Um guia para arquiteturas "off-grid"

Quem mora em uma grande cidade dificilmente nunca sonhou em viver isolado, em uma casa entre as árvores ou numa praia deserta. Durante a pandemia e os intermináveis meses de quarentena, muitos tiveram essa mesma ideia. Por mais romântica e sedutora que ela possa parecer, isso vem acompanhado de alguns desafios práticos importantes. Raramente abriríamos mão de pequenos confortos que estamos tão acostumados, como abrir uma torneira ou carregar o celular. Se o local é, de fato, remoto, possivelmente não contará com abastecimento de energia elétrica, água potável, gás, rede de esgoto e coleta de resíduos sólidos. Mas há diversas possibilidades de uma vida com conforto e sem vizinhos. Quais são as principais soluções para permitir isso e como um projeto de arquitetura pode proporcionar uma vida off-the-grid?

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Off-Grid Guest House / Anacapa. Image © Erin Feinblatt

Viver off-the-grid, ou fora das redes, requer uma consciência de tudo o que a casa consome e produz, como um ecossistema que, preferencialmente, deve ser capaz de fechar seus ciclos. O balanço nunca pode ser negativo. Ou seja, se a casa consome mais do que produz, não há a possibilidade de pagar por mais, como estamos acostumados nas cidades. Ao mesmo tempo, se algo está sobrando, quer dizer que foi mal dimensionado e recursos foram desperdiçados. Sem as infraestruturas urbanas que nos proporcionam facilidades diárias, uma casa ou comunidade auto suficiente deve ser capaz de prover todos os meios para a vida no local. 

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Restaurant & Grocery Store in Monteiro Lobato / Metamoorfose Studio. Image © Maíra Acayaba

Água

Ainda que nos venha à cabeça, num primeiro momento, a energia elétrica como o mais importante, o abastecimento de água é vital para a nossa sobrevivência. Para isso, é necessário prever uma das três fontes mais comuns: um corpo d' água próximo (um lago ou uma nascente de um rio), um poço, ou água da chuva coletada. Águas de poços artesianos ou de sistemas pluviais devem, preferencialmente, passar por algum sistema de filtragem antes que sejam utilizadas para consumo. Para bombear a água de uma cisterna subterrânea, de um lago, ou para alimentar alguns dispositivos filtrantes, a energia elétrica mostra-se indispensável.

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Cloud House / Matthew Mazzotta. Image Cortesia de Matthew Mazzotta

Energia elétrica

Para gerar energia elétrica em sistemas off-grid, o sol e o vento são as fontes renováveis disponíveis. Os sistemas eólicos residenciais ainda são mais caros, mas podem ser boas opções quando as condições climáticas forem favoráveis para tal. Este sistema é composto, basicamente, por uma turbina eólica, que capta a energia cinética do vento, através das hélices, transformando-a em energia elétrica. As baterias armazenam a energia e suprem a demanda na carência de ventos. Outro componente imprescindível é o inversor, que transforma a corrente contínua (CC) dessa energia armazenada nas baterias em corrente alternada (CA), propícia para o uso nos eletrodomésticos e outros equipamentos. Aero geradores de pequeno porte geram até cerca de 100 kW.

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The Houl / Simon Winstanley Architects. Image Cortesia de Simon Winstanley Architects
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Upside Down Akubra House / Alexander Symes Architect. Image © Barton Taylor

Mas a forma mais comum de obtenção de energia elétrica é através da energia solar. Segundo a GOGLA (Associação global para a indústria de energia solar fora da rede), o setor solar não conectado à rede cresceu tremendamente nos últimos 10 anos, tornando-se um mercado vibrante de U$ 1,75 bilhão por ano, que permanece em uma curva de crescimento sólida, atendendo atualmente a 420 milhões de usuários. Evidentemente, isso não engloba somente os pretendentes a ermitões. Há 840 milhões de pessoas no mundo que ainda não possuem acesso à eletricidade, e mais de 1 bilhão vivem conectados a redes não confiáveis. A energia solar sem conexão à rede poderia atender também a diversos usos produtivos, como bombas solares de água (SWPs), armazenamento refrigerado ou máquinas para processamento de alimentos.

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SoLo House / Perkins&Will. Image © Andrew Latreille

Um sistema off-grid fotovoltaico é composto por algumas partes. Primeiramente, o conjunto de placas solares captam a radiação do sol e a convertem em energia elétrica. Essa energia irá para um controlador de carga, que serve para aumentar a vida útil das baterias, fazendo com que elas sempre recebam cargas adequadas. Ele também é responsável pelo processo de carga e descarga das baterias. Tanto as baterias como os painéis fotovoltaicos deverão estar conectados ao inversor, que permitirá o uso da energia elétrica em corrente alternada, já que as placas produzem energia em corrente contínua.

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Cape Tribulation Home / M3 architecture. Image © Peter Bennetts

Independente do sistema, é importante que uma construção off-grid tenha um espaço adequado para todos esses equipamentos e dispositivos, de forma que fiquem acessíveis e permitam uma manutenção facilitada.

Lixo e Esgoto

Outra preocupação em uma construção fora da rede é em relação aos seus resíduos. Resíduos sólidos orgânicos poderão ser compostados e os sólidos recicláveis deverão ser encaminhados para os destinos adequados. Sem a coleta urbana nos distanciando dos nossos lixos, os ocupantes se depararão com a quantidade enorme de resíduos produzidos em uma edificação.

A preocupação com os resíduos gerados é crucial, sobretudo para evitar que poluam as mesmas fontes de água que são utilizadas para abastecer a água. Em relação ao esgoto, há algumas opções para um tratamento adequado. A escolha mais comum para tratamento de esgoto em locais onde não há uma rede seja a fossa séptica. O funcionamento é simples: o esgoto entra na fossa, onde os resíduos sólidos decantarão, na superfície uma crosta será formada e águas residuais permanecerão entre as camadas, fluindo para um sumidouro. As bactérias que vivem dentro de fossa séptica digerem a fração orgânica, ajudando a eliminar os sólidos e a remover a maior parte do odor. As águas residuais vazam lentamente para fora, em um leito de cascalho e solo abaixo. Apesar de ser capaz de realizar um tratamento primário, a eficiência dele é baixa e limitada, podendo poluir o solo e gerar odores desagradáveis. Também, é possível que requeira esvaziamentos periódicos, o que pode ser complexo em construções remotas.

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Lettuce House / HE Ding, WANG Wei, KONG Lingchen. Image Cortesia de HE Ding, WANG Wei, KONG Lingchen

Uma possibilidade de tratar os efluentes da fossa de maneira mais adequada, utilizando-se um sistema altamente engenhoso, mas de baixa tecnologia, é através do Sistema de Zona de Raízes. Neste caso, a filtragem é feita por pedras e também por plantas que, com suas raízes, captam os nutrientes do esgoto e devolvem água limpa ao solo. O esgoto, já previamente filtrado pela fossa séptica, percorre os caminhos do tanque, passando por etapas com diferentes tamanhos de pedra e areia, até que acabe sendo devolvido ao ar como vapor d’água, já limpo, retornando ao ciclo da água e tornando-se uma opção mais amigável para o ambiente.

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Água Paulista: um sistema circulatório urbano para São Paulo. Image © Ooze

Outra opção muito utilizada em locais remotos é o vaso seco, ou sanitário compostável. Neste caso, o resíduo é transformado em um composto que pode ser utilizado para fertilizar as plantas. Nos vasos secos mais tradicionais, a cada uso, o recipiente deve ser coberto com serragem para, quando cheio, ser disposto em uma composteira, que irá decompor a matéria orgânica através das bactérias presentes. Já há no mercado banheiros de compostagem modernos, que são inodoros e bastante eficientes.

Há também a possibilidade de reciclar o esgoto. Primeiramente, deve-se separar as águas cinzas das negras. A primeira refere-se ao efluente que tem origem nas máquinas de lavar, chuveiros e pias de banheiro; já a segunda é aquela proveniente dos vasos sanitários. Para as águas cinzas, através de um tratamento físico, químico ou biológico, que retira a maior parte das impurezas, ela pode ser reutilizada para usos não-potáveis, como irrigação e para os sanitários. 

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Lettuce House / HE Ding, WANG Wei, KONG Lingchen. Image © LI Minfei

No caso das águas negras, há a possibilidade de utilizar biodigestores, que funcionam através de microrganismos anaeróbicos (na ausência de oxigênio). Uma câmara hermeticamente fechada na qual os organismos consomem a matéria orgânica diluída em água através da fermentação, decompondo-a. Como resultado dessa biodigestão, são gerados o biogás e o biofertilizante. O primeiro pode ser utilizado, inclusive, para alimentar os fogões. Evidentemente, cada uma das soluções apresentadas aqui devem ser projetadas segundo as necessidades e as possibilidades de cada projeto e acompanhadas por profissionais experientes.

The Voxel Quarantine Cabin exemplifica bem os conceitos. Foi um projeto desenvolvido por uma equipe composta por estudantes, profissionais e especialistas do Mestrado em Edifícios Ecológicos e Biocidades Avançadas (MAEBB) do Instituto de Arquitectura Avançada da Catalunha (IAAC) Valldaura Labs. Projetada como uma cabine de quarentena, a casa pode acomodar um ocupante por 14 dias, suprindo todas as necessidades materiais durante o isolamento. O sistema de água incorpora coleta de água da chuva, com filtragem através de vegetação nos terraços, além de reciclagem das águas cinzas e o tratamento de água negra em um sistema de biogás autônomo que gera combustível utilizável para cozinhar ou aquecimento e fertilizante sanitário como subprodutos. Além disso, produz toda a sua energia elétrica através de painéis solares e sua estrutura é feita de madeira do próprio terreno.

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The Voxel Quarantine Cabin / Valldaura Labs. Image © Adrià Goula
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The Voxel Quarantine Cabin / Valldaura Labs. Image Cortesia de Valldaura Labs

Em construções off-the-grid e auto suficientes, tanto o projeto como a ocupação devem ser muito mais cuidadosos e conscientes de cada um dos impactos. O projeto deve ser, necessariamente, eficiente energeticamente, para que não necessite de numerosos e custosos sistemas de captação de energia. Para o conforto térmico da construção (aquecimento ou arrefecimento) deve-se buscar soluções naturais e renováveis, na medida do possível. O ocupante de um projeto deste tipo também precisa estar atento a todos os sistemas que funcionam simultaneamente e conectar-se plenamente ao funcionamento da construção. A geração de energia, seu consumo, o ciclo da água ou os resíduos gerados. A casa se torna um ecossistema resiliente e o ocupante uma peça importante para o equilíbrio.

Este artigo é parte do Tópico do ArchDaily: Automação na Arquitetura. Mensalmente, exploramos um tema específico através de artigos, entrevistas, notícias e projetos. Saiba mais sobre os tópicos mensais. Como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossos leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.

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Sobre este autor
Cita: Eduardo Souza. "Um guia para arquiteturas "off-grid"" 17 Jun 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/963495/um-guia-para-arquiteturas-off-grid> ISSN 0719-8906

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