Tijolo por tijolo, resíduos podem moldar o futuro da construção

Há certos símbolos que transcendem barreiras linguísticas e são prontamente reconhecidos e compreendidos por pessoas de diversas culturas. Exemplos incluem os ícones de banheiro masculino e feminino, a cruz que simboliza saúde e, mais recentemente, o símbolo universal do Wi-Fi. Entre esses ícones universais está o da reciclagem, concebido em 1971 por Gary Anderson, arquiteto e designer que, na época, era um estudante na Universidade do Sul da Califórnia. Como um ciclo contínuo, trata-se de um triângulo com três setas dispostas no sentido horário, cada qual representando a indústria, o consumidor e a reciclagem, respectivamente.

Reintegrar o que normalmente é considerado resíduo no ciclo produtivo é um princípio central da economia circular. Esse conceito é particularmente marcante na indústria da construção, que historicamente dependeu da destruição e extração de recursos para existir. E nada mais simbólico do que os tijolos, que também representam a construção de novas coisas, para aplicar os conceitos da circularidade. Mentes criativas têm abraçado este desafio, concebendo soluções que transformar materiais descartados em recursos de elevado valor,  gerando uma ampla gama de produtos, abrangendo matérias-primas residuais que vão desde algas marinhas e plásticos até cabelos humanos. Tais inovações não apenas abordam questões ambientais prementes, mas redefinem essencialmente a maneira pela qual construímos e habitamos nossos espaços. Neste artigo, destacamos 7 iniciativas que têm transformado resíduos em tijolos.

Transformando algas invasoras em habitação 

A invasão de algas marinhas exóticas ao longo da costa mexicana desencadeou os esforços da comunidade para limpar as praias, já que causavam mau-cheiro e problemas respiratórios na população. Omar Vázquez Sánchez, o fundador da Blue-Green em Puerto Morelos, notou uma oportunidade de redirecionar esse recurso natural como um material de construção primário e, após seis anos de conceituação e experimentação, construiu com sucesso uma casa usando algas marinhas misturadas com adobe. 

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© Omar Vázquez Sánchez
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© Omar Vázquez Sánchez

A incorporação da alga Sargassum demonstrou uma resiliência notável, evidenciada por sua capacidade de resistir a atividades sísmicas e aos ventos de furacões, confirmada por testes realizados pela Universidade Autônoma Nacional do México (UNAM). Os Sargablocks, resultantes da combinação da alga com resíduos de areia provenientes de outras construções, são produzidos por meio da trituração desses dois componentes principais: barro e algas. Uma pequena residência, concluída em apenas 15 dias com este material, consumiu 50% menos recursos do que uma unidade habitacional social convencional, destacando-se especialmente pela sua alta inércia térmica, permitindo o acúmulo de calor durante o dia para ser liberado durante a noite. A ideia do fundador é que esse material de construção tenha a capacidade de erguer habitações acessíveis para pessoas de baixa renda, ao mesmo tempo em que seja adequado para edifícios de padrão mais elevado. Transforma, dessa forma, um problema ambiental em uma valiosa matéria-prima verdadeiramente sustentável.

Resíduos urbanos para a fachada de um museu

Para a renovação e expansão do Design Museum Gent, um inovador processo de reciclagem está transformando resíduos de concreto e vidro quebrados em tijolos que cobrirão sua fachada. O material computa apenas um terço do carbono incorporado de um tijolo tradicional, por conta da obtenção de seus componentes e por não necessitar de queima. O Gent Waste Brick será utilizado na fachada da expansão do museu, que foi projetada pelos arquitetos Carmody Groarke, e foi desenvolvido em parceria com TRANS architectuur, os designers de materiais da BC Materials e Local Works Studio. Para tal, foi criado um método para moer os materiais de resíduos de construção combinados com cal, formando tijolos secos e curados.

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Gent Waste Brick. Image Cortesia de Carmody Groarke
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Gent Waste Brick. Image Cortesia de Carmody Groarke

Feito principalmente de concreto triturado, alvenaria e vidro de edifícios demolidos, o bloco utiliza materiais coletados sobretudo dentro de um raio de cinco milhas do museu. A cal usada como agente de ligação nos tijolos provém de uma área um pouco mais distante, mas ainda é de fonte regional. Quando combinados dentro de um processador móvel do tamanho de um contêiner de transporte, os materiais brutos são moldados em tijolos que, em seguida, passam por um processo de cura a seco ao longo de 60 dias. Em contraste com tijolos convencionais, que são queimados em forno uma ou até duas vezes a temperaturas elevadas, o Gent Waste Brick consome significativamente menos energia. Além disso, absorve carbono do ar durante seu processo de cura, sequestrando dióxido de carbono e tornando-se mais resistente no processo. Ao longo de uma estimativa de vida útil de 60 anos, cada tijolo produzirá um terço da quantidade de CO2 de um tijolo convencional. Eles serão usados na parte externa da expansão do museu, que tem previsão de conclusão em 2024.

Ressignificando o lixo plástico

Em Nairóbi, Nzambi Matee, uma engenheira queniana tem liderado uma iniciativa que revela um potencial pouco explorado dos resíduos plásticos. Sua start-up, Gjenge Makers, busca converter plástico descartado em tijolos ecológicos de grande resistência, custo efetivo e impacto ambiental positivo. A convicção de Matee, de que o plástico possui valor, nasceu da observação da enorme quantidade de resíduos plásticos em aterros e espaços públicos de sua cidade, Nairobi, uma capital africana em rápido crescimento, que gera aproximadamente 500 toneladas de resíduos de plástico diariamente, com menos de 10% sendo reciclado.

A técnica, desenvolvida para transformá-los em um material de construção, combina plástico triturado com areia, formando uma mistura moldável que se transforma em um bloco robusto e leve após exposição ao calor, , com vantagens superiores ao concreto: os tijolos sustentáveis têm força sete vezes maior, são mais leves, economicamente viáveis e ecologicamente benéficos. Além disso, custam até 15% menos para produzir e, devido à natureza fibrosa do plástico, os bolsos de ar são eliminados durante o processo de produção, resultando em grande força de compressão e maior durabilidade. Seu trabalho inspirador, destaca o potencial transformador da inovação sustentável no enfrentamento de desafios ambientais e sociais. 

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Cortesia de Gjenge Makers

Outro exemplo vem da Holanda, desenvolvido por Precious Plastic. A solução inovadora de tijolos reciclados aborda os desafios da poluição por plástico e da habitação acessível. Enquanto o lixo plástico causa estragos nos oceanos e a indústria da construção contribui significativamente para as emissões de carbono, este tijolo oferece uma alternativa econômica e ecologicamente sustentável. Produzido com máquinas de reciclagem de código aberto, cada tijolo pode reter 1,5 kg de resíduos plásticos e é projetado para montagem fácil e encaixe entre si, permitindo uma construção rápida, mesmo por construtores inexperientes. Esses tijolos têm potencial para habitação acessível, abrigos em situações de desastre e edifícios públicos, com ênfase em sua adaptabilidade. Compartilhados na plataforma da Precious Plastic como parte do movimento #Openbrick, a iniciativa apresenta um caminho promissor para combater a poluição plástica, avançar na construção sustentável e atender às necessidades globais de habitação.

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Cortesia de Recycle Rebuild

K-BRIQ®: Pioneirismo na Economia Circular na Construção

Já do Reino Unido vem o K-BRIQ®, produzido pela Kenoteq, que anseia redefinir a construção sustentável. Trata-se de um tijolo de vedação produzido a partir de materiais inertes reciclados em uma alternativa de baixo carbono à alvenaria tradicional, adaptável tanto para ambientes internos quanto externos. Comparado a um tijolo de argila convencional, este tijolo apresenta uma pegada de carbono inferior a 5%, pois não passa pelo processo de queima. Além disso, cerca de 90% do seu conteúdo é proveniente de resíduos de construção reciclados, e também não requer o uso de cimento, outro vilão das emissões de carbono. A unidade de construção possui um acabamento colorido que não requer pintura ou tratamento de superfície, além de ter potencial para uma variedade de cores diferentes usando pigmentos reciclados. As características de desempenho da unidade e sua "construtibilidade" o tornam adequado para a maioria das aplicações normalmente reservadas para produtos tradicionais de tijolo/cimento e historicamente inadequados para produtos secos ao ar.

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Cortesia de Kenotec
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Cortesia de Kenotec

Certificado pela BBA e respaldado por uma Declaração de Produto Ambiental, o K-BRIQ® está disponível em uma variedade de treze cores de estoque, todas feitas de pigmentos reciclados, e outras cores são possíveis através de misturas. O produto está em seus estágios finais da certificação BBA no Reino Unido, permitindo que seu uso comercial do final do verão de 2023. Sua declaração de produto ambiental (EPD) e guia de design também estará disponível no final de 2023, ano em que a empresa anseia entregas 3 milhões de blocos. 

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Cortesia de Kenotec

Utilizando resíduos industriais

Pioneirizados pelo empresário Manish Kothari, proprietário e diretor administrativo da Rhino Machines, os Tijolos Rhino oferecem uma solução para a fabricação de tijolos e para a utilização de um resíduo industrial. Em contraste com os convencionais cerâmicos, que têm um alto custo ambiental devido ao seu processo de fabricação e poluição do ar, estes produtos são compostos por 75% de poeira de fundição e 25% de plástico reciclado. A poeira de fundição fina, anteriormente inutilizável, encontra uma nova utilidade como elemento crucial nesses tijolos, enquanto o plástico reciclado atua como um agente de ligação eficaz, substituindo a necessidade de água no processo de fabricação e aprimorando ainda mais os atributos ecológicos dos tijolos. Os Rhino Bricks são 2,5 vezes mais fortes e 25% mais leves do que os tijolos tradicionais e sua composição única permite que eles resistam a pressões maiores em comparação com os tijolos de argila convencionais, mantendo a integridade estrutural mesmo quando submetidos a perfuração ou divisão. Além disso, sua fabricação é muito rápida, prontos para uso apenas 30 minutos após a produção.

Mas a matéria-prima também pode vir de locais inusitados. Ellie Birkhead, formada na Academia de Design Eindhoven tem desenvolvido tijolos ecológicos através de seu projeto 'Building the local’. Seus tijolos são feitos usando argila misturada com estrume de cavalo, garrafas de vidro de um pub, lã e cinzas de palha de uma fazenda, grãos usados de uma cervejaria e cabelo de um cabeleireiro. Sim, cabelo humano. Seu projeto revive o legado de tijolos de Chiltern Hills, combatendo o impacto da globalização nas indústrias locais. Ao incorporar materiais específicos da região, Birkhead nutre a ligação entre arquitetura, estética e cultura, revigorando o artesanato. Seu empreendimento ecoa um chamado mais amplo para salvaguardar as indústrias e habilidades ameaçadas, destacando a urgência de preservar o patrimônio em um mundo em mudança. 'Construir o local' é uma prova da sustentabilidade criativa e do respeito pelo legado local, nos guiando para um futuro mais consciente ".

Através da redefinição de resíduos como recursos valiosos, a indústria da construção está testemunhando uma revolução ecológica impulsionada por mentes inovadoras. Desde o uso de algas marinhas invasivas para criar casas resilientes até a transformação de plástico descartado em tijolos robustos, a economia circular encontra expressão nos tijolos que encapsulam valor ambiental e social, dando forma a habitações atraentes, duráveis e acessíveis. À medida que o mundo busca maneiras criativas de enfrentar os desafios globais, essas histórias de transformação inspiram a adoção de práticas responsáveis e a construção de um amanhã mais consciente.

Sobre este autor
Cita: Eduardo Souza. "Tijolo por tijolo, resíduos podem moldar o futuro da construção" 17 Set 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1005964/tijolo-por-tijolo-residuos-podem-moldar-o-futuro-da-construcao> ISSN 0719-8906

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