A poética da água: significados simbólicos no espaço construído

Em um mundo de texturas, cores e sabores extravagantes, quem diria que uma substância incolor, insípida e inodora é justamente a mais essencial para a existência humana. Antagônica por si só, a água carrega uma ambiguidade de valores e significados os quais lhe conferem um alto grau de complexidade sustentado pelo seu perfil versátil e dissolúvel que a singulariza em uma complexa simplicidade. Nesse sentido, a água, como fonte de vida, ao longo do tempo se tornou tanto um objeto de devoção quanto de estudo, fomentando um esforço contínuo focado em entender, transportar e controlar este elemento.

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Em muitas religiões, por exemplo, a água simboliza purificação e é usada para benzer e curar, sendo um motivo de veneração. Com isso, templos e construções foram erguidos a fim de consagrar este elemento, acolhendo os ritos marcados pela imersão na água, como os que acontecem nos “ghats” – locais de banhos e rituais hindus, tal qual a escadaria que leva ao rio Ganges. Uma cultura que reverbera também na arquitetura contemporânea como no Templo dos Degraus, construído Índia, que faz uma releitura dos “ghats” entendendo-os como símbolos do patrimônio arquitetônico do país, assim como o Templo Tejorling Radiance que conta com uma grande abertura por onde a água sagrada flui para fora da edificação. Um percurso d'água que se derrama desde o templo e que é parte fundamental do ritual hinduísta.

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Templo dos Degraus / Sameep Padora & Associates. © Edmund Sumner

Da misticidade que envolve o elemento à sua função primordial para o desenvolvimento da vida, a água está presente no cotidiano de diferentes formas, controlada nas torneiras e chuveiros, diluviana nos rios e lagos, ora escassa, ora abundante. Objeto de desejo nas regiões que sofrem com a aridez, objeto de terror naquelas que sofrem com as enchentes. Enfim, são muitas as dualidades que envolvem esse elemento, assim como são muitas as situações em que a água é inserida no espaço construído, cada qual com sua intenção.

Quando dinâmica, a água ecoa a conexão e a unidade, a cola metafórica que conecta a natureza e enfatiza a importância da interdependência, simbolizando também a vitalidade e renovação. Quando calma, a mesma água se torna um espelho, naturalizando a nossa imagem na contemplação íntima e evocando uma sensação de serenidade. Ou seja, a água também contribui para a experiência sensorial uma vez que ela é capaz de instigar diferentes sensações.

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Tumba Brion [Altivole, 1969-78]. Image © Antonio Trogu [Flickr bajo licencia CC BY-NC 2.0]

Não é à tona que Lina Bo Bardi, quando indagada sobre o processo de projeto do SESC Pompeia, afirmou que após visitar o espaço várias vezes e entender a necessidade de manter a vitalidade que ali já existia, disse que adicionou “apenas algumas coisinhas: um pouco de água e uma lareira”. A água a qual a arquiteta se refere é o espelho d’água sinuoso que corta o espaço fabril, uma alusão ao Rio São Francisco que corta o nordeste brasileiro. Obviamente, a intervenção de Lina no SESC não foi tão “simples”, assim como o “pouco de água” que ela acrescentou ao espaço carrega uma simbologia muito mais complexa do que parece à primeira vista. Nele a água surge para congregar, para gerar pertencimento e apropriação, até mesmo nas brincadeiras das crianças que cruzam a água sem medo de se molhar. Vale ressaltar que este não é único projeto no qual Lina utilizou a simbologia da água, com alguns autores atribuindo essa característica à sua relação com o candomblé. O Teatro Oficina também possui um elemento surpresa, uma espécie de cascata que deságua no espelho d’água.

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SESC Pompéia. Image by paulisson miura from Cuiabá, Brasil, CC BY 2.0 , via Wikimedia Commons

Carlo Scarpa, outro grande nome da arquitetura, atribuía sua relação com a água ao fato de ser veneziano. Essa característica pessoal fez com que o elemento se tornasse presença constante em seus projetos, multiplicando os detalhes da realidade e criando inúmeras imagens e sensações. Uma poética que fez com que seus espaços fossem além da forma arquitetônica, evocando outras emoções. Em seu projeto para o pátio do Palazzo Centrale, na XXVI Bienalle (1952), Scarpa orquestra os materiais como se fosse uma sinfonia e a água é o elemento de conexão, é a música que percorre o jardim, construindo um diálogo que envolve todos os elementos. Uma sutil entonação, uma nota musical que define a dimensão do espaço. Assim como na tumba de Brion, projeto dotado de simbologias que traz a água em diferentes momentos, como no caminho que guia o visitante.

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Tumba Brion - San Vito d'Altivole / Carlo Scarpa. Image © Mili Sánchez Azcona

Além desses, são muitos os exemplos que poderiam ser apresentados quando se fala na relação entre a água e a arquitetura, desde espaços contemplativos, como o monumento Escrito na Água, até projetos residenciais, como a Casa 6M ou a Casa de la Loma. Entretanto, independente do programa, é possível perceber como a água pode assumir um papel ativo que enriquece a experiência espacial. Seja nas práticas ritualísticas, contemplativas, terapêuticas, nos espelhos d’água, nas cascatas ou nas fontes, o seu poder evocador de novos sentidos é partilhado com a arquitetura que a acolhe, comprovando seu valor enquanto elemento fundamental na linguagem construída – funcional ou ornamental –, ambas circunstâncias que trazem prazer ao visitante.

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Escrito na Água / Studio Octopi © Andrew Butler

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Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "A poética da água: significados simbólicos no espaço construído" 02 Jul 2023. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1002150/a-poetica-da-agua-significados-simbolicos-no-espaco-construido> ISSN 0719-8906

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