Projetando com o tempo: entrevista com Menos é Mais Arquitectos

Com objetivo de conhecer os arquitetos, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa de referência, Sara Nunes, da produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, lançou o podcast No País dos Arquitectos, em que conversa com importantes nomes da arquitetura portuguesa contemporânea.

No episódio desta semana, Sara conversa com os arquitetos Cristina Guedes e Francisco Vieira de Campos, do ateliê Menos é Mais Arquitectos, sobre o projeto Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas, nos Açores. Reveja as outras entrevistas realizadas pelo podcast No Pais dos Arquitectos e leia a transcrição da entrevista com Saraiva, a seguir:

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Reveja as entrevistas já publicadas do podcast No País dos Arquitectos:

Francisco Vieira de Campos - Obrigado. 

Cristina Guedes -Obrigada. É um prazer estar aqui!

Sara Nunes - A Cristina e o Francisco lideram o atelier Menos é Mais. Começava por perguntar à Cristina o que temos de menos nas cidades portuguesas e como o vosso atelier quer contribuir com mais para as nossas cidades. 

CG - Nós queremos sempre fazer mais e melhor com menos. Queremos tentar sempre encontrar nas cidades, quando projectamos, o que é comum, o que é público, o bem comum, o espaço público porque uma cidade hoje em dia é feita de muitos projectos privados. É sempre a nossa preocupação. Os arquitectos desenham o futuro. O futuro é incerto e indeterminado, por isso encontrar as certezas – que são normalmente as infraestruturas – é sempre a nossa preocupação quando projectamos e quando olhamos para a cidade.

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SN - O atelier Menos é Mais está situado no Porto, mas hoje vamos viajar até a Ribeira Grande, que fica na ilha de São Miguel, nos Açores. Vamos falar sobre o edifício Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas, que é um projecto feito em colaboração com o arquitecto João Mendes Ribeiro com quem já tivemos o prazer de estar à conversa neste podcast sobre a estufa do Jardim Botânico. Pergunto ao Francisco como surgiu a ideia de colaboração e como funcionou a contribuição de cada um de vocês neste projecto.

FVC - O João já tinha tido uma parceria com a Cristina num projecto para Coimbra, na Casa das Caldeiras. Portanto, já era conhecido da Cristina, eu conheci-o mais tarde. Esta participação conjunta vem, primeiro, porque nós tínhamos alguma dificuldade em relação aos currículos. Tratava-se de um concurso de prévia qualificação e obrigava-nos a ter também uma boa sustentação do ponto de vista do currículo.

SN - Está a referir-se à experiência na construção destes edifícios, é isso?

FVC - Não, não... Isso era o que ia falar a seguir. Nós como somos ateliers pequenos, para entrarmos em concursos com alguma dimensão (do ponto de vista do financiamento destas obras, dos custos de empreitada) – falamos aqui de obras com grande valor – temos de ter no currículo obras, ou até mesmo do ponto de vista da equipa uma conjugação de factores (sejam eles de colaboradores, arquitectos que trabalham connosco, ou também de facturação dos próprios escritórios). Essa conjugação de factores levam-nos a conjugar um todo para que sejamos mais competitivos e consigamos posicionar-nos relativamente a ateliers mais robustos. Com isso surge esta ideia de parceria. Mas antes disso tem a ver, claramente, com uma sintonia total relativamente às personalidades com que trabalhamos. O João, a Cristina e eu quase não precisamos de falar sobre o que era preciso ou não fazer. Isso é a condição número um, que tem a ver com essa sintonização sobre a nossa posição relativamente às questões relacionadas com a arquitectura. Para além disso, está relacionado com uma série de posicionamentos também de tudo o que envolve e que está à volta da nossa profissão. Com isso nasce esta parceria. Esta parceria acho que (pelo que eu me lembro) foi o único concurso em que fui muito pacífico.

SN - (risos)

FVC - As decisões foram tomadas de início, as regras foram todas estipuladas por unanimidade, portanto estivemos muito em sintonia. Este concurso muito exigente – do ponto de vista do que é que nós tínhamos em mãos para trabalhar – fez com que nós conseguíssemos criar as tais regras, as tais certezas (que a Cristina estava a falar há pouco) para o ponto inicial de pesquisa. Com isso o trabalho foi uma progressão sistematizada, muito apoiada por uma equipa que é muito para além de nós os três. Tínhamos uma vasta equipa que fez com que este processo tivesse muita consistência. Trouxe-nos muita segurança do ponto de vista de como é que nós abarcamos as questões que estão relacionadas com o espaço, a construção, que é num sítio difícil. Com uma preexistência potentíssima do ponto de vista da sua consistência formal, de sistemas construtivos. Tudo isso criou condições para esta parceria. O João é muito ligado às artes performativas e – como o programa era bastante ambicioso, muito bem feito e muito ligado às artes performativas – achámos que todos em conjunto poderíamos fazer este concurso que se deu em 2007. Já passaram bastantes anos.

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SN - Há pouco falava sobre a preexistência. Pergunto à Cristina quais foram as primeiras impressões sobre o lugar e de que forma é que o lugar influenciou a vossa intervenção. Estamos a falar de um edifício do século XIX, uma antiga fábrica de álcool e tabaco. De que forma é que esta preexistência influenciou a vossa intervenção?

CG - Influenciou muitíssimo. Primeiro com a fotografia que tínhamos no concurso, que era a fotografia da ruína do edifício. Depois quando fomos ao local confrontamo-nos exactamente com a mesma imagem. Nessa fotografia via-se uma ruína de uma fábrica do século XIX com uma estrutura franca ainda de pé, sem telhado, que estava reforçada com a montanha da Serra de Pau. As cumeeiras do edifício quase mimetizavam a serra. Foi uma imagem maravilhosa, muito bonita. Quando fomos lá, começámos a investigar a preexistência, que ainda tinha grossas de paredes contrafortadas de pedra de basalto no local. Ainda estava segura, de pé, quase a fundir-se com a natureza. Essa estrutura foi o nosso encanto e então resolvemos preservar o mais possível toda essa preexistência, toda essa estrutura. Tanto mais que achávamos que para o programa em questão – que era o Centro de Artes Contemporâneas – mostrar a Arte seria o mais interessante. Há vários estudos que mostram que os artistas preferem expor em espaços que são reaproveitados, neutros, em vez de exporem em espaços autorais porque, desse modo, as obras não entram em conflito com a autoria do arquitecto. 

SN - Ok. 

CG - Portanto, foi esse o nosso princípio e foi essa a influência que a preexistência teve em nós. Foi muito interessante. Estivemos a descobrir nos desenhos o que é que ainda estava muito em bruto. Ainda tinha as silvas, andamos lá a percorrer tudo pelo meio, a descobrir e a perceber o edifício. O que é que estava escondido, o que não estava e o que se ia aproveitar. Esses dois dias lá no terreno a fazer esse nosso levantamento foram muito importantes. Esse conhecimento profundo do edifício foi preponderante para depois desenvolver o projecto futuro, onde decidimos logo à partida que as funções que não eram compatíveis com a preexistência seriam feitas em edifícios aparte que são dois edifícios novos. São os edifícios das reservas de arte, que precisam de muita infraestrutura técnica, da climatização; e a tal sala multiusos que foi proposta. Portanto, eu acho que aqui neste concurso arriscámos bastante. O programa, apesar de muito bem feito, conduzia, eventualmente, para uma forma diferente. Arriscámos porque quisemos construir volumes autónomos para não estragar a infraestrutura. 

As ideias foram muito claras, a infraestrutura da preexistência não ia ser condicionada por nada. Ou seja, ela ia manter a sua integridade como aquela escada belíssima. Se se lembram das imagens (são rores), falámos aqui das escadas em madeira que estavam atombadas. Tudo isso foi recuperado e foram pensados sistemas construtivos que segurassem, numa zona sísmica, aquela infraestrutura tão potente e aquela preexistência tão fantástica. Preexistência essa que também nos influenciou muito na visita ao local com os materiais, a pedra basáltica, a lava... Toda a construção açoriana ficou um bocadinho impregnada em nós. E realmente foi uma preexistência fantástica. 

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SN - Já agora perguntava-vos, a título de curiosidade: essa visita foi feita durante o desenvolvimento da vossa proposta para o concurso ou só depois?

CG - Este concurso teve duas fases. Uma fase de prévia qualificação. É um concurso internacional com toda a parte burocrática, os orçamentos. É bastante complexo para a pessoa ser seleccionada. Foram selecionados seis arquitectos. Nessa fase, nessa segunda parte, os seis arquitectos iriam trabalhar em seis equipas e, nessa fase, então houve oportunidade de pagarem as despesas às equipas. Nessa etapa – a nossa equipa, que era composta pelo atelier Menos é Mais, o arquitecto Mendes Ribeiro, a Gabriella Casella (na parte de conservação e restauro) – fomos lá, passámos três dias e estivemos a ver. Portanto, foi no início do concurso. Foi logo no primeiro segundo dia, na primeira semana que decidimos ir e traçámos lá no local as premissas do trabalho. Foi muito importante, realmente, porque a ruína só indo lá e descobrindo é que se percebia as potencialidades, a espacialidade. Tinha espaços muito ricos com pés direitos duplos que se adequaria muito a albergar as obras de arte. 

SN - Há pouco o Francisco falava sobre o programa e a Cristina também reforçava sobre esta ideia que o programa estava muito bem feito, apesar de vocês até terem definido um novo edifício que não estava previsto. Eu desafiava-o a descrever, Francisco, o programa do edifício e de que forma é que as funções foram distribuídas pelos edifícios preexistentes e os novos edifícios. 

FVC - Pegando um pouco na conversa que a Cristina estava a ter. De facto, quando soubemos que estávamos selecionados, o passo seguinte foi visitar a obra. Portanto, ficou logo demarcado que teríamos de ir visitar a obra, o sítio, a preexistência. E quando lá estivemos – para além de vermos o carácter fortíssimo que aquele sítio tinha, tem e penso eu que continua a ter – ao olharmos para a preexistência percebemos que iríamos ocupar os espaços das naves dos edifícios preexistentes. 

Tratam-se de naves generosas sobre uma perspectiva longitudinal. Percebemos então que esses espaços preexistentes se adequavam muito bem aos espaços expositivos, condizendo também com as áreas pretendidas. Todo o lado da exposição, o lado didáctico, os programas administrativos ficariam ou estavam mais ajustados relativamente às proporções cujos espaços preexistentes tinham e, portanto, foram ocupados à partida logo por essas funções. Todos os espaços que o programa pedia (como a Cristina disse, as reservas e, no nosso entender, a sala que era uma sala pedida, que era uma sala polivalente de espetáculos com as dimensões e com as características que nós achávamos que essa sala teria de ter) não se ajustavam à preexistência. Portanto, com a nossa opção de arriscar fizemos um edifício paralelo, integrado naquele conjunto de preexistências, que ficou com as residências de estudantes, uma parte ainda importante oficinal, uns espaços também de multimédia e tudo o que tem a ver com o espaço de espetáculos, com régie, com um palco, uma plateia total, os camarins, alguns espaços de armazenamento. 

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Era um edifício muito exigente do ponto de vista também da sua componente técnica. Estávamos muito condicionados com a introdução dessas infraestruturas. E há igualmente uma coisa muito importante na leitura que fizemos logo de início. As decisões iniciais de preservar as paredes de pedra basáltica que existiam e refazer todas as coberturas – com tudo o que estava ainda possível de fazer e o levantamento para voltar a repor de forma muito clara o que lá estava – fizeram com que toda a questão técnica construtiva da sustentação das fachadas tivesse um incremento bastante forte relativamente ao cálculo antissísmico. Portanto, a opção que tivemos inicial de preservar as paredes de pedra obrigou-nos a que esse lado mais técnico do sistema construtivo tivesse de ser feito pelo interior. Outra questão importante foi a decisão de que a infraestrutura – seja ela de climatização, sistemas de contra incêndio, toda a parte técnica que tem uma grande envergadura – para poder ser introduzida de forma serena nestes edifícios preexistentes teve de ser executada uma sistematização muito grande no espaço exterior (que tem uma série de canais enterrados). Tudo isso permite que estes espaços todos sejam possíveis de serem utilizados. Havia ainda uma preexistência que estava perto do lado sul, que ficou reservado para uma pequena loja e um centro interpretativo daquele complexo industrial. Depois aquilo que está relacionado com um projecto de um centro de Arte Contemporânea tem muito a ver com estas linhas de montagem e com os circuitos de serviço (que é o circuito dos visitantes), que não se cruzam e que precisam de ter também, do ponto de vista da entrada e saída de obras de arte, cenário e material para montagem de exposições.

Isto funciona como uma linha de montagem. Também ficou logo muito definido na nossa visita ao sítio que este pragmatismo que este edifício industrial já tinha iria ser adaptado por nós de forma muito linear. Existem as reservas da rua sul, depois temos um lado de cargas e descargas de obras de arte, as oficinas de expurgação e de reparação de obras de arte, uma carpintaria de montagem das exposições, que entra depois em linha com as salas de exposições, localizadas mais para norte. 

SN - Isto parece que é uma fábrica também! Só que uma fábrica de arte. Pela forma como está a descrever, construíram uma nova fábrica!

FVC - É verdade porque, no fundo, se nós formos ver toda a parte logística de um museu, de um centro de arte contemporânea ou de galerias – isto tem de estar tudo encadeado. Exactamente por os processos de comunicação, que é em linha. Há procedimentos. Uma obra de arte quando chega não é logo exposta. Ela é preparada, desembalada e verificada para se certificarem se está tudo em condições e perceberem o que é que é preciso ver. Muitas delas vão para as oficinas, portanto vão para reparação; outras poderão ir logo para as reservas e depois vão para exposição, aquelas que são entendidas para serem expostas. Há uma linha condutora de todos estes percursos que são muito importantes, que não se sente no edifício, mas no projecto ela está completamente bem demarcada e delineada. Há uma estratégia muito clara, relativamente à distribuição funcional de todos os espaços do Arquipélago. 

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SN - Acho que é muito interessante a descrição que fez porque normalmente quem apenas visita os museus ou os centros de arte está só do lado do visitante. Realmente não imagina que existe uma carpintaria e que há esses cuidados todos que é preciso ter com a obra de arte até ela chegar à sala que nós visitamos. Gostei muito dessa sua descrição porque ajuda também as pessoas que nos estão a ouvir não só a perceber como é que é a arquitectura deste edifício, mas também como é que um edifício destes funciona e que tem de ter estes espaços complementares. Cristina, entre a vossa intervenção de reabilitação dos edifícios existentes e a construção de novos edifícios parece-me que vocês construíram uma pequena cidade dentro da cidade. Houve essa intenção?

CG - A intervenção foi trabalhar não por contraste, mas por continuidade. Ou seja, que os novos edifícios fossem uma continuidade dos existentes. 

Portanto, prolongaram-se as asnas e os alinhamentos das coberturas dos telhados, mas antes de mais os novos edifícios que são só dois, no fundo, serviram para organizar, abrir à cidade e dar forma urbana à fábrica. Os edifícios industriais, normalmente, não comunicam com a cidade. São entidades autónomas. A oportunidade de trabalhar e de construir aqui estes edifícios tinham uma função. Com os edifícios conseguimos fazer uma pequena praça, uma entrada (os edifícios) e a frente de rua, de certa forma. Conseguimos olhar para o existente e prolongá-lo, mas prolongá-lo de uma forma que fosse urbana, por isso é que se falou em construir uma cidade dentro da cidade. Trabalhou-se por contiguidade. Os edifícios existentes eram compactos, as naves industriais estavam muito próximas umas das outras. Nos edifícios, as naves continuam essa compactação, apesar de agora terem outra materialidade. Conseguimos também, então, através dos alinhamentos e estivemos a estudar na altura essa ideia. Em escritório fizemos várias maquetes, vários estudos, mas sempre com esse sentido de compactação, de continuidade e de conferir forma ao espaço público. Ao vazio e não só ao cheio, mas ao vazio e construir ali esse complexo, esse conjunto com essas premissas. 

SN - Sem dúvida que ‘continuidade’ é uma palavra-chave deste projecto. E flexibilidade é outra palavra-chave. Um dos grandes exemplos disso é o auditório polivalente que já teve oportunidade de falar um pouco, Francisco. O auditório recebe performances de teatro, dança, podendo transformar-se consoante o evento que recebe. Francisco pode descrever este espaço como se estivéssemos no interior para as pessoas que nos estão a ouvir? Eu sei que ele se move, tanto ao nível do pavimento, como dos tectos. Conte-nos um bocadinho sobre este espaço. 

FVC - Este espaço foi pensado de uma forma inicial muito pelas características e pelo conhecimento que o João tem sobre as exigências que estes espaços performativos, as artes performativas exigem. Foi com base no conhecimento do João Mendes Ribeiro e do engenheiro João Aires que se projectou esta sala, que nós consideramos que é uma sala de cena contínua. Ou seja, aquilo que nos pedia era um espaço que pudesse ser ajustado e flexível a toda esta panóplia de intervenções artísticas e que não tivesse condicionado ao espaço clássico de boca de cena em que há uma diferença entre plateia e palco. Ou seja, nós partimos de uma ideia de espaço contínuo em que é manipulável todo o espaço de chão, em que pode ser estruturado com várias formas de utilização e de posicionamento do palco, dos visitantes e dos que estão a ver a cena, de acordo com o artista plástico ou do artista que vai fazer essa actuação nesse tipo de espaço. 

Portanto, é muito flexível o chão. Ele é manipulável através de umas quadras e de uns praticáveis – coisas bastante simples... em qualquer destes festivais que há no exterior todos estes palcos são montados com estes praticáveis muito flexíveis, muito modelares. A corresponder a este grande espaço de plateia contínua, de palco contínuo há uma teia contínua. A teia contínua que é manipulável de uma forma muito clara. A nossa intenção de projecto foi que toda a parte técnica de manipulação das varas – que estão normalmente nas bocas de cena – e todo o tipo de artefactos fossem visíveis. Nós tivemos de partir da sua plasticidade como tema para envolver e fazerem parte das cenas do teatro, da dança, de tudo o que for necessário e de tudo o que é importante na vivência daquele espaço. Essa caixa – para além da plateia contínua que manipula cenários e iluminação – tem uma panóplia de infraestruturas em cima também de ar condicionado de todas essas infraestruturas.

A nossa grande pretensão era que essa sala tivesse uma participação muito forte do espaço exterior com o público, com a praça de um lado, que é para nós o coração da intervenção naquele recinto. Para além disso, pretendia-se também que o muro – que está do lado nascente, que tem pela frente os cabos que fazem aquele jogo de contrapesos, que manipulam igualmente essas varas – tivesse uma presença activa nas cenas do interior deste espaço. Portanto, existe esta flexibilidade, mas há principalmente uma grande intenção de relacionar espaços interiores e exteriores com esta sala polivalente. Isso foi um tema importante. Trata-se de uma sala com pé direito duplo enorme, tem uma cave bastante forte e tem a ver com as questões de insonorização. Todas estas questões são sintetizadas numa simplicidade muito grande de mostrar todas estas infraestruturas. Portanto, aí as pessoas têm uma visão muito mais clara sobre o que é que é o lado oculto destes espaços. Isso foi sempre uma intenção muito clara da nossa parte. 

SN - Sim, revelar esta parte técnica, não é?

CG - Não sei se posso acrescentar... No fundo, a sensação de entrar nesta sala é a de entrar dentro de um palco gigante que é flexível e que tem uma teia contínua. O nosso objectivo, conforme o Francisco disse, era que, em vez de ser um palco completamente encerrado, tivesse abertura dos dois lados para prolongar o espaço na praça. E também achamos que os artistas quando trabalham não deveriam trabalhar em espaços escuros. Daí esse rasgar no rés-do-chão, essa grande caixa escura tem aberturas para que no dia-a-dia seja agradável. Já tínhamos tentado também fazer noutros concursos. Por exemplo, o João já tinha esta ideia de desenvolver este tipo de sala no concurso de Santo Tirso (que fizemos também com outros colegas). 

Já tinha esta ideia destas grandes salas, desta possibilidade de haver uma sala de cena total com base na sala de Peter Steiner, que decorre no teatro do arquitecto Mendelsohn, em Berlim, que é uma sala que também se move completamente. Move o chão, move o tecto. Aqui com recursos mais escassos, mas acho que ficou bastante bonito porque tem todas as cordas, todos elementos à vista. É como estar num grande palco! Essa experiência acho que é muito bonita e as infraestruturas também ficaram à vista. Portanto é uma excelente experiência de habitar este espaço que, no fundo, é muito polivalente. 

SN - Cristina, experimentaram neste palco, neste espaço de sala de espetáculos polivalente, mas experimentaram também aqui na forma de construir este edifício, nomeadamente no material em que os novos edifícios são feitos. Gostava que nos contassem a investigação, o processo de construção e a escolha deste material para estes edifícios. 

CG - No fundo, o material é um betão e é um betão com inertes de pedra basáltica local. São agregados, trabalhamos com a Secil, que nos ajudou em projecto de execução a fazer amostras que aproximassem um pouco do aspecto da pedra de basalto local e, portanto, são duas maneiras, dois tempos de construir, mas na verdade revela-se os mesmos materiais. Um deles de forma mais trabalhada, que é o betão e muito rápido. O Francisco costuma até explicar muito bem este processo, dizendo que quase que os edifícios antigos dão modos aos novos edifícios e modos de prova quase do betão. O betão é um elemento que se trabalha, por exemplo, num dia. Depois seca. Neste caso, é um betão desactivado. Tem um retardador e depois lá vão os jactos de água, os inertes aparecem e fica esta textura dos inertes visível e que, a nosso ver, torna expressiva a materialidade da construção dos novos edifícios. Não sei se queres acrescentar, Francisco! 

FVC - Sobre as questões construtivas nós temos claramente também... Isso também veio logo de início, que é a preservação da construção existente da forma como está. Portanto, paredes potentíssimas de alvenaria basáltica e houve sempre também uma intenção muito clara de marcar... 

Desde o concurso até esta fase final, nós mudamos de estratégia porque, no fundo, todos estes edifícios preexistentes têm um carácter unitário enorme e sabíamos que todos os edifícios novos que iríamos fazer também teriam que ter esse carácter unitário muito forte. A primeira estratégia foi que estes novos edifícios iriam ser caiados. 

Inicialmente, na nossa proposta de concurso, eles aparecem de forma caiada, branca, em contraste com a pedra basáltica, negra. Porém, ao longo do processo, perguntaram-nos se nós não achávamos que o branco, passado algum tempo, não iria ficar cinzento ou preto e se, eventualmente, tínhamos alguma sugestão para fazer esta alteração de materialidade. Uma alteração de materialidade que nos desse esta nossa forma de ver a arquitectura do ponto de vista de carácter unitário, que é dado pela matéria. Essa passou a ser uma investigação, como a Cristina disse, de betão desactivado, um betão muito específico, que tem inertes locais. Pedimos uma série de amostras de várias gravimetrias para perceber que tipo de inertes é que nós gostaríamos que surgissem na superfície do betão. Portanto, tivemos essa investigação. A Secil foi incansável nestas amostras. Nós fizemos muitas amostras e a composição deste betão é uma composição com inertes locais que tem 8% de pigmento de óxido de ferro. Para além disso, permite ter uma coloração mais escura sem perder a consistência que estes pigmentos muitas vezes, em excesso, podem dar. Nesta composição nós arriscámos bastante porque nunca tinha sido feito, especificamente, nos Açores. Portanto, houve uma grande abertura para que pudessem ocorrer alguns riscos, mas o defeito penso que faz parte desse lado que eu considero muito importante neste projecto, que é um lado muito experimental. A Menos é Mais arrisca muito nesse lado da materialidade e de tentar perceber até que ponto nós podemos levar ao limite essa expressão, que é dada através da matéria. É evidente que na superfície do betão fica tudo registado e muito desse registo são erros. Esse erro, no nosso entender, faz parte da investigação.

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SN - Tal como as pedras, não é? Também elas não são perfeitas!

FVC - Exacto! Mas há aqui uma grande questão, que também é muito importante neste trabalho, que tem a ver com a cultura tectónica. Enquanto nós percebemos e sentimos através da expressão da pedra que não é regular. O betão também tem essas características. Apesar de ser cofrado e de ser um material mineral líquido que depois solidifica, ela grava tudo e grava o defeito. O defeito é o defeito da mão, o defeito de quem faz e isso penso eu que é uma expressão que a matéria dá para que os novos edifícios sejam entendidos pela população quase como irmãos gémeos dos que lá estão. 

SN - (risos) Sim. A Arquitectura Contemporânea não tem de ser uma quebra com o passado, não é? Vocês com este edifício mostram que é possível uma continuidade.

FVC - Nós gostamos de dizer que há uma variação tranquila ou serena relativamente ao que lá está. Portanto, aquilo que foi procurado foi isso mesmo. 

Essa continuidade é importante entre aquilo que é a preexistência e aquilo que é o novo, não é? A nossa actividade está, mais do que nunca, nos tempos que correm, com esta dupla vertente global/regional.

SN - Passado/futuro, não é?

FVC - Exactamente. Nós estamos sempre entre tempos e temos de perceber onde é que nos vamos posicionar. A nossa profissão, neste momento, está muito exposta a esta nossa capacidade de conseguir ou não esta dualidade. Ou seja, de perceber este lado tecnológico que influencia toda a nossa actuação. Existe a nossa produção e o lado nostálgico, que vem exactamente destas referências e destas formas de construir, que nós ainda tentamos incorporar para fazer sentido e para dar sentido. Esta relação da tecnologia com a nostalgia é um tema que nos persegue e este edifício, em particular, é muito claro sobre essa dupla visão. 

SN - Sim, sim. Sobretudo neste material que estava a falar. Os dois materias são pedras, mas têm tecnologias diferentes aplicadas. Eu acho curioso que este edifício se chame Centro. Pergunto-vos se o objectivo era que este edifício, de certa forma, criasse uma nova centralidade em Ribeira Grande, uma centralidade à volta da arte. Qual tem sido a recepção por parte dos artistas e da população ao edifício?

CG - O edifício pretende ser um centro. A ambição dele era grande e pode ser grande porque os Açores são um lugar mítico. Estão no meio de três placas tectónicas (a europeia, a africana e a americana). Nós conseguimos fazer uma praça. De certa forma, essa praça representando um centro, um centro entre ilhas, entre continentes. Posicionando esta ilha/este ponto e não lhe dando limites, podendo ser o que ele quiser, faz com que a ambição e a possibilidade de ele ser muito é enorme. Fazendo bem e programando bem a gestão do património, o mais importante era preservar aquela ruína que eu acho que se conseguiu e prolongar os edifícios no tempo. Isso permite que eles sejam transformados e que sejam ocupados de diversas formas, que é o que está a acontecer um bocadinho com o Arquipélago. É muito interessante ver a forma como é que ele tem sido usado por diferentes artistas, muitas vezes até ocupando e revolucionando a maneira de ocupar o espaço. Já houve exposições nas reservas ou nas carpintarias. Portanto, cada artista também tem a sua maneira de se relacionar com o edifício e com o espaço.

Sendo uma infraestrutura com alguma dimensão tem de haver alguma ambição – e tem havido – de conseguir ocupá-lo nas mais diversas formas. Não só o edifício está preparado para receber exposições de artes plásticas, como também acolhe toda a parte de artes performativas, música, etc. Penso que tem havido vários protocolos com o Teatro Micaelense e, pelo local onde está inserido, tem uma possibilidade enorme de receber residências artísticas de artistas de todo o mundo. Portanto, eu acho que tem tido uma boa adesão. As populações locais, logo de início na inauguração, mostraram interesse e chegaram a colocar no chão das instalações os tapetes do Espírito Santo e as flores. E, realmente, a escala do edifício não é uma escala de uma pequena povoação. Neste caso, não é uma escala da Ribeira Grande. Tem uma escala maior do que isso. Tudo isso está relacionado com a programação, a política e a maneira como isto tudo pode ser gerido.

SN - Pergunto-vos aos dois o que é que vos ensinou este projecto do Arquipélago sobre a Arquitectura.

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FVC - Veio mais comprovar um pouco a escola que nós temos de ver e fazer arquitectura. É um respeito enorme pela preexistência, mas sempre com um sentido crítico relativamente à forma como podemos operar. Isso é uma primeira constatação, mas há também uma certa humildade. Isto foi uma obra que, do ponto de vista de quem participou, para além de estarmos no continente e a obra ser distante.

SN - Separada pelo oceano, não é?

FVC - Obrigou-nos a uma estratégia do ponto de vista do desenho, do ponto de vista do projecto muito clara, entre todos os projectistas com fiscalizações, o consórcio dos construtores, o dono de obra. Obrigou-nos a ter de, uma forma muito clara, lançarmos as estratégias. No fundo, aquilo que nós aprendemos na faculdade é um pouco este rigor do desenho, de disciplina e que nos permite comunicar de uma forma clara com muita gente. Isso para além de nos dar a segurança, também nos dá a capacidade de prever e de pressentir o caminho que estamos a tomar, tendo em conta as opções que tivemos. Nós sozinhos não fazemos nada e, portanto, isto é um trabalho de muita gente, seja de escritórios, seja das equipas de cada atelier, das engenharias, seja da preparação de obra.

SN - Estamos a falar de quantas pessoas, Francisco? Só para as pessoas que estão a ouvir terem uma noção. 

FVC - Tem várias fases. No nosso escritório, na altura, estávamos a trabalhar quatro pessoas só para o Arquipélago.

CG - Um bocadinho mais! (risos)

FVC - Quatro só nosso escritório. No João também deviam ser...

CG - No projecto de execução realmente.

FVC - No projecto de execução, sim. Relativamente à fase do concurso e à primeira fase não estávamos a falar de muita gente. Agora na fase de projecto de execução, sim, aumentámos bastante as nossas equipas para dar...

SN - Resposta.

FVC - Eram muitos edifícios. A sistematização e a síntese que se criou de início fez com que as regras dessa síntese conseguissem ser claras para toda a equipa. Ou seja, todas as equipas perceberam quais eram os seus limites para trabalhar dentro das mesmas regras. Isso permitiu que esta diversidade de situações, que surge sempre nestas obras, fosse muito disciplinada. As soluções foram rapidamente encontradas. Foi muito exigente. Isso não tenho dúvidas! Não há obras de arquitectura que sejam simples. Por mais básica que seja, para nós é sempre complexa porque elas não nascem já com uma predefinição. Elas são muito experimentais. Como são muito experimentais, ficam muito presas à investigação que o projecto exige. Essa investigação é imprescindível que se faça em projecto, por isso é que nasce o betão desactivado com os 8% de pigmento. Tudo isso faz parte desta investigação para que depois a obra traduza o carácter que nós pretendemos que ela tenha.

SN - Cristina, tem alguma coisa a acrescentar?

CG - Sim, esta obra foi feliz porque teve as boas condições – que agora é difícil haver – para que corresse bem. Portanto, foram dadas as condições porque era um concurso limitado por prévia qualificação e depois por convite. Houve boas condições para trabalhar. Claro que tivemos depois uma crise no meio na parte da construção e mudou-se de empreiteiro, mas nós já somos muito resilientes em Portugal. Já estamos habituados a que haja sempre uma crise. Mesmo havendo essas questões todas, nós achamos que foi uma obra que correu bem. Houve boas condições ao executá-la e isso depois vê-se na concretização da arquitectura.

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© José Campos

Desde os sete anos que foi concretizada que passam muitos intervenientes, muitos actores, muitas personagens pela obra. O projecto se for firme, se tiver bem lançado e se tiver uma ideia forte e importante resiste a muitas coisas. Neste caso, ainda houve algum lugar para a experimentação. Hoje em dia, com tantos regulamentos e tanta pressão, é quase impossível sair dessas imposições. No nosso país começa-se a exagerar um bocadinho na quantidade de regulamentos para tudo e para homologar. A determinado momento, em vez de fazermos arquitectura estamos a ver catálogos e legislação. É um bocadinho triste. E nesta obra conseguimos! Foi um gosto enorme e foi depois um gosto enorme ver que se transformou em realidade porque é uma obra grande. Tantas obras que nós fizemos, tantos concursos que não foram feitos porque surgiu outro político, mudou e aquilo ficou arrumado na gaveta. Esta obra, apesar de tudo, conseguiu ser feita. Para nós foi uma satisfação e foi bom recuperarem o património. Há sempre muitas vozes que dizem o que deveria ser feito ou não. Acho que foi uma experiência positiva para todos. É uma infraestrutura que está disponível e está aberta para coisas muito boas acontecerem. É só querer ver e dar o máximo. 

SN - Arquitecto Francisco e arquitecta Cristina, muito obrigada pela vossa partilha. Foi muito bom ouvir-vos. Digo isto, sobretudo, pela vossa paixão desde o primeiro momento em que encontraram o edifício, depois durante todo o processo, a experimentação que o edifício também vos permitiu. Foi também muito bom por partilharem a importância da colaboração e como é que a colaboração entre vocês todos e toda a equipa que esteve presente tornou possível este edifício. Eu, infelizmente, ainda não tive oportunidade de o visitar, mas tenho muita curiosidade porque me parece um edifício muito especial, que veio dar uma abertura da arte à cidade. Muito obrigada pela vossa partilha e por esta conversa. 

CG - Nós é que agradecemos.

FVC - Eu é que agradeço. Obrigado!

Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e Melanie Alves e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "Projetando com o tempo: entrevista com Menos é Mais Arquitectos" 07 Nov 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/970233/projetando-com-o-tempo-entrevista-com-menos-e-mais-arquitectos> ISSN 0719-8906

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