O papel do espaço público na democracia: entrevista com depA architects

No País dos Arquitectos é um podcast criado por Sara Nunes, responsável também pela produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, que tem como objetivo conhecer os profissionais, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa contemporânea de referência. Com pouco mais de 10 milhões de habitantes, Portugal é um país muito instigante em relação a este campo profissional, e sua produção arquitetônica não faz jus à escala populacional ou territorial.

Neste episódio, Sara conversa com os arquitetos Carlos Azevedo, João Crisóstomo e Luís Sobral do depA architects sobre a exposição do projecto In Conflict, a representação portuguesa na Bienal de Arquitetura de Veneza. Ouça a entrevista e leia a transcrição da conversa, a seguir:

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Reveja as entrevistas já publicadas do podcast No País dos Arquitectos:

Sara Nunes - Bem-vindos Luís, Carlos e João! 

Luís Sobral, Carlos Azevedo e João Crisóstomo - Olá, Sara!

SN - Antes de começarmos esta conversa e falarmos sobre o projecto que nos traz a esta conversa, gostava que explicassem a quem nos está a ouvir, o que é que é a Bienal de Veneza. Se calhar começava por ti, João.

João Crisóstomo - O desafio que nos foi lançado que era o desafio de fazer uma representação nacional era, na verdade, um desafio maior que vinha do curador que colocava a seguinte pergunta aos restantes pavilhões: “Como viveremos juntos?” ("How will we live together?"). Nós respondemos a isso de uma forma muito simples e que nos pareceu também muito óbvia, mas que hoje em dia podemos ter tendência a esquecer-nos. 

Isto porque vivemos em conflito, um conflito que significa, na prática, que nós temos de perceber que vivendo em democracia – quisemos também fazer esse reforço desta ideia de vivermos em conjunto e em democracia – temos de aprender a viver com esse conflito. Obviamente não é um conflito bélico, um conflito de competição, mas um conflito ao nível do debate das ideias, das opiniões e de uma construção comum através dessa discussão, dessa base comum. Genericamente, acho que é isto que nós queríamos transmitir com o “In Conflict”

SN - João, já nos revelaste algumas coisas sobre a nossa representação portuguesa da qual vocês foram responsáveis, mas o meu desafio era ainda mais geral porque há muita gente que não é arquitecto(a) e, para essas pessoas, gostava que explicasses em que é que consiste a Bienal de Veneza e não, necessariamente, a vossa proposta.

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Reconstrução de Casas Destruídas pelos Incêndios de 2017_ © Ateliermob. Fotografia de Fernando Guerra | FG+SG

JC - A Bienal de Veneza é, acima de tudo, uma instituição que tem como objectivo ir lançando nas várias artes do Teatro, do Cinema, da Música e, essencialmente, da Arquitectura, uma reunião internacional do debate de ideias. Ou seja, uma exposição que parte sempre de um tema comum, no caso concreto da Arquitectura. Há sempre um tema tronco lançado pelo curador geral que depois vai-se ramificando em representações nacionais, tanto em pavilhões individuais como na própria exposição do curador geral do pavilhão principal da Bienal. É uma grande nave onde ele concentra uma série de autores escolhidos com vários temas e trabalhos e que, na verdade, não é mais do que um lançamento de um grande tema que reúne, em seu torno, a discussão do Presente e do Futuro da Arquitectura. Penso que, no fundo, é um pouco isso. O modelo em si tem sido debatido, tem sido posto em causa. No caso da Arquitectura, vem já desde meados do século XX, mas continua a ser, quanto a nós, um modelo válido e, acima de tudo, trata-se de um momento de reunião e de reflexão sobre a própria disciplina. Acho que é isso que importa. 

E depois há uma outra layer muito importante que subjaz tudo isto e que não é só a discussão da arquitectura per si, mas também a discussão entre arquitectos. Isso é que é interessante por causa das ligações que se fazem, do networking que se proporciona entre pavilhões entre pessoas e participantes. 

SN - Falavas que na Bienal tem sido posta em causa também pelo seu modelo. Dizias que continua a fazer sentido, mas vocês também puseram aqui em causa, nesta exposição, a forma de apresentar, explicar e falar da Arquitectura que, tradicionalmente, é feita com desenhos, maquetes, fotografias e filmes. Vocês partiram de artigos de imprensa e de como é que ela retratou estes projectos (que tu falavas há pouco) como conflituosos. Luís, porque é que quiseram apresentar a Arquitectura através da imprensa? 

Luís Sobral - Primeiro de tudo, parte do próprio tema que nós quisemos escolher para responder ao Hashim Sarkis (curador da Bienal). Partimos desta ideia do conflito e da Arquitectura como algo que está na vida das pessoas e que não é pacífica. E não é pacífica porque lida com muitos pontos de vista, muitos interlocutores. É normal que, nessa complexidade, não haja sempre consenso. Nós achámos que a melhor forma de mostrar essa ausência de consenso – mas também essa relevância pública dos processos – seria recorrendo à imprensa porque, na verdade, é um suporte muito acessível. Toda a gente compra jornais, toda a gente consome notícias (seja em papel, online ou televisão). Achámos que essa seria também uma forma de aproximarmos o público, em geral, da nossa exposição ou, inclusive, da nossa disciplina. Trata-se de uma luta que nós vamos tendo – nós, arquitectos – e está longe de estar ganha. Essa luta tem a ver com o facto de nós falarmos muito para nós (entre arquitectos). Temos um diálogo que, muitas vezes, é pouco acessível e muito fechado. 

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Plano de Pormenor da Aldeia da Luz em Mourão. Foto © Pedro Bandeira

E a verdade é que quando chegamos às pessoas para falar sobre o nosso trabalho e sobre a nossa disciplina, percebemos que há uma grande distância. Eles nem sempre entendem qual é que é o verdadeiro poder da nossa disciplina. Portanto, quisemos pôr isso em cima da mesa, quisemos fazer esse teste para ver se conseguíamos aproximar as pessoas. Foi essencialmente isso. 

SN - Sobre este tema, vocês trazem para debate sete projectos. Um deles já foi abordado neste podcast com o arquitecto Tiago Mota Saraiva (a reabilitação de sete casas que foram fustigadas pelos incêndios, em 2017). Carlos, fala-nos sobre as propostas de temas que apresentaram na representação portuguesa.

Carlos Azevedo - Com os projectos escolhidos, para nós mais do que o projecto em si, interessa-nos o processo, toda a discussão que ele envolveu e todos os actores que ele convidou a intervir. Na escolha destes processos, baseamo-nos numa cartografia que fizemos do país, desde a data que escolhemos como inicial que foi o estabelecimento da nossa democracia porque, nessa altura, de uma maneira mais aberta, esta participação social tornou-se mais preponderante. Nesta cartografia do projecto, conseguimos reunir temas principais como: o deslocamento de populações por necessidade de implantação de grandes infraestruturas; as grandes questões da habitação social e da carência da habitação; os desastres naturais que aconteceram (como o caso que estavas a referir dos incêndios, em 2017 ou outros casos equivalentes que temos como o incêndio do Chiado); e a necessidade da criação de tecido novo de cidade e de expansão urbana que também é importante. Portanto, a partir destes grandes temas, escolhemos estes sete processos paradigmáticos, que não foram seleccionados apenas pela especificidade da arquitectura de cada um deles, mas também pelo abrangente diálogo que cada um desses processos motivou e também por, de alguma maneira, se relacionarem com uma série de outros projectos ou processos que identificámos e que já explicámos na estrutura da exposição. 

Cada um dos sete processos depois chama uma série de outros projectos relacionados, que lidam com os mesmos temas e que são sempre temas estruturantes na comunidade, estruturantes para o país e para o desenvolvimento do nosso ambiente urbano e social. Não sei se esperavas que especificasse um bocadinho mais.

SN - Acho que podemos falar mais à frente. O que eu estava a pensar é que alguns dos projectos que geraram conflito, continuam a ser actualmente foco de tensão, como é o caso do Bairro do Aleixo no Porto em que as torres foram demolidas, mas as pessoas não foram devidamente realojadas. Há nesta exposição casos de sucesso, como o bairro dos ‘Índios da Meia Praia’, o conjunto habitacional dos ‘Cinco Dedos’, a Ilha da Bela Vista reabilitada recentemente e as casas que falámos há pouco que foram reconstruídas após os incêndios. Com a reflexão e o debate que esta exposição vos permitiu, conseguem perceber porque é que alguns destes projectos falham (como o exemplo que mencionei no início) e porque é que outros são bem-sucedidos? Lanço o desafio a ti, Luís, mas se algum de vós também quiser intervir.

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© José Campos

LS - Acho que antes de respondermos a esta pergunta, temos de  ter noção de que nos podemos posicionar em diversos quadrantes e nalguns quadrantes se calhar conseguimos identificar esse sucesso que tu referes em todos os projectos, mas se mudarmos de quadrante ou se mudarmos de interlocutor vamos também detectar as suas falências. 

SN - Ou seja, não são bem-sucedidos a cem por cento. 

LS - Sim, como nenhum será. Nenhum projecto será bem-sucedido a cem por cento se tivermos esta humildade de reconhecer que o projecto não é só um diálogo do arquitecto com outra pessoa qualquer ou com outro arquitecto qualquer.  

Nós aqui quisemos mostrar a arquitectura não só do ponto de vista do arquitecto ou da disciplina, mas do ponto de vista dos outros. Portanto, conseguimos perceber que todos os projectos têm as suas falências e todos os projectos têm as suas qualidades. Algumas qualidades são mais evidenciadas pelos arquitectos e pela disciplina; outras qualidades são mais evidenciadas pelos utilizadores que serão as pessoas mais importantes quando se pensa Arquitectura. Mas a verdade é como dizes: todos os processos estão ainda todos eles muito vivos. Não sei em qual é que deva pegar, mas se calhar vou falar dos que tu disseste. Realmente, no Aleixo, há um problema que nós conseguimos identificar noutros territórios. Por exemplo, associado à Torre do Aleixo está também o Bairro 1º de Maio que, sendo de uma arquitectura completamente, tem o mesmo tipo de problemas. Tem uma massa populacional que não está ao abrigo da protecção que grande parte de nós tem. Muitas vezes são pessoas que não estão identificadas como estando a residir naquele local. Será o caso mais gravoso que há no Aleixo. Havia muita população que vivia lá que não estava registada, não pagava uma renda e não era inquilina daquele prédio. A verdade é que o protocolo manda realojar ou solucionar essas pessoas que estão ao abrigo dessa protecção social.  

SN - Ah! Ok. Estou a perceber. 

LS - Há muitas pessoas que não estão protegidas por isso e as pessoas que não estão protegidas, perdendo aquele tecto, vão para outro lado qualquer, às vezes sem tecto. Tu que estás aqui no Porto, deves estar a par da pressão que há na zona das traseiras do Museu de Serralves que é um óptimo equipamento da cidade, um equipamento de referência e que neste momento tem um acampamento de pessoas deslocadas do Bairro do Aleixo, que estava muito próximo. Mas a verdade é que mesmo nos outros que referiste como sendo mais bem-sucedidos – como, por exemplo, os ‘Índios da Meia Praia’ – há muita situação por resolver. 

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No bairro dos ‘Índios da Meia Praia’, as casas ainda não são propriedade das pessoas. As casas nunca chegaram a ser propriedade de ninguém, portanto foram feitas ao abrigo de um programa que tinha o chapéu do Estado, mas a verdade é que as pessoas não são donas da sua casa e está-se a discutir quem será o dono daquele terreno. Portanto, corremos até o risco de haver uma diluição do próprio bairro.

SN - Caramba!

LS - E ainda no conjunto habitacional dos ‘Cinco Dedos’, consegues encontrar uma série de problemas sociais em toda aquela zona. Nós escolhemos esse projecto por várias razões. Duas delas são muito claras. A primeira por ser um projecto do Vítor Figueiredo, que é um arquitecto que – a partir da Câmara, a partir de uma actuação enquanto funcionário público – construiu muita habitação social. Tinha um ponto de vista muito próprio, muito generoso na sua relação desses edifícios com as pessoas que os iriam habitar. Essa será a grande primeira razão para escolhermos esse projecto. O outro motivo é porque está em toda aquela zona de Chelas, que tem uma série de problemas por sanar e haverá edifícios lá que estão a funcionar melhor e outros a funcionar pior. E a verdade é que a grande parte deles foram construídos por grandes arquitectos da nossa disciplina. Portanto, como vês, peguei naqueles que tu tinhas identificado como sendo mais bem-sucedidos. Nós conseguimos encontrar essas falências quando mudamos o ponto de vista. 

SN - Coisas por resolver. 

LS - Sim e era isso que nós queríamos fazer também: mudar o ponto de vista. Pensar que a Arquitectura é algo que nós fazemos enquanto arquitectos com generosidade, para abrigar acções, abrigar vida e quando estamos a pensar os edifícios temos de pensar nisso. 

Temos de pensar o que é que as pessoas vão fazer neles e como é que vão lidar com eles. É uma das mensagens que está nesses vários layers da nossa exposição.

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SN - Uma das coisas que eu achei curiosa nesta exposição – vocês poderão contar melhor – é que nesta exposição não fazia só parte o projecto expositivo que apresentaram em Veneza. Havia também uma série de debates. Há uma coisa curiosa que a Helena Roseta dizia num desses debates (que, já agora, para quem tiver curiosidade, estão disponíveis no YouTube da própria exposição ‘In Conflict’). A Helena mencionava que o conflito que existe, na verdade, é entre a cidadania e a burocracia. Achei engraçado porque os conflitos que tu referiste agora, por exemplo, no Aleixo e nos ‘Índios da Meia Praia’ têm muito a ver com esta luta entre a burocracia, a cidadania e o direito à habitação. Eu gostava que agora o João se juntasse a nós, fugíssemos um bocadinho aos projectos e falássemos um pouco do processo de fazer esta exposição. Esta exposição era para ser inaugurada em Maio de 2020, foi adiada duas vezes e, por fim, foi inaugurada em Maio deste ano. Ainda está a decorrer e há quem ainda possa visitar. João, diz-me até que data podemos visitar esta exposição.  

JC - Será até o dia 21 de Novembro. Faltam seis semanas. 

SN - Seis semanas para quem tiver oportunidade ainda pode visitar a exposição. Pergunto-vos qual foi a experiência de terem sido curadores envolvidos numa Bienal com tantas incertezas. Acham que a exposição ganhou com isso? E perguntava-vos também – ainda que já tenhamos desconfinado (não só em Portugal, em Veneza também) – como é que está a ser a adesão por parte das pessoas a esta exposição?

JC - A experiência, obviamente, é sempre enriquecedora e foi brutal na sua intensidade. Acabou por ter um equilíbrio muito confortável nesse drama da incerteza. 

Essa incerteza ia desde as datas, dos constantes adiamentos até à incerteza da própria realização. Depois, obviamente, havia a incerteza de toda a logística e dos participantes. Mesmo assim, havia também o conforto que foi o processo no sentido em que deu mais tempo para pensar, maturar o tema, completar os conteúdos e formalizar outras conversas para além das que tínhamos previsto em S. Bento com os participantes.  

SN - Isso era uma coisa que eu vos ia perguntar. Por exemplo, estes debates – eu dei o exemplo do que se intitulava ‘No Silver Bullet’ – já estavam previstos inicialmente?

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JC - Parcialmente. Mas eu ia chegar aí porque, no fundo, isto gerou algumas dinâmicas em várias direcções. Dentro da nossa própria exposição, houve um aprofundamento de alguns dos projectos, dos temas, do seu complemento com outros projectos que não estavam previstos inicialmente. Tudo isto acabou também por ter um reflexo na densidade do catálogo que os deixou muito contentes. Houve uma dinâmica fora do pavilhão que foi uma interacção muito maior que não se tinha visto inicialmente entre os vários curadores porque houve tempo e necessidade também de criarmos uma plataforma comum onde pudéssemos perceber o que cada um estava a pensar fazer, adaptar, encontrar linhas de força e de pensamento no sentido de nos reorganizarmos todos. Obviamente, depois deste novo panorama havia divergências e objectivos diferentes, quanto às datas da inauguração, à forma de adaptar os conteúdos e por aí fora. Portanto, gerou-se aqui uma dinâmica bastante interessante entre curadores. Outra linha foi também o complemento – agora voltando à nossa exposição –, pois para além dos conteúdos e dos espaços expositivos propriamente em si, nós sempre quisemos promover o diálogo. Se estamos a falar de uma exposição que traz à tona a necessidade de debater ideias, obviamente que não poderíamos deixar de organizar uma série de debates para que se complementasse. 

Até porque esta exposição é tão larga no tema que nós nunca conseguiríamos encerrar na própria exposição tudo o que se poderia debater. Queríamos, portanto, alargar esse debate, trazer oportunidade a outras pessoas de o debater e de complementar a exposição com outros temas que não tinham sido abordados. Sempre esteve desde o início previsto na organização seis debates: três comissariados por nós, através de moderadores escolhidos, e outros três através de uma Open Call. Portanto, mais uma vez aqui a ideia de envolver o maior número possível de pessoas e também aqui da forma mais aberta possível. Com a pandemia, nós conseguimos acrescentar a estes seis outros três com as ferramentas que, de repente, todos descobrimos.

SN - Certo!

JC - Fizemos mais três debates online, portanto aumentámos o arco dos temas debatidos e o número dos debates e também foi, por isso, interessante. Isso permitiu mimar o calendário que por via do adiamento começou a ter ali uns meses de interregno. Portanto, nós tivemos de ir aumentando a exposição com esses novos conteúdos. Foram feitos online porque também, na altura, era o que era possível fazer-se à distância perante as condições que todos tínhamos.

SN - O que eu acho ainda mais curioso é que acho que foram muito pertinentes na escolha do tema, principalmente porque muitos dos projectos abordam a questão da habitação social. Tema esse que agora tornou-se ainda mais pertinente porque estivemos em Portugal quase mais de 15 anos sem investir em habitação social. Finalmente, vai haver esse investimento que pretende passar de dois por cento – (a nossa oferta actual), muito baixa relativamente à média europeia – para cinco por cento com o Plano de Recuperação e Resiliência. Pergunto-vos se estão a acompanhar este processo e se sentem que o vosso projecto foi uma contribuição valiosa para estes processos que vão agora iniciar.

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O que acham que deveria ser feito em relação à habitação social e nas nossas cidades? Carlos, eu deixei-te um desafio muito grande, não foi, com estas perguntas todas? Acham que a vossa exposição está a contribuir para que este debate e para que os processos de habitação social sejam feitos da melhor forma? 

CA - É uma pergunta muito abrangente, mas estão aí para me ajudar se eu me esquecer de alguma coisa ou se eu deixar alguns pontos em aberto. Por um lado, a nossa exposição pretende ser mais uma contribuição ou pretende dar o espaço para que estes assuntos estejam na ordem do dia e que continuem a ser discutidos. E não é por acaso que, pelo menos, dois dos debates que nós tivemos se focaram muito nesta questão. Até um dos primeiros logo a referir o exemplo de Lisboa com casos paradigmáticos e opções muito diferentes nesta questão da habitação. Em paralelo, importa dizer aqui que a carência da habitação não é neste momento só para as classes mais desfavorecidas. Hoje em dia, em Portugal, a classe média também tem uma grande carência de habitação. Portanto, nós tentamos focar-nos neste tema da habitação não como a questão da habitação social, mas sim focando-nos no direito à habitação.

SN - Certo!

CA - Direito que tem de ser transversal à nossa sociedade. Nesse sentido, acho que os debates foram muito relevantes e trouxeram espaço para essa discussão. 

É com agrado que nós vemos surgir no espaço da discussão pública várias visões diferentes sobre este tema da habitação que não só falam no tema da habitação social, mas também exploram uma série de outros temas relacionados como o da coabitação entre gerações, o da mobilidade social que é importante para que as pessoas consigam de alguma maneira subir nas suas possibilidades e possam ter mobilidade dentro desses tipos de habitação, a ocupação dos centros históricos e dos centros das cidades com habitações desse tipo, seja habitação social ou habitação de renda controlada. Portanto, não diria que a nossa representação teve um papel dinamizador nesse aspecto, mas teve certamente espaço para a discussão desses temas e teve a sua contribuição, por isso ficamos bastante satisfeitos. 

SN - O que é que vocês aprenderam sobre Arquitectura ao fazerem esta exposição? Esta pergunta é para todos! 

LS - É uma pergunta muito difícil, Sara. Eu acho que aprendemos muita coisa. Há uma coisa que não aprendemos, mas confirmamos é que continuamos a ter muito para aprender. Essa é se calhar a primeira grande confirmação na aprendizagem. Poderia enumerar muita coisa, mas tenho medo dessa especificidade porque, na verdade, isto é uma grande empreitada, como tu deves imaginar.

SN - Certo!

LS - Mete-nos em muitas discussões, tocamos muitos assuntos, desde a própria produção da exposição, passando pela concepção do projecto expositivo, a acepção dos projectos, as entrevistas que fizemos com toda a gente e que vertemos em catálogo, até às viagens que fizemos pelo país para visitar grande parte das obras. 

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SN - Visitaram todas?

LS - Praticamente todas, mas não estou a falar das sete. As sete, sim, visitamos todas. Porém, associados aos sete processos há outros três. Portanto, estamos a falar de um universo de 28 obras. Não vou garantir que as vimos todas, mas vimos praticamente todas. E também aí beneficiamos globalmente do tempo da exposição que se calhar não teríamos conseguido se não fosse assim. E visitámos grande parte delas com as pessoas que estavam envolvidas nos processos (isto incluindo os arquitectos ou não). Como deves imaginar, nesta complexidade toda, tocámos muitos assuntos e aprendemos com muitos. É difícil enumerar um qualquer, mas acho que é muito importante e deixo esse desafio para que as pessoas que tenham curiosidade sobre estes temas leiam o catálogo porque no catálogo deixamos a nu uma parte que vai para além da exposição. Falo das conversas que tivemos com as pessoas envolvidas nas obras. Conversámos com elas, conversámos com algumas durante muito tempo. Passámos, por exemplo, um óptimo dia com o arquitecto José Veloso (o autor dos ‘Índios da Meia Praia’), uma obra dos anos 1970, da qual ele fala ainda com muito carinho. E, na verdade, ele continua a lutar por aquele lugar para que o projecto não se perca e depois conseguimos colocar todas essas conversas nesse catálogo. Se calhar estão lá condensados os melhores ensinamentos que nós podemos retirar de todo este processo. Talvez ainda não tenhamos a distância suficiente para eleger dois ou três. 

SN - Luís, já agora, para quem não vai a Veneza, onde pode adquirir esse catálogo?  

LS - Esse catálogo foi feito com a editora Circo de Ideias. É uma editora de Arquitectura aqui do Porto que vende o catálogo. Se procurarem o site dessa editora vão encontrar o livro e podem comprá-lo a partir do site. Ou se quiserem vir ao Porto ou se são do Porto, podem visitar a loja dessa editora que fica no Bairro da Bolsa (uma das pequenas lojas desenhadas pelo Siza no confronto com a Rua da Boavista). 

SN - Uma boa oportunidade para adquirirem não só o catálogo, mas também conhecerem boa arquitectura. João, e o que é que tu aprendeste com este processo, ao fazer esta exposição?  

JC - Com o processo, em si, aprendemos obviamente muita coisa, como o Luís estava a dizer, mas sobre arquitectura eu acho que houve mais confirmações do que propriamente aprendizagens. Para mim, duas grandes confirmações têm a ver com a ideia da necessidade de falar com todos e aí o arquitecto pode recuperar o seu papel de mediador. Ou seja, há esta dualidade de nós provavelmente termos de reaprender que a arquitectura tem um lado que vai muito para além do seu lado desenhado, por isso deve ir muito para além do seu círculo fechado entre arquitectos. E esse falar com todos é muito importante. Neste processo a recuperação da proacção dos arquitectos, do seu papel mediador, gerador de gatilhos na discussão em todos os processos é realmente muito importante e tem-se perdido nas últimas décadas. Obviamente que nós não estamos a inventar a roda. Longe disso! Mas estamos a contribuir para se voltar a falar um pouco desta necessidade e, portanto, é por isso que eu digo que não foi uma aprendizagem, mas foi, obviamente, uma redescoberta e um novo ganhar de convicção. Sobre o processo em si (como o Luís disse) nós podemos dizer muita coisa. Foi muito...

SN - Foi muito intenso, não é? 

JC - Foi muito entusiasmante para nós. Gostamos de ter uma actividade diversificada. Já tínhamos sido curadores de algumas exposições, obviamente, de dimensão muito inferior. Foi para nós um complemento muito interessante, desde o escritório, da execução pura e dura do projecto, das aulas. O nosso atelier é um atelier aberto, pluridireccional e, nesse sentido, este desafio que nos foi lançado foi extremamente gratificante também. 

SN - Sim, acho que nenhum curador foi durante tanto tempo curador desta exposição. 

JC - É assim. Como a selecção nacional, também nunca houve uma equipa durante tantos anos campeã da Europa. (risos) 

SN (risos) Carlos, não sei se tens mais alguma coisa para acrescentar? 

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CA - Sim, só para acrescentar um pormenor. Não se trata tanto de uma descoberta, mas de uma confirmação da pertinência do compromisso que a nossa profissão tem de ter com o espaço público, o espaço de discussão e a sociedade civil porque, de facto, nós retratamos aqui uma série de casos em que os arquitectos tiveram um papel quase heróico de resistência ou de proacção. Sentimos que, a dada altura, esse caminho se foi esquecendo. Obviamente que continuamos a ter nos nossos dias muitos casos em que isso continua a acontecer, mas se calhar é uma realidade um pouco mais afastada da nossa profissão e das nossas escolas. E é bom relembrar essa dimensão que nós temos e que é muito generosa para a nossa profissão. 

SN - Muito obrigada! Ai, desculpa, Carlos. Querias acrescentar mais alguma coisa?

CA - Não, era só para rematar. Ia só dizer que foi uma das aprendizagens importantes.

SN - Carlos, Luís e João muito obrigada pela vossa partilha. E obrigada por nos mostrarem, através desta exposição, a importância de falar com todos sobre a edificação das cidades, assim como a importância de aproximarmos as pessoas à Arquitectura. Muito obrigada por esta conversa.

LS, CA e JC - Obrigado, Sara! Obrigado pelo convite também! 

Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "O papel do espaço público na democracia: entrevista com depA architects" 13 Nov 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/970785/o-papel-do-espaco-publico-na-democracia-entrevista-com-depa-architects> ISSN 0719-8906

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