Construindo entre espécies: arquitetura como colaboração entre humanos e não humanos

Muito se fala hoje em dia sobre a importância dos processos colaborativos de projeto que envolvem a criação conjunta, afirmando um contexto no qual há cada vez menos espaço para trabalhos individuais e muito mais para a lógica do coletivo, da cocriação. Sendo assim, a ideia da obra criada única e exclusivamente pelo arquiteto já é entendida como uma distorção da realidade complexa que circunda a concepção de um projeto, extrapolando o corpo técnico para agregar também a comunidade e seus usuários.

Esse espírito de colaboração é, sem dúvidas, uma das grandes diretrizes do novo século, um momento no qual é preciso somar forças para reverter as mudanças climáticas e lidar com os problemas gerados, principalmente, pela exploração exacerbada dos recursos naturais. Nesse sentido, a colaboração tem atingindo um outro patamar que inclui a relação não somente entre nós, humanos, mas entre espécies diferentes. É possível perceber um certo “retorno à natureza” em nossas atitudes que permite estarmos atentos ao que nos envolve, nos inspirando a buscar soluções simples e inteligentes para nossas inovações espaciais. Essa colaboração interespécies pode parecer ainda um tanto quanto utópica, mas tem se mostrado um caminho interessante para gerar projetos resilientes que resgatam e reconhecem o valor da vida não humana.

Na história da civilização, a ideia de progresso sempre esteve entrelaçada com a disseminação de técnicas de alienação que transformam humanos e outros seres em recursos. Essas técnicas têm segregado as espécies e obscurecendo a sobrevivência colaborativa. Tendo em vista tal questão, muitos esforços estão sendo feitos para que o antropocentrismo seja abandonado rumo a uma cultura longe do contexto humano-animal. Um mundo "biocêntrico" centrado na multiplicidade de espécies e construído pelas relações colaborativas, baseado mais na interdependência e menos na exploração.

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Instalação Victoria and Albert Museum. Imagem © NAARO via the V&A

Na arquitetura, a biomimética pode ser vista como um dos primeiros reflexos dessa nova relação. Em sua definição, ela pode ser entendida como uma forma de colaboração na qual procura-se compreender o funcionamento de determinadas estruturas criadas pela natureza para, então, aplicá-las na construção civil. Um dos exemplos mais famosos é o sistema de resfriamento passivo do edifício Eastgate Center de Mick Pearce no Zimbábue, que imita a forma dos cupinzeiros africanos para manter constante a temperatura interna, apesar das grandes variações de temperatura da região. O edifício utiliza o ar frio da noite para resfriar os espaços internos; durante o dia este ar sobe do térreo em direção aos pavimentos superiores através de chaminés. Além dele, inúmeros projetos parametrizados inspirados em carapaças de insetos, microrganismos celulares ou estruturas orgânicas, permitem ajustar os componentes estruturais para se abrir ou se fechar segundo a orientação solar, as condições climáticas ou o programa interno. Muitos, inclusive, podem funcionar de forma reativa ao meio ambiente, ajustando-se às diferentes condições. Através desses exemplos é possível perceber que, quando desassociada de um modismo sustentável, a arquitetura biomimética abre espaço para serem criadas respostas objetivas que revelam, por meio da observação da natureza, um modo de cooperação entre humanos e não humanos.

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Eastgate Centre / Mick Pearce. Imagem © David Brazier

Mais além de entender a natureza como uma fonte de inspiração, alguns projetos estão incorporando fisicamente outras espécies a fim de enfrentar determinados desafios. Um exemplo interessante é o projeto Billion Oyster que visa introduzir ostras nos canais de Nova York para formar recifes que, por sua vez, tendem a retardar o movimento da água e consequentemente o impacto das tempestades. Kate Orff, diretora do programa, afirma que o projeto estaria “replicando a atividade que aconteceria naturalmente em um corpo de água mais saudável”. Ou seja, as ostras podem ser entendidas como parte de uma “infraestrutura viva” assumindo um papel fundamental para o funcionamento urbano.

Da natureza como inspiração na biomimética, passando pela utilização de infraestruturas vivas para melhoria urbana, chega-se a outro gênero de envolvimento entre espécies que são as intervenções pensadas para outros animais. Nesse caso, um dos exemplos mais didáticos são os corredores de migração para a vida selvagem. Como forma de retratação e mitigação dos impactos que infraestrutura humana tem causado na natureza, esses corredores tem como objetivo facilitar a circulação em áreas que já foram segmentadas pela ação do homem. Com eles, promove-se o funcionamento de ambientes saudáveis, apoiando e respeitando os processos naturais.

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ICD/ITKE Research Pavilion. Image © Collection FRAC Centre, Orléans

Nosso impacto no meio ambiente atingiu proporções enormes que nos confrontam com a urgência em desenvolver métodos que ajudem a lidar essa nova realidade. A arquitetura, assim como outras disciplinas, tem procurado reimaginar seu papel voltando-se para a natureza em diferentes instâncias, seja como inspiração, como cooperação ou como retratação. Nesse sentido, entender as infraestruturas não humanas faz como que se pense no papel de outras espécies como cocriadoras ativas, simbolizando a união rumo a um futuro mais sustentável.

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Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "Construindo entre espécies: arquitetura como colaboração entre humanos e não humanos" 12 Dez 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/993454/construindo-entre-especies-arquitetura-como-colaboracao-entre-humanos-e-nao-humanos> ISSN 0719-8906

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