Arquiteturas para adiar o fim do mundo

Em 2019, quando o mundo estava prestes a enfrentar a maior pandemia dos últimos tempos, o líder indígena, ambientalista e filósofo brasileiro Ailton Krenak lançou o livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. O pequeno encarte, com um pouco mais de 80 páginas, não poderia ter surgido em melhor época servindo simultaneamente como alento e como alerta à uma humanidade que via os rumos da história se contorcendo diante dos seus olhos.

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Na publicação, Krenak nos explica como seus antepassados indígenas usaram a criatividade e a poesia para resistir à barbárie da civilização tendo em vista o processo de homogeneização proposto pelo homem branco o qual, entre muitas outras interferências, ceifava não apenas a vida dos indígenas, mas toda a natureza ao seu redor. Porém, mais do que narrar as mazelas do seu povo, o autor nos faz perceber que essa ameaça não somente ainda existe, como também se estende a todos nós.

“Somos alertados o tempo todo para as consequências dessas escolhas recentes que fizemos. E se pudermos dar atenção a alguma visão que escape a essa cegueira que estamos vivendo no mundo todo, talvez ela possa abrir nossa mente para alguma cooperação entre os povos, não para salvar os outros, para salvar a nós mesmos”. — Ailton Krenak

O ato de admitir a natureza como uma imensa multidão de formas que inclui cada pedaço de nós para formar o todo é fundamental para o pensamento de Krenak e nos é apresentado no texto como uma maneira de repensar nossa relação com a natureza. Visto que os indígenas consideram a natureza como família, eles respeitam essa conexão ao fazerem uso dos recursos que ela disponibiliza para a vida. Contudo, as pessoas que estão afastadas dessa concepção não teriam qualquer compromisso com os aspectos sagrados da natureza e por isso extrairiam dela os recursos até a exaustão.

Essa reconciliação entre homem e natureza seria, portanto, um caminho para adiar o fim do mundo e, tendo em vista a pertinência da ideia, ela tem sido discutida e aplicada em diversas disciplinas. Embora seja uma “receita” subjetiva e muito abrangente, requerendo uma abordagem multifacetada que abranja vários aspectos da civilização humana, a arquitetura — representando a construção civil em geral — assume um importante papel nessa situação.

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Construindo com resíduos: transformando solo escavado em arquitetura. Library of Muyinga. Image Courtesy of BC Architects

Poderiam ser citadas aqui inúmeras estratégias arquitetônicas que contribuem para adiar o fim do mundo, seja em maior ou menor medida, mitigando os efeitos das mudanças climáticas, revisitando técnicas e métodos ou criando novos. Ao citar algumas, se faz lógico começar pela mais literal, a incorporação e valorização da arquitetura vernacular na contemporaneidade. Com a utilização de materiais e recursos do próprio ambiente onde a edificação está inserida, a arquitetura não apenas respeita histórica e socialmente o contexto, como também se torna mais sustentável. Como guardiãs tradicionais da terra, as comunidades indígenas possuem uma compreensão profunda de seus ecossistemas e são fontes de inspiração e aprendizado para a criação de soluções que se adaptam e respondem aos desafios locais e globais. Muitas arquiteturas estão sendo construídas sob tais preceitos, desde as construções com paredes de argila de Francis Kéré até as enormes estruturas de bambu de Anna Heringer em Bangladesh.

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Primary School in Gando / Kéré Architecture. Image © Erik-Jan Ouwerkerk
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Centro comunitário de bambu e barro construído por mulheres é premiado em Bangladesh. © Kurt Hoerbst

Seguindo essa mesma linha, é essencial destacar também as soluções baseadas na natureza que incluem infraestruturas verdes e resilientes para as cidades. Em uma abordagem mais ampla, essas estratégias buscam resolver problemas urbanos com ideias presentes no ambiente natural. Os projetos são pensados a partir das potencialidades e limitações das paisagens e a gestão das águas é feita por meio de soluções como jardins de chuva, canteiros pluviais e wetlands, que adaptam as infraestruturas existentes ao ciclo hidrológico e aos outros processos ecológicos. Trata-se de uma ferramenta capaz de promover o desenvolvimento sustentável a partir do enfrentamento das problemáticas ambientais contemporâneas que estão diretamente relacionadas ao manejo dos recursos hídricos e à escassez de áreas verdes, como alagamentos, enchentes, poluição, mudança do clima, mobilidade e saúde pública.

Trabalhar em conjunto com a natureza é fundamental, mas assim como valorizar métodos existentes e materiais naturais é importante, investir em tecnologia e soluções criativas também se torna essencial. Nesse sentido, por meio de ideias inovadoras, a arquitetura pode servir como ferramenta para auxiliar na absorção das toneladas de resíduos que são produzidas diariamente no mundo. Com isso, estão sendo criados inúmeros materiais para construções sustentáveis que reutilizam refugos da agroindústria, plásticos, têxteis etc. Afinal, incorporar práticas de reciclagem e reutilização também é importante para garantir o adiamento do fim do mundo no que diz respeito à diminuição da produção e do consumo. Inclui-se aqui igualmente intervenções mais abrangentes como a requalificação de edificações existentes e abandonadas.

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Um interior impresso em 3D com plástico reciclado: reduzindo os resíduos e aprimorando o design. Courtesy of Nagami

A arquitetura também tem o papel de educar e as práticas de conscientização coletiva são fundamentais para incorporarmos estratégias sustentáveis e respeitosas com a natureza no ambiente construído. Sendo assim, é importante citar também as iniciativas que trazem a educação ambiental para a discussão, seja por meio de centros de aprendizagem ou por meio de atividades comunitárias que fomentam as práticas de sustentabilidade preservação ambiental. A

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Makli Centro de Treinamento Carbono Zero, Yasmeen Lari/Heritage Foundation of Pakistan, desde 2016. Imagem © Yasmeen Lari/Heritage Foundation of Pakistan

Seria possível citar também as estratégias que abordam a produção de energias renováveis, os projetos que respeitam e protegem os ecossistemas naturais, entre tantos outros que estão sendo discutidos e materializados. É sabido que há um grande trabalho pela frente em uma corrida contra o tempo na qual parece fundamental apressarmos o fim desse mundo como conhecemos hoje e iniciarmos um novo que preza pela reconexão e preocupação com a natureza ao nosso redor. De qualquer forma, essas iniciativas mostram um caminho, e como disse o escritor uruguaio Eduardo Galeano, talvez esse mundo infame esteja mesmo grávido de outro.

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Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "Arquiteturas para adiar o fim do mundo" 07 Out 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1006769/arquiteturas-para-adiar-o-fim-do-mundo> ISSN 0719-8906

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