O lucro acima do público: a lógica da concessão de uso na cidade de São Paulo

Recentemente, a cidade de São Paulo presenciou dois eventos envolvendo espaços que antes eram públicos e agora estão sob concessão privada. A já consagrada Virada Cultural Paulistana voltou a acontecer após os anos iniciais da pandemia de covid-19, e teve como um de seus palcos o novo Vale do Anhangabaú. Além dela, o complexo do Pacaembu, que recentemente deixou de ser um equipamento público, tornou-se uma concessão e vem passando por uma série de reformas e transformações, recebeu a Feira ArPa, evento que juntou uma série de importantes galerias para exposição, compra e venda de obras de arte. Apesar da diferente natureza desses eventos, seus processos despertam reflexões a respeito do modelo de privatizações que estamos vivendo nas cidades hoje.

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O processo de privatização consiste, basicamente, na venda de um bem público para o setor privado. Porém, segundo Sabrina Durand em sua pesquisa investigativa intitulada Privatização da Rua, sobre o projeto do Vale do Anhangabaú em São Paulo, essa definição não se aplica ao que vem ocorrendo nas concessões de uso praticadas pelas prefeituras nos últimos tempos. A autora cita o sociólogo Carlos Vainer, apontando que a nova lógica estabelecida entre empresa e poder público legitima a apropriação direta dos instrumentos de poder público pelos grupos privados ao transformar a cidade em um sujeito econômico.

Na prática, isso significa que ao invés da venda, com transferência de posse de um bem do poder público para a empresa privada, o processo é mais sutil, sorrateiro. No processo de concessão de uso de um bem público, a empresa define qual será o uso daquele espaço, além de determinar como será seu acesso, quais produtos serão vendidos e, por consequência, também qual será o público que poderá acessá-lo, tendo em vista que o interesse principal das empresas é transformar esses espaços em produtos lucrativos, explorando suas qualidades urbanas. Dessa forma, o controle exercido pelas empresas a um espaço que é em sua concepção livre, público, cria conflitos de diferentes escalas.

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Vale do Anhangabaú nos anos 2000, conforme projeto de Jorge Wilheim e Rosa Grena Kliass.. Image © Imagem via Mobilize

O Vale do Anhangabaú e a Virada Cultural de 2022 são exemplos desses conflitos. Depois de um longo processo que se iniciou em 2007, o Vale finalmente teve sua obra finalizada em 2021 e, desde então, se tornou palco para diferentes eventos particulares e públicos. Importante ressaltar que o próprio projeto, que foi parte de um acordo entre o banco Itaú, o poder público e o escritório internacional Ghel Architects, altera o espaço existente criando condições para receber tais eventos, ainda que isso não fosse claramente a premissa do projeto em um primeiro momento. Em eventos como a Virada Cultural, o Vale recebe cercas, tapumes e divisórias que impedem a livre circulação pela região, além de segurança reforçada, tanto militar e civil como particular, somando uma série de ferramentas de controle social para garantir que os interesses da concessionária sejam atendidos.

Assim como no caso dessa região do centro antigo de São Paulo, a lógica das concessões de uso está relacionada à transformação e requalificação de seus arredores, criando pontos de interesse que atraem novos investimentos para a cidade, dentro da lógica neoliberal, criando um “bom clima para os negócios”, como descreve David Harvey. Em contrapartida, essa lógica, ao valorizar a região, criando interesse para especulação imobiliária, aumenta os preços de aluguéis e produtos, fomentando um processo de gentrificação que beneficia somente as camadas mais ricas da sociedade, prejudicando as populações mais vulneráveis, que são excluídas e impedidas de permanecerem ali.

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Vale do Anhangabaú após reforma. . Image © Fábio Tito G1/2020

Assim, a concessão de uso permite às empresas explorarem as potencialidades dos espaços públicos, aproveitando uma infraestrutura construída pelo Estado e consolidada pela comunidade, ao mesmo tempo que transforma as relações sociais em seu entorno e a relação da população com aquele local, colocando em cheque o que o Estatuto da Cidade define como Direito à Cidade. Esse questionamento, mais claramente perceptível no caso do Vale do Anhangabaú, também está presente em uma concessão mais recente: a do Pacaembu. O estádio, projetado e construído originalmente pelo escritório de Ramos de Azevedo, é, nas palavras de Nabil Bonduki, "de inestimável valor afetivo, cultural, arquitetônico e esportivo", e está atualmente sofrendo uma longa e substancial reforma que busca otimizar e aumentar seu potencial de lucratividade.

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Estádio do Pacaembu. Image © Wally Gobetz, via Flickr. Licença CC BY-NC-ND 2.0

Bonduki aponta que o acordo feito pelo poder público foi desvantajoso financeiramente para a prefeitura, mas, além disso, chama a atenção aos acordos em relação à manutenção das atividades públicas. Diferentemente do Vale do Anhangabaú, que é um espaço aberto onde as pessoas conseguem construir uma relação cotidiana livremente, o Estádio do Pacaembu é um equipamento público com uma série de programas esportivos delimitados pelo complexo construído, incluindo pista de corrida, piscina, academia, entre outros, todos disponíveis para uso da população. O Pacaembu era um dos poucos equipamentos públicos de lazer de grande porte na cidade, reunindo diversos grupos sociais que desfrutavam de suas instalações todos os dias da semana.

Com a concessão e a reforma, a dinâmica social já está sendo transformada. O projeto atual não apenas prevê demolições no edifício original, como também visa a ampliação do espaço construído para aumentar as áreas lucrativas, além também de prever uma redução substancial na disponibilidade de tempo para a população em geral, demonstrando que o objetivo principal da concessão de uso, ao contrário do que pode parecer, não é a manutenção de um bem público, mas a exploração de uma estrutura pública, restringindo seu uso coletivo em uma cidade que carece de infraestrutura gratuita de lazer e cultura. 

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A Feira do Livro, 2022. Image © Lia Lubambo Via @afeiradolivro

A inédita feira de arte, conhecida como Feira ArPa, que aconteceu dentro das instalações do Pacaembu em meados de junho, ocorrendo lado a lado e quase ao mesmo tempo que a também inédita A Feira do Livro que aconteceu na Praça Charles Miller, em frente ao estádio, demonstra a contradição que a concessão de uso gera na vida urbana. De um lado, um evento que tem raízes elitistas, dedicados a um público específico e direcionado, exclusivo, ocorrendo dentro de um edifício que teve seu uso público restringido, dando espaço à lucrabilidade da empresa. Do outro, um evento cultural que se propôs a ser aberto, convidativo, interessado em envolver os passantes a se apropriarem das discussões e palestras que aconteciam ali, acessíveis a qualquer um que passasse, promovendo cultura. 

A contradição entre esses dois eventos sugere questionamentos fundamentais a respeito das privatizações e concessões de uso. As experiências paulistanas mostram que um dos grandes desafios das concessões de uso está em garantir que o Estado tenha um papel regulador, mediando os interesses da população frente aos interesses das empresas, certificando-se que nenhum direito seja onerado durante os projetos e o período de concessão. Por outro lado, uma das consequências que não aparentam alternativas possíveis é a valorização das áreas de entorno, e a consequente gentrificação. Para além de um papel de mediador, o poder público deve também proteger sua população mais vulnerável a partir de políticas públicas que equilibrem esses impactos sociais.

Referências

DURAND, Sabrina, 2014. em Arquitetura da Gentrificação. Privatização da Rua, como o banco Itaú, com aval da prefeitura, pretende redefinir o uso do centro de SP.

BONDUKI, Nabil, 2022. Por que a Prefeitura de São Paulo não vende de vez o estádio do Pacaembu? Acesse aqui.

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Sobre este autor
Cita: Giovana Martino. "O lucro acima do público: a lógica da concessão de uso na cidade de São Paulo " 30 Jul 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/985448/o-lucro-acima-do-publico-a-logica-da-concessao-de-uso-na-cidade-de-sao-paulo> ISSN 0719-8906

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