Achando potencial no não fazer: encarando as possibilidades no Edifício Bonpland de Adamo Faiden

Existe, ao estudar arquiteturas indeterminadas, um instinto, quase que natural, de tentar encontrar um rótulo para ela. E, se não um rótulo, uma forma de tentar solucioná-la para que ela possa, mesmo que momentaneamente, ser algo mais concreto. O que acontece se não tentarmos defini-la?

Em 2019, visitei, com alguns colegas, o Edifício Bonpland do escritório argentino Adamo Faiden. Antes de visitarmos, em conversa com amigos, tentei explicar o conceito por trás de muitos edifícios porteños do século XXI. A lógica de ocupação do terreno, que se articula como dois blocos, um frontal e outro traseiro ligados por uma circulação centralizada, os gabaritos e, no caso do edifício Bonpland, uma planta que tinha como elementos estruturais a circulação vertical e os núcleos hidráulicos. Comentei sobre o exercício de indeterminação que existia no prédio e recebi uma resposta muito interessante: fui dito que essa falta de resolução dos layouts dos espaços internos era preguiça dos arquitetos. 

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Planta do Edifício Bonpland. Cortesia de Adamo Faiden

Apesar da indeterminação não ser algo novo na arquitetura, o sentimento de incompletude que isso nos traz não deixa de ser fresco,  porque o incompleto faz parecer com que se não fez o bastante e que aquilo, no caso o objeto arquitetônico, não atingiu seu potencial. Potencial é um assunto importante ao discutir arquitetura e, esse tipo de arquitetura indeterminada, ou "bartlebyana", guarda, em suas atitudes, um sentimento constante de potencial ou da falta dele. Se pensarmos no conto de Henry Melville, onde o escrivão Bartleby ao ser requisitado para fazer diversas tarefas responde dizendo “acho melhor não” podemos dizer que, tudo que nasce a partir da negação é muito mais emocionante do que se ele tivesse dito sim. Em alguns casos ativamente dizer que não parece imensamente mais potente do que dizer que sim. Construir apenas circulações verticais e blocos hidráulicos, e dizer não ao resto, parece trazer muitas mais discussões à tona, inclusive pessoas chamando isso de preguiça.

A ideia de potencial é muitas vezes atribuída a se fazer o máximo possível, fazer tudo que está a disposição e atingir o potencial máximo pode significar não ter deixado nada para trás, muito menos em aberto, mas o argumento poderia ser o contrário, de que fazer nada ou quase nada é, sim, atingir o potencial. 

Potencialidade é relacionada a um conhecimento ou habilidade: quem for que tem um determinado conhecimento não tem de ser transformado para obtê-lo: portanto o sujeito é livre para o usar ou não, para fazer, se isentar ou achar melhor que não. — VODANOVIC, 2007

Arquiteturas de isenção ou não arquiteturas também são um desejo de que se possa deixar as coisas como elas são, aceitando o mundo como ele é e o possibilitando de intervir por conta própria.

Um exemplo disso seria um concurso organizado pela CCA (Canadian Center for Architecture) no ano de 1999, onde o arquiteto britânico Cedric Price, ao olhar para área de intervenção - um enorme território de mais ou menos 12 quarteirões no meio da ilha de Manhattan logo ao lado do Rio Hudson - decide não fazer nada. Decide, ao  não intervir ou construir, criar um "pulmão" para cidade, entendendo que ao fazer nada, ao não definir programas, nem construir edifícios, está possibilitando perspectivas de futuro para cidade, ganhando tempo e encontrando na indeterminação muitos mais usos do que o objeto definido traria. Encontrando potencial em não fazer e conquistando assim o vazio, conquistando o ar vindo do rio, o sol, o chão, um novo território e outras formas de arquitetar.

Mas o que nos resta nas coisas que se propõe a ser nada? Como usufruímos dela e como fazemos que elas tenham justamente a medida certa de nada para ser alguma coisa eventualmente? 

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Módulo do último piso. Edifício Bonpland / Adamo Faiden. Image © Javier Agustín Rojas

Ao olharmos o interior do Edifício Bonpland existem alguns elementos que reforçam a ideia de arquitetura como plataforma e de espaços quase que austeros, mas ao mesmo tempo incertos. O piso, aqui em cimento queimado, permite uma unidade para o espaço. Percorrendo todo o recinto é possível sentir que se está a toda hora no mesmo lugar, em um monoespaço. O branco das paredes e das portas, para além de trazer um sentimento de leveza para o módulo, é também o que traz a chance de multiplicidade, pois aceita e reflete todas as outras cores. Os planos quase que sem reentrâncias servem também para criar uma suavidade que atravessa quase todo o apartamento. E por fim, as portas de vidro e a fachada, que pela sua transparência influenciam diretamente para que a sala esteja sempre mudando. 

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Módulo tipo. Edifício Bonpland / Adamo Faiden. Image © Javier Agustín Rojas
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A fachada. Edifício Bonpland / Adamo Faiden. Image © Javier Agustín Rojas

O exercício de escrever sobre coisas indeterminadas é muito complexo, tão complexo quanto chamar coisas de coisas, pois sente-se que não sabe sobre o que está falando. Mesmo no parágrafo anterior, cada vez que se falou sobre o módulo/sala/apartamento/unidade fez-se de uma palavra diferente justamente porque espaços indeterminados não são algo e nem são nada, são tudo entre os dois. O que interessa não é o que nos resta nos extremos, o conceito de casa, de sala, de quarto, cozinha e afins e nem o conceito de espaço vazio, mas o meio, o intervalo, o momento onde por não conseguir definir - por se espantar e chamar de preguiça - a arquitetura se encontra. Não em um projeto de interiores, nem um rearranjo dos núcleos hidráulicos, mas nas pequenas ações arquitetônicas que existem ao viver entre as coisas, sendo e não sendo, fazendo e desfazendo, achando melhor que sim e achando melhor que não. 

Como já foi dito, indeterminação não é um assunto novo dentro da disciplina de arquitetura, o próprio Cedric Price na década de 60 já estava projetando estruturas como o Fun Palace cuja essência era justamente não ter que se conformar à normas, mas, ao pensar o ano de 2020 - onde muitos viveram sem saber e sem perspectiva - a indeterminação parece essencial. 

Quando, logo no início do ano, começamos a lidar com os efeitos da pandemia do COVID-19, muitos trabalhadores e estudantes adaptaram suas rotinas para realizar as atividades de dentro de casa. Aulas, reuniões de trabalho e mesmo encontros casuais passaram a ocorrer mediados por telas. O mais próximo do real para alguns era o virtual e muitas dessas mudanças de rotina tiveram um impacto significativo no espaço da casa também, já que agora se acordava, comia, trabalhava, estudava, relaxava e dormia entre as mesmas quatro paredes. O home office colocou em xeque a ideia de espaços de uso único e para muitos serviu para subverter o que antes era a sala ou o quarto e trouxe a necessidade de levar a mesa um pouco para esquerda para estar mais perto da tomada, de pegar alguns livros grossos para apoiar o computador e talvez algumas almofadas para sentar mais alto na cadeira. Mas não só isso, a vida delimitada pela casa trouxe vontade de que essa não fosse só a casa e nem o escritório e, sim, um pouquinho dos dois, algo indeterminado. Como será que está passando o Edifício Bonpland em pandemia?

Não acredito ter uma única resposta para essa pergunta. O edifício agora, desde sua conclusão em 2018, com certeza já não tem a mesma planta que tinha. Provavelmente já subiu outras paredes, trocou os seus pisos e talvez tenha até mudado alguns banheiros de lugar. O ponto não é, necessariamente, conceber arquitetura como plataforma e nem permitir, a partir da arquitetura, possibilidades, mas sim possibilitar que se faça um pouco de arquitetura todo dia quando se julga necessário. E foi esse um dos aprendizados que o isolamento trouxe, seja arquiteto ou não, fazendo muito ou pouco, no fim o que se queria eram novas possibilidades, encontrando potencial no próprio saber.

Referências bibliográficas
VODANOVIC, Lucia. Obsolescence and Exchange in Cedric Price’s Dispensable Museum. Invisible Culture, Issue 11, 2007. Disponível em <https://eprints.mdx.ac.uk/10479/>
MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão - uma história de Wall Street. São Paulo: Ubu Editora, 2017

O ensaio aqui exposto é fruto do trabalho de conclusão desenvolvido na Associação Escola da Cidade "Lindo esboço — mas 'arquitetura' demais" Cedric Price e o Projeto para Manhattan, 1999" com orientação da professora Dra. Paula Dedecca

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Sobre este autor
Cita: Leonardo Dias. "Achando potencial no não fazer: encarando as possibilidades no Edifício Bonpland de Adamo Faiden" 14 Ago 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/966553/achando-potencial-no-nao-fazer-encarando-as-possibilidades-no-edificio-bonpland-de-adamo-faiden> ISSN 0719-8906

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