que é uma questão que tem um fundo de conhecimento, um fundo cultural mais amplo. A cultura da Arquitectura foi, durante muito tempo, (até muito recentemente), pouco valorizada, de forma geral. Eu lembro-me que quando decidi tirar o curso de Arquitectura, os amigos dos meus pais diziam: “Bom, lá vai mais um para o desemprego” ou “a Arquitectura não é muito valorizada”, e ainda “o que é isso de ser Arquitecto?”. Bem, mas o que é certo é que estou empregado, desde os 19 anos, e se incluir a faculdade ainda tenho de recuar mais no tempo. Havia, inclusive, uma série de arquitectos que posso dizer que me tocaram imenso. Aliás, arquitectos e não só! Tocaram-me imenso pelo seu exemplo, como o caso de Manuel Graça Dias, Paulo Varela Gomes e outros que trabalharam a divulgar a arquitectura através de programas de televisão, rádio, publicações, etc. A arquitectura começou aos poucos a surgir como uma disciplina, como alvo. Quer dizer, a Arquitectura não é uma disciplina, é o lugar onde vivemos todos.  

SN - Sim.  

JM - E as pessoas começaram a olhar para a Arquitectura de outra maneira. Naturalmente que houve também o trabalho de arquitectos reconhecidos nacional e internacionalmente como Siza, Souto de Moura e muitos outros que hoje em dia também acabaram por ser não só uma forma de divulgação importante perante os cidadãos, em geral, sobre a Arquitectura, mas também temos uma grande competência numa profissão e isso é reconhecido fora do país que é a Arquitectura. 

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SN - Sobre o edifício que nos traz aqui hoje – o edifício Castilho 203, que integra o apartamento do Cristiano Ronaldo –, já muito se falou da construção da marquise, mas não é sobre isso que iremos falar hoje. Creio que esta conversa pode ser uma oportunidade para que quem nos ouve possa saber mais sobre este edifício e a sua relação com a cidade. E queria que começássemos por falar, justamente, sobre essa relação com a cidade, José. 

Eu tive oportunidade de filmar este edifício e uma das coisas que mais me causou impacto é a sua localização e a relação que muitos dos apartamentos têm de quase 360º, permitindo-nos ver toda a cidade. Fale-nos sobre a localização e esta vista de 360 graus para a cidade.  

JM - Quando apareceu esta possibilidade de desenharmos o edifício, devo dizer que no atelier ARX (durante muitos anos, até aproximadamente meia dúzia de anos) nós só tínhamos feito três projectos em Lisboa. Um deles era a minha casa na Teófilo de Braga.

SN - A maior parte dos projectos é fora? Não tinha reparado nesse aspecto!

JM - Sim, a esmagadora maioria dos nossos projectos foram feitos fora de Lisboa. Nós tínhamos a sensação que, sendo arquitectos a viver em Lisboa e com o seu atelier em Lisboa, era-nos quase impossível desenhar projectos em Lisboa. Nos últimos anos, o cenário mudou e mudou com projectos muito interessantes como esta oportunidade que tivemos com o Castilho 203.

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O Castilho 203 era um edifício que eu conhecia desde os anos 1970. Tinha sido um edifício desenhado pelo arquitecto Tomás Taveira. Era um edifício de escritórios que, no seu lado afastado, tinha uma empena cega orientada em direcção ao rio. Foi um edifício que sempre me intrigou pela forma que se encaixava na cidade, no modo como se impunha e também pela forma com que tentava afirmar outro tipo de cultura de arquitectura, que não era tanto de ligação de um encaixe existente em lógicas de desenhos comuns na cidade de Lisboa. E depois havia também o facto de eu viver num ponto alto de um edifício e, ao fundo, a partir da janela da minha sala, eu via aquele edifício (Castilho 203). Ao observar o edifício, eu via-o irromper no meio da malha urbana como uma mancha escura. Portanto, tratava-se de um ponto negro no meio de um conjunto de edifícios, de formas, de peças bastante mais vibrantes que emitiam luz e que constituíam, com um ponto mais alto (aqui e ali), o perfil da cidade. Desde logo, disse ao promotor, que estando vivo o arquitecto Tomás Taveira, deviam falar com ele para ser ele a fazer o trabalho. O promotor respondeu que por um lado desejava trabalhar com outro arquitecto, por outro lado desejavam demolir o edifício e construir um novo com um novo programa. E assim foi decidido e assim foi feito. Aceitamos o trabalho e o primeiro desafio foi, no fundo, reflectir sobre o modo como o edifício se encaixa na cidade. Procurei que, através do novo desenho, o edifício conseguisse dissolver-se um pouco mais na sua percepção, ao longe, no tecido vibrante da cidade (com essa textura mais luminosa da pedra branca ou do reboco branco, mas também da lógica da textura das janelas e dos ritmos das janelas).

Portanto pretendi que se tentasse diluir um pouco mais na cidade, apesar da sua escala ser claramente mais uma escala de ruptura naquela esquina. Para além disso, havia um aspecto à partida muito importante que era o facto de ser um edifício que impunha uma ruptura nas cérceas naquela zona.

SN - Que é mais alto do que todos os edifícios à volta, não é?

JM - Exactamente. É muito mais alto do que os edifícios à volta. Curiosamente, a entrada principal para esses edifícios estava localizada não na rua principal, na Rua Castilho, próxima do Parque Eduardo VII, mas para a Rua Padre António Vieira, que tem uma escala completamente diferente. Esse foi, desde logo, um primeiro gesto. Quisemos que aquele edifício com aquela escala fosse relacionado primeiro com a cidade de modo a que fizesse mais parte da cidade, dessa luz da cidade e que em termos de organização de acessos e de relação com a rua passasse a ter a entrada principal na Rua Castilho. Aí, obviamente, a escala do Parque Eduardo VII propõe uma relação mais lógica com a torre e, contrariamente ao que existia, a entrada de automóveis passou a ser feita pela Rua Padre António Vieira. Este foi o primeiro pensamento de como pôr as mãos as mãos naquele edifício. Depois havia outras questões de base. O que nos foi pedido foi – isto tendo em conta o termo usado pelo dono de obra – “um edifício de habitação de luxo”. Não tenho interesse particular por essa designação, mas também não tenho preconceitos. Aliás a arquitectura palaciana, desde sempre, explorou obviamente programas de um certo aparato com programas ornamentais extraordinariamente sofisticados. Isto não sendo um palácio, seria um edifício e um conjunto de habitações orientados para uma alta burguesia. Falamos de famílias com alta capacidade financeira, que normalmente habitam espaços com um investimento muito elevado em termos de desenho e de construção. No fundo, tentamos compreender o que é um programa para a alta burguesia nos tempos de hoje. Naturalmente as pessoas são muito diversas, mas no final, nós arquitectos, tentamos propor um padrão de resposta a esse programa que nos foi colocado. Um aspecto que nos motivou muito foi a localização. Aqui de minha casa eu vejo o edifício entre o Hotel Ritz e o Palácio da Justiça. São dois edifícios que todos sabemos que têm uma arquitectura de enorme qualidade e um trabalho ao nível da textura, ao nível da tectónica e do detalhe extraordinariamente refinado e serviram-nos de referência. Apesar de ser um programa diferente, interessava-nos que desde logo no seu exterior as pessoas sentissem que havia um trabalho extraordinariamente cuidado ao nível do detalhe das superfícies, das serralharias, dos puxadores da porta de entrada. 

Portanto pretendíamos que fosse uma peça trabalhada desde a escala urbana de forma intencional até a escala micro (como eu referi) do puxador ou do próprio modo como propomos cortar uma pedra.  

SN - É muito curioso estar a falar disso porque uma das coisas que se sente no edifício é, exactamente, esse rigor, empenho e qualidade construtiva. Há uma vontade vossa também de intemporalidade espacial e exemplo disso é a fachada de mármore de Vila Viçosa que parece quase uma interpretação contemporânea das ordens clássicas da arquitectura grega. Fale-nos um pouco sobre o desenho da fachada e o porquê da escolha deste material, José.

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JM - A Sara está a tocar num ponto muito central do projecto. Quando adaptamos um edifício de escritórios que tinha um pé direito bastante mais alto que o comum nos edifícios de habitação, há logo uma questão de escala que se coloca. A altura do pé direito é bastante generosa. Quando pensamos na ideia de uma habitação ou de um programa de luxo ou ainda de um programa dirigido a um padrão bastante elevado de exigência, a ideia de escala (a altura) é extraordinariamente importante. O desenho da pedra passa também por aí. Quando pensamos na fachada pensamos, desde logo, na fachada sóbria. Aliás lembro-me que, em conversas com o cliente, chegaram-nos a propor alternativas de desenho que passariam por abordagens um pouco menos sóbrias, um pouco mais arriscadas do ponto de vista formal. Achámos que o edifício já se impunha demasiado naquele ponto, por isso queríamos compensar e procurar algum equilíbrio com um desenho exterior bastante mais sóbrio. Uma coisa que nos interessou explorar foi a ideia de altura. Ou seja, a forma como cortamos as pedras pode induzir a uma perspectiva mais pronunciada e elegância. Queríamos sublinhar aquela verticalidade de maneira mais subtil. O dispositivo foi não só aquelas colunas rectas de alto a baixo que quando são perfeitamente alinhadas na fachada é porque correspondem mesmo, exactamente, a pilares estruturais. Quando não são pilares estruturais eles desajustam-se, portanto há ali um aspecto que as pessoas podem descobrir se estiverem atentas, que é o facto de haver uma série de alinhamentos onde a coluna vai sempre a direito, como uma linha recta de alto a baixo, e aí é porque se trata de um pilar, de um elemento resistente importante na estrutura do edifício.

SN - Pela sua descrição, quase dá vontade de olhar agora para as imagens do edifício e ver o que é que o José está a falar. Pela sua descrição dá vontade de voltar a ver as imagens. 

JM - Quando os elementos verticais começam a fugir aos alinhamentos é porque não são estruturais. Portanto, a decisão não é casual. A decisão é muito intencional e precisa. Aquilo que é estrutural é estável e segue a ordem. Aquilo que não é estrutural e que é compositivo tem um posicionamento livre. Isso é possível ler e interessa-nos que as pessoas possam descobrir. Por outro lado, por vezes também o fazemos de forma a que abra a vista de maneira a que varie ao longo das varandas. Portanto as pessoas podem circular ao longo do apartamento e vão descobrindo enquadramentos diferentes de paisagem estando num extremo, num outro extremo ou no meio, numa determinada zona da varanda. As caneluras das colunas foi uma vontade mesmo muito objectiva de reflectir sobre esse aspecto das ordens clássicas. O projecto começou em 2016. Nessa altura, eu passei também por Roma e um dos exercícios que fiz foi andar, através da cidade, a medir e a comparar alguns exemplos de caneluras em edifícios, mas que naturalmente são situações muito diversas. Ao medir, fotografar e avaliar a escala da coluna, a dimensão da nervura e, no fundo, compreender as relações métricas entre as partes ajudou-me bastante a desenhar aquelas caneluras. E na verdade há um facto curioso. Aquele desenho das caneluras é o que foi proposto no projecto de execução, mas eu nunca fiquei completamente convencido. No arranque da obra propus um desenho de caneluras completamente diferente com caneluras menos profundas e menor número de caneluras. O resultado foi uma amostra lindíssima. Na mão a pedra, com as caneluras que não são as que estão construídas no edifício, era muito mais bonita, mas pedi para instalarem as duas amostras no segundo ou terceiro andar para eu perceber exactamente como é que funcionaria à distância. O resultado foi curioso porque aquela que era mais bonita na mão funcionava muito pior no edifício e então o empreiteiro ficou um bocado desconcertado porque ofereceu alguma resistência a fazer a segunda amostra. Ficou um bocado desconcertado quando eu, após ter dito que gostava mais de uma amostra, percebeu ao olhar para a fachada que optei pela outra amostra e que, na verdade, tinha sido o desenho original.

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SN - Daí a importância de experimentar esses aspectos em obra, não é? Nada fica fechado no desenho. Há depois muitas decisões que se tomam em obra. Gostaria que explicasse a quem nos está a ouvir (tendo em conta que temos muitos ouvintes que não são arquitectos), o que são caneluras. Consegue-nos explicar?

JM - São aqueles cortes no corpo da coluna, no fuste da coluna. Ou seja, aquelas concavidades que marcam aquelas linhas verticais nas colunas. Portanto, naquele caso, são semicírculos em escavação e que depois são estendidos pela coluna acima. 

SN - Para além desta experimentação em obra, sei que uma das coisas pelas quais são conhecidos no vosso processo de trabalho é por fazerem muitas maquetes. Para a preparação desta entrevista até percebi que houve 250 maquetes para o centro comercial de Sintra. Para este projecto, em específico, fizeram muitas maquetes para vos ajudar a decidir questões relacionadas como as de nível espacial dos apartamentos e da fachada? Explique-nos como foi este processo criativo deste edifício.  

JM - Foi muito semelhante àquilo que é a nossa metodologia, de facto. Embora tivéssemos a limitação da estrutura e nós chegamos a pensar em demolir a estrutura de alto a baixo.

SN - A estrutura anterior do edifício? 

JM - Exactamente. A estrutura era o nosso ponto de partida. Depois havia limitações complexas porque, como se mudava de uso, tinha de se respeitar os novos regulamentos para edifícios de altura superior a 28 metros. Isso obrigou a demolir totalmente as escadas, os elevadores e construir tudo de novo. Havia depois outras questões que tinham a ver com reforços da estrutura preexistente, que não obedecia aos regulamentos. Aliás não obedecia aos regulamentos da época em que foi construído e muito menos aos da época actual. Existia mais a questão da extensão das varandas, em termos de correcções, para conseguirmos orientar a vista também para sul, em direcção ao rio. E aí tivemos de demolir parte da fachada.  

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SN - Porque havia uma fachada que era cega, não era?

JM - Exactamente. Demolimos a partir da altura em que é suposto o edifício vizinho poder também elevar o número de pisos. Aliás ainda demos uma margem. Ainda construímos mais acima e recuamos a distância que permite depois orientar a vista sob o lote do vizinho, mas partimos disso e havia, obviamente, muitas formas possíveis de abordagem do redesenho do edifício. Não me recordo exactamente de quantas maquetes fizemos, mas fizemos muitas com soluções muito diferentes. 

E depois havia também a questão técnica de como suspender varandas com estruturas metálicas, pois na verdade por detrás daquela pedra estão estruturas metálicas. Ou seja, dentro daquelas pedras. Portanto, fizemos um conjunto de ensaios.

SN - Ou seja, essas maquetes ajudavam também a verificar o sistema construtivo. É isso? 

JM - Sim, as maquetes ajudaram a resolver questões formais como os ritmos, o desenho da relação com os edifícios envolventes e, simultaneamente, permitiram testar. Quando construímos estamos também a tentar antecipar soluções estruturais. E assim o fizemos. Já agora, esqueci-me de dizer há pouco um pormenor relativo à pedra. A pedra branca, em geral, em Lisboa, é o lioz, mas também existem muitas outras pedras em Lisboa. Decidimos trabalhar com uma pedra portuguesa, uma pedra portuguesa que na verdade é relativamente económica. É o mármore ‘Pele de Tigre’ de Vila Viçosa. Para lhe dar uma tonalidade mais suave – como os veios por vezes são muito carregados de negro – ela foi desbastada com jacto de areia, por isso depois aparece quase como se tivesse estado disposta a intempéries há dez ou vinte anos, o que lhe confere aquela textura mais sóbria, mas ainda conseguindo ler os veios que a pedra tem.

SN - Qual tem sido o feedback que tem recebido quer dos moradores quer da cidade sobre o edifício?

JM - Quanto aos moradores, era expectável que gostassem muito. Relativamente à resposta das pessoas, em geral, da cidade – como em tudo, em Arquitectura (e habituei-me a isso desde que saí da faculdade e comecei a desenhar edifícios) – há aqueles que gostam e aqueles que não gostam. Na verdade, os comentários que me chegam (sobretudo de arquitectos) são muito positivos. As pessoas que me vêm falar (amigos e arquitectos) gostam bastante do projecto, mas para ser franco não é onde eu me foco. Na ARX, nós tentamos responder aos programas nos contextos que nos são dados. Com a nossa forma de trabalhar, exigência e obsessão tentamos dar a resposta que nos parece fazer sentido naquele lugar, naquele momento, com aquelas pessoas. Neste lugar, pessoalmente, estou bastante satisfeito com o resultado. Foi um trabalho muito duro, desde 2016, porque envolveu uma quantidade muito grande de desenho. 

Quando o edifício tem problemas técnicos complexos de reforços, quando temos de compensar desequilíbrios provocados pelo excesso de presença de um elemento estrutural dentro de um espaço, quando temos de desenhar muita coisa nova como um simples puxador e muitos outros objectos que existem pelo edifício fora – tudo isto obriga a um tempo muito grande de trabalho. 

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SN - Exigiu muita dedicação este projecto?

JM - Sucessivo e de questionamento porque normalmente terminamos uma fase e, quando voltamos ao projecto, regressamos sempre com uma abordagem crítica. Procuramos sempre descobrir onde é que podemos melhorar, onde é que podemos questionar, onde é que podemos rever o projecto e, neste caso, isso aconteceu até o término da obra. E, felizmente, a Vanguard Properties (o nosso cliente) foi impecável, esteve sempre do nosso lado a esse nível. É certo que, no início, colocou a exigência muito grande e, portanto, nós tivemos de exigir também o acompanhamento da nossa obsessão e exigência. Só tenho a dizer bem porque foram impecáveis, de início ao fim. E depois sentimos uma grande responsabilidade porque é a nossa cidade. O edifício tem uma escala muito grande e que nos interessava. No fundo, é quase uma questão de reconciliar com a cidade. Pelo menos, era isso que nós víamos como um dos aspectos fundamentais deste projecto. 

SN - O que é que lhe ensinou o Castilho 203 sobre a Arquitectura?

JM - O Castilho 203 – para além de me ter dado a oportunidade de desenhar uma série de dimensões numa obra de maneira extremamente exigente e também muitas vezes com suporte financeiro (que é raro) – deu-me sobretudo uma reflexão sobre a cidade. Isto é, uma reflexão sobre a cidade e de como – mesmo em situações em que parece impossível devolver o edifício à cidade, mesmo parecendo impossível por causa das suas características (neste caso, devido à escala do edifício) – é possível relacionar o Castilho 203 de forma equilibrada com a cidade. E é possível porque a Arquitectura é feita de uma série de dimensões em paralelo. Obviamente existe essa questão da escala, da matéria, da luz e da minúcia do detalhe. No fundo é isso e deu-nos oportunidade de desenhar um edifício que está localizado num lugar privilegiado e inspirador, como eu referi no início. Desde sempre, há um cruzar com o Ritz, ao entrar nele há um cruzar com o Palácio da Justiça. 

Sempre foram edifícios que me fascinaram naquela zona e que, neste caso, foram também referências importantes para nos motivar e para por um lado sentirmos a responsabilidade de tentar acompanhar a qualidade dos edifícios daquela zona da cidade, mas também por outro lado dá-nos sempre imenso entusiasmo ter uma oportunidade como esta. Tentamos que esse entusiasmo fosse legível na qualidade do desenho do edifício, a começar desde logo pelo desenho da porta de entrada, onde o 203 é assumido numa escala que é própria não tanto de Lisboa. Aquele 203 mais alto do que uma pessoa, no fundo, acompanha a escala da própria zona, ou seja do Parque Eduardo VII.

SN - É quase uma peça de escultura esse 203. 

JM - Sim e também da própria escala do edifício que assinala essa entrada de forma clara. Mas, falando de escultura, há depois uma circunstância interessantíssima. No átrio da entrada, há um pilar que assentava de uma determinada maneira. Aquele pilar sempre nos pareceu um problema durante a fase inicial do projecto até que decidimos convidar o artista José Pedro Croft para reflectir connosco aquele espaço.

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SN - Foram vocês que o convidaram a participar! 

JM - Sim, fomos nós. Convidamos José Pedro Croft para trabalhar connosco no átrio, para pôr os olhos e reflectir particularmente sobre o pilar. Quando vi a maquete que o José Pedro nos apresentou não vou dizer que fiquei surpreendido porque quando o escolhemos foi porque temos uma enorme admiração pelo seu trabalho e, sobretudo, pelo modo como ele reflecte sobre noções de percepção, de escala e ambiguidade perceptiva que, como arquitectos, nos interessa imenso. O José Pedro fez ali, para mim, uma das melhores obras que me recordo de ele ter feito. Essa obra é perceptível para quem passa à frente do edifício e olha através da grande vidraça do átrio, mas ganha uma importância incrível quando alguém entra no átrio de acesso ao prédio. Não consigo imaginar o átrio sem a obra do José Pedro Croft que, na verdade, contém em si um pilar que, no início, parecia ser um problema.  

SN - Ele também ajudou a resolver problemas de arquitectura.  

JM - O problema em Arquitectura, como todos nós sabemos, é sempre uma oportunidade. Isso é também muito comum no decorrer das obras. As obras contam coisas que contradizem, questionam e põem em causa o nosso desenho, levando-nos a ter de pensar outra vez sobre esses aspectos. 

Eu costumo dizer aos arquitectos da ARX quando estão na assistência técnica da obra e regressam com alguma ansiedade quando encaram esses momentos. Eu digo-lhes: “Não te preocupes porque isso é uma oportunidade de levarmos o projecto um pouco mais longe”. E acho que a Arquitectura é muito feita disso, de aproveitar essas oportunidades até ao último momento da obra. 

SN - José, muito obrigada pela sua partilha e pelo seu optimismo, compromisso e dedicação que tem tido, ao longo dos anos, com a arquitectura não só no atelier ARX Portugal, mas também pelo empenho que tem desenvolvido neste papel de divulgar a arquitectura portuguesa.

JM - Muito obrigado eu. E desejo o maior sucesso para o resto dos programas que, de facto, têm sido fantásticos. Muito obrigado eu. 

SN - Obrigada José.

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Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "Diálogos entre arquitetura e cidade: entrevista com ARX Portugal" 20 Nov 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/971099/dialogos-entre-arquitetura-e-cidade-entrevista-com-arx-portugal> ISSN 0719-8906

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