A efemeridade do corpo e do espaço: um convite ao abandono

A cidade abandonada é um típico cenário de suspense, um lugar de terror e degeneração, a estimulante mistura entre perigo e liberdade. Uma ambiência que incita, ambiguamente, repúdio e curiosidade. Um espaço sombrio, oculto e marginal que parece lamentar, no silêncio assustador, o vazio deixado por aqueles que ali viveram. Nos seus fragmentos espalhados pelo chão, o medo, a descoberta e a inevitável nostalgia de um passado que não é necessariamente seu recriam histórias de abandono. Espaços que tiveram nome, data, função, e agora decompõem-se lentamente na solidão do presente.

A efemeridade do corpo e do espaço: um convite ao abandono - Imagem 2 de 7A efemeridade do corpo e do espaço: um convite ao abandono - Imagem 3 de 7A efemeridade do corpo e do espaço: um convite ao abandono - Imagem 4 de 7A efemeridade do corpo e do espaço: um convite ao abandono - Imagem 5 de 7A efemeridade do corpo e do espaço: um convite ao abandono - Mais Imagens+ 2

Pela peculiaridade da sua atmosfera, tais cenários são frequentemente escolhidos como palco para obras de diferentes artistas que vão desde registros históricos eternizados na literatura, como as pequenas vilas abandonadas pelo progresso cafeeiro, descritas por Monteiro Lobato no seu livro Cidades Mortas (1919), até os cenários pós-apocalípticos apresentados nas ficções hollywoodianas mais clássicas.

Porém, não é necessário viajar no tempo – seja ao passado de Monteiro Lobato ou ao futuro hollywoodiano – para se deparar com esta situação, tão pouco se faz necessário deslocar-se até regiões longínquas e remotas. A atmosfera do abandono rodeia nosso habitat de forma muito mais próxima do que se imagina.

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© Camilla Ghisleni

Tal situação – obviamente potencializada no caso de povoados inteiros em ruínas – pode ser experimentada a qualquer momento por meio de pequenos fragmentos do abandono que, camuflados em meio à dinâmica das cidades, espalham-se por elas. Tais espaços, ainda que se apresentando em proporções pequenas e estando rodeados por outras edificações em decorrente uso, proporcionam essa mesma atmosfera. Independente do contexto, seja ele dinâmico ou igualmente abandonado, algo acontece ao cruzar seus portões ou pular seus muros. Instaura-se uma ambiência marginal que se esfacela em meio ao cotidiano.

Novos roteiros

Quando se olha para estas arquiteturas abandonadas o roteiro da cidade diligente se altera, muda-se o ângulo de visão e novos espaços se descortinam aos olhos do espectador que, mesmo momentaneamente, se afasta do automatismo da cidade à sua volta. Vem à tona outro lado da cidade contemporânea, uma parte que sempre esteve ali e passa despercebida pela maioria dos cidadãos, servindo como mero cenário congelado na história. O lado abandonado, esquecido, renunciado.

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© Camilla Ghisleni

Muito diferente do silêncio melancólico incitado pelas antigas ruínas românticas, os abandonos contemporâneos instigam sentimentos e ações peculiares. Atividades alimentadas pela conflituosa geografia que os compõem, pela dicotomia entre público-privado, aberto-fechado, vivo-morto que paira sobre eles.

Entrar em um espaço abandonado é, portanto, nada mais do que uma audácia. Exige-se impavidez e atrevimento unidos a um enfrentamento. Pular seus muros é um gesto que vai muito além do fato de romper com as barreiras do espaço privado ou mesmo dos perigos eminentes devidamente designados ao abandono. Adentrar a este mundo nos traz também uma condição existencial, além de urbana.

O esfacelamento da edificação impele o homem a coexistir com a mutabilidade e deterioração que atingem não somente o espaço, mas o próprio corpo humano. A edificação abandonada remete à curta existência de tudo o que é vivo, fazendo com que o homem se espelhe e se estranhe no próprio abandono. Nela, se apresenta o poder corrosivo e decadente do mundo sensível que abre rachaduras por entre as paredes, sulcos por entre a pele.

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O processo de desaparecimento do homem é gradualmente potencializado como uma antiga edificação que desvanece até retornar ao pó, comprovando que na luta entre a vontade do espírito e a necessidade da natureza, esta sempre predominará sobre aquela.

O homem e sua obra, impregnados pela força arrebatadora do tempo, lutam pela persistência material.

Os abandonos, portanto, lembram àquele que os observa o processo de seu próprio declínio, o inalienável devir da sua natureza biológica no percurso entre a energia e a decrepitude que precede a morte. Entendidos como símbolo do destino humano eles adquirem, então, um valor moral, um “emblema duplo da arché criadora e da transitoriedade”.

O fascínio pelos espaços abandonados

Levando em conta tais sentimentos, muito da perturbação causada pela edificação abandonada, a tal negativização apresentada no início do texto, pode ter como origem também a obrigatoriedade em, diante dela, encarar a efemeridade da condição humana.

Por essas e outras o espaço abandonado e/ou em ruínas vem fascinando a humanidade há séculos, em especial os arquitetos, mas não somente eles. Um fascínio materializado na tentativa incessante em – de alguma forma – documentar o abandono. O italiano Giovanni Battista Piranesi, lá no século XVIII já se debruçava sobre a documentação das ruínas nos jardins do período romântico inglês, como Stowe e Stourhead, assim como, em um salto no tempo, Le Corbusier os grafitava em seus registros de viagem. Em meio a isso há, hoje em dia, uma espécie de subgênero da fotografia, identificado como ruins photography ou ruin porn (“pornografia de ruínas”, traduzindo literalmente). Um movimento que busca dar enfoque especificamente no declínio urbano, nas cidades que viveram uma onda de industrialização no século passado, ou seja, “uma caracterização quase didática de onde nossa civilização falhou no último século”.

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Esse olhar para o abandono muito tem a ver com o que o arquiteto espanhol Ignasi de Solà-Morales anunciou em 1996, quando trouxe o termo terrain vague como uma mudança de paradigma em relação aos espaços urbanos abandonados. Sua pesquisa baseou-se no trabalho de alguns fotógrafos dos anos 1970 que dirigiram suas câmeras sobre os lugares obsoletos, desativados e esquecidos no curso da expansão urbana do pós-segunda guerra mundial.

Entretanto, em uma postura mais ativa e menos contemplativa, indo além de um mero registro, Solà-Morales constrói uma topografia do abandono que indica o despontar de um novo papel assumido por tais estruturas como territórios de livre apropriação, abertos a alteridade e, portanto, lacunas fundamentais para a cidade. Ao utilizar a expressão francesa terrain vague, o autor demonstrou uma duplicidade no conceito de vazio no sentido de que a vacância dos espaços urbanos abandonados também pode fazer com que eles sejam considerados lugares disponíveis ao que chega sem ser previsto, como uma válvula de escape, uma brecha interventiva dentro da cidade estática.  Ou seja, eles trazem à tona a duplicidade na estranheza perante espaços que estão fora do domínio genérico de uma ocupação reconhecível, ao mesmo tempo em que geram o sentido de liberdade e crítica.

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Nesse sentido, ocupar a edificação abandonada, acordá-la do seu estado de hibernação, arrancar suas traves, derrubar seus portões, pular seus muros representa uma poderosa ferramenta para tirar partido dessa conjuntura, encarando também a condição escatológica da deterioração. Seja permanentemente ou em um pequeno e breve ato de desbravamento.

Intervenções no abandono

Na compreensão de tal potencialidade os abandonos recebem apropriações artísticas em diversos formatos e instâncias, muito além dos registros fotográficos citados anteriormente. Surgem, portanto, inúmeras formas de lançar luz a esses espaços e absorver positivamente – no sentido psicológico e urbano da palavra – sua ambiência tão singular. Tanto intervenções mais pontuais como a “Ação 3” do paulista Yuri Firmeza ou a artista Flávia Mielnik com a série “Arquiteturas adormecidas sobre um vetor entre duas cidades” até grandes eventos como foi o Arte/Cidade(1997), um circuito temporário de arte contemporânea em um complexo industrial abandonado, organizado por Nelson Brissac Peixoto. Isso sem citar ainda grandes exponentes internacionais como Gordon Matta-Clark ou Francesca Woodman.

De qualquer forma, independente da vertente artística e sua forma de materialização, as intervenções se valem dessa condição do espaço abandonado como um problema existencial, antes mesmo de ser urbano. Atitudes que podem indicar inclusive um niilismo presente no enfrentamento da deterioração arquitetônica. Uma característica que representa não somente a crise dos valores e falta de transcendências mas, também, a constatação de que o agir humano não está mais entre os polos opostos da tradição e da revolução, mas se comprime na perspectiva estreita do aqui e agora, presente na mais efêmera concepção da sua imediata consumação.

As apropriações e intervenções no abandono, sejam elas de qual caráter for – artístico temporário, permanente e, claro as relacionadas à moradia que não é o foco do texto mas que é fundamental citar – materializam, portanto, através das atitudes políticas, a insatisfação existencial no plano urbano nascendo da apropriação dos seus escombros um desejo de perpetuação da arte, da vida e da arquitetura. Elas são dionisíacas, seguindo à risca a prescrição de Nietzsche quando discorre sobre a necessidade de enfrentar a condição niilista da existência humana. Dionísio, o deus grego associado aos prazeres materiais, à poética, à arte responde, segundo o filósofo alemão, à forma como se deve encarar a breve existência. Com ele aprende-se a aceitar o semblante trágico da vida, entrelaçando-se nos seus aspectos mais dramáticos, assumindo sua decadência e abandono. Esta correspondência desvela, também, uma possibilidade de encarar a cidade de maneira ativa e corajosa, que enfrenta a decadência da estrutura abandonada com coragem e força, da mesma forma que se deve enfrentar a própria existência.

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A ocupação do abandono pode encarar, portanto, o pesar que eles representam com a consciência de que o homem assume a diretriz da existência e que aproximar-se do fim, da ruína, significa também o início de um novo momento. No paradoxo da existência e da degradação, os mesmos sintomas significam direções opostas.

Sendo assim, só quando voltarmos nossos olhares para os espaços abandonados ressignificaremos seu papel na cidade, não tanto no sentido de uma revitalização, mas no ato de compreendê-los como um mundo de possibilidades que podem ainda manter, de alguma forma, a própria experiência da alteridade.

Deixa-se aqui, portanto, um convite a encarar a efemeridade do corpo e do espaço no desbravamento dos lugares abandonados. Evidenciando que a questão do espaço abandonado pode ir muito além da dicotomia público x privado, aberto x fechado, vazio x ocupado entendendo sua capacidade em nos mostrar uma compreensão mais sensível e mais atenta às vicissitudes da existência.  Um gesto importante justo em um momento no qual temos visto colocada à prova nossa própria sobrevivência como humanidade.

Esse texto é um dos frutos de uma pesquisa que iniciou em 2014 e, desde então, vem sendo desenvolvida, sempre em colaboração com o Prof. Dr. Rodrigo Bastos. Publicado originalmente no portal ArqSC.

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Sobre este autor
Cita: Camilla Ghisleni. "A efemeridade do corpo e do espaço: um convite ao abandono" 05 Nov 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/950811/a-efemeridade-do-corpo-e-do-espaco-um-convite-ao-abandono> ISSN 0719-8906

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