A descarbonização da arquitetura deve passar pela sua decolonização

A imaginação e a formulação de políticas são inseparáveis. Um futuro desejável primeiro deve ser imaginado para depois ser possível conceber políticas que possam concretizá-lo. Na arquitetura, em particular, estamos constantemente imaginando o futuro, uma atividade intrínseca ao verbo projetar, e essa familiaridade com o ato nos faz responsáveis por ditar rumos e regras que poderão contribuir ou não com curso do planeta.

Neste momento de mudanças climáticas, decorrente do acúmulo de práticas irresponsáveis ao longo de séculos, a ideia do futuro passou a ser invadida por um medo, um alerta que determinaria a sobrevivência da nossa existência. A arquitetura, juntamente com outras disciplinas, passou a canalizar esforços para reexaminar, reconceitualizar e reformular suas práticas rumo ao futuro que precisamos alcançar. Para além das estatísticas e projeções, a abordagem da arquitetura em relação à ação climática traz à tona inúmeros conceitos, entre eles, a necessidade de uma revisão histórica para a criação desse futuro.

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Gabriela Matos e Paulo Tavares, curadores do Pavilhão do Brasil na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2023 apresentam ideias que vão ao encontro dessa perspectiva quando citam a líder indígena Sônia Guajajara, Ministra dos Povos Indígenas do Brasil: “o futuro é ancestral”. Em entrevista ao ArchDaily, afirmam que a frase os acompanhou desde o início do processo de projeto do Pavilhão, materializada na apresentação de outras matrizes filosóficas e culturais que não as ocidentais. Algo que a própria curadora da Bienal, Lesley Lokko traz à tona quando relaciona duas noções contemporâneas e fundamentais ao afirmar que a descarbonização do planeta está inevitavelmente relacionada à decolonização dos nossos pensamentos e das nossas arquiteturas.

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Pavilhão do Brasil: Terra [Earth]/ Gabriela de Matos and Paulo Tavares. Image © Matteo de Mayda
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Santuário de Orixá do terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, ou Ilê Axê Iyá Nassô Oká, Salvador, Bahia, 1981 © Iphan. Arquivo Arquivo Central, seção Rio de Janeiro, foto F096894

Embora a descarbonização seja muito específica e possível de medir, a decolonização, principalmente na arquitetura, é difícil de ser descrita e quantificada. Não à toa Lokko a chama de “escorregadia”. Em termos simples, ela pode ser entendida como um retorno à conexão com a terra, com o natural, com o originário, significando muitas vezes a compreensão do indivíduo, da comunidade e da natureza como uma unidade. Algo que na prática arquitetônica pode significar criar uma maior sintonia ambiental em termos de soluções sustentáveis e regenerativas. Ou seja, decolonizar a arquitetura – separá-la do legado histórico do colonialismo – pode abrir caminhos para uma indústria mais diversificada e atenta ao entorno, demostrando que o decolonialismo é uma crítica incrivelmente criativa, estimulante e radical. Nesse sentido, decolonizar a arquitetura significa repensar diferentes camadas, não apenas a materialidade dos nossos projetos e a forma como se comportam perante o meio ambiente, mas também o próprio processo projetual de participação e escuta da população.

Yasmeen Lari, arquiteta paquistanesa que tem desenvolvido uma abordagem inovadora e socialmente consciente em relação a arquitetura, afirma que “temos de repensar tudo e temos que fazer isso agora”. Lari teve seu início de carreira pautado pelos ideais modernistas na década de 1960, mas ao longo do tempo, viu sua arquitetura focar na questão humanitária baseada na decolonização e na descarbonização. Entendendo a arquitetura como um ativismo climático — em um dos países mais afetados pelas mudanças climáticas no mundo — criou um programa de autoconstrução resistente a inundações utilizando tecnologias tradicionais e materiais de baixo custo, como argila, cal e bambu.

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Centro de Mulheres Carbono Zero com palafitas de bambu, Moak Sharif, Tando Allahyar, Sindh–2011. Imagem © Heritage Foundation of Pakistan

Essa atitude de Lari ilustra muito bem o que Matos e Tavares afirmam quando abordam o legado do modernismo dentro da arquitetura brasileira, o qual aparece como um significante da identidade nacional, transformando a representação de expressões da nacionalidade. Nesse contexto, o retorno às práticas e representações originárias e a consequente valorização dos materiais disponíveis localmente surge como uma forma promissora de se repensar a identidade arquitetônica de um país.

Mais além da materialidade ou da técnica construtiva, a decolonização da arquitetura passa também por uma revisão no próprio método projetual. Neal Shasore, diretor da London School of Architecture, acredita que o ensino arquitetônico precisa abarcar essas duas questões estabelecendo novas fronteiras desde os primeiros contatos com a disciplina. Para isso, Shasore defende, entre outras abordagens, a importância de ensinar os estudantes a ouvir e interagir com diferentes vozes na produção do ambiente construído. Nesse sentido, ele cita o exemplo da Torre Grenfell, um arranha-céu londrino de propriedade do município que foi destruído em um incêndio em 2017, quando as chamas se espalharam pelo revestimento recentemente instalado, causando mais de 70 mortes. A incapacidade de ouvir as vozes dos residentes da Torre Grenfell — muitos dos quais eram provenientes de minorias étnicas — durante a sua reforma, foi repetidamente apontada como a razão pela qual o edifício se tornou tão inseguro.

O olhar decolonizador precisa se impregnar em diferentes camadas para atingir a arquitetura como um todo, e esse espaço nas discussões se torna tão importante quanto a escolha dos materiais e técnicas. Ou seja, as abordagens dialógicas são muito melhores para projetos decoloniais, uma vez que estes devem, pela sua própria definição, ser inclusivos. Entre a hierarquia liderada por especialistas e a participação comunitária, pender para a comunicação e diálogo é a chave para gerar visões decolonizadas e descarbonizadas do futuro. Uma estratégia que é ainda mais reforçada quando entendemos os grupos originários como os mais afetados pelas alterações climáticas, exigindo deles técnicas de resiliência e sobrevivência, das quais muito temos a aprender.

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Yasmeen Lari no Green Women's Center, Khairpur. Imagem © Yasmeen Lari/Heritage Foundation of Pakistan

Na arquitetura, portanto, descarbonizar e decolonizar são duas noções contemporâneas que compartilham o mesmo caminho, sendo traduzidas na incorporação de formas de conhecimento não ocidentais tanto no processo projetual de escuta e co-criação quanto na materialização e construção. Soluções baseadas na crítica e na criatividade que refletem o retorno ao natural por meio de estratégias holísticas e nos fazem enfrentar o passado para imaginar o futuro.

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Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "A descarbonização da arquitetura deve passar pela sua decolonização" 22 Out 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1007553/a-descarbonizacao-da-arquitetura-deve-passar-pela-sua-decolonizacao> ISSN 0719-8906

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