Uma conversa sobre Lina Bo Bardi e seu legado com Olivia de Oliveira

Olivia de Oliveira fez sua tese de doutorado sobre a arquiteta Lina Bo Bardi na Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona (ETSAB) e é autora do livro "Lina Bo Bardi. Obras construídas", que surgiu após a visita aos edifícios construídos por Lina ao lado do fotógrafo Nelson Kon em 2002. Nesta obra ela apresenta toda a complexidade arquitetônica e visões culturais, políticas e sociais da arquiteta. O resultado acaba de ser relançado no Brasil pela Editora Gustavo Gili, em português.

Na seguinte entrevista, é possível se aprofundar um pouco mais na história por trás do livro e também sobre Lina Bo Bardi através da perspectiva da autora, que cita importantes questões como o canteiro de obras, o surrealismo presente na obra da arquiteta e como segue a preservação de suas obras.

ArchDaily: Como iniciou o seu interesse pelas obras de Lina Bo Bardi?

Olivia de Oliveira: A partir de minha vivência e proximidade mais ou menos casual a algumas obras de Lina, como o Solar do Unhão em Salvador onde muitas vezes ia para ver o por do sol, a estranha casa situada no bairro do Chame-Chame, por onde sempre passava para ir a casa de uma amiga, o MASP ou o SESC, pontos de encontro obrigatórios a cada vinda a São Paulo. Descobrir que todas estas obras aparentemente díspares eram de uma mesma arquiteta me intrigava.

Mais tarde durante o meu doutorado na ETSAB, buscava afinar o tema ainda genérico de minha tese doutoral sobre os arquitetos italianos emigrados ao Brasil na primeira metade do século 20. Queria escolher apenas um deles para me aprofundar. Foi quando, de passagem a São Paulo, consegui entrevistar Lina Bo Bardi. Esse encontro foi muito intenso e importante para mim: era a primeira vez que eu encontraria esta arquiteta que tanto admirava. Ao longo de duas horas, Lina relatou-me com entusiasmo diversos fatos de sua obra e vida, fazendo-me sentir próxima, como se a conhecesse há anos. 

Ao contrário de todos os preconceitos que veiculavam contra Lina, descobri uma criatura excepcional, luminosa e de rara generosidade. 

Este encontro foi fundamental pois, se antes dele sua obra já me interessava, o contato com Lina foi suficiente para convencer-me. Saí da entrevista com um único objetivo: dedicar todo meu trabalho de tese doutoral a Lina Bo Bardi e a sua obra.

Livro "Lina Bo Bardi. Obras construídas". Image © Editora GG

Após terminar uma tese de doutorado em 2001, como foi visitar todas as obras da arquiteta ao lado de Nelson Kon?

Quando terminei minha tese de doutorado, fui apresentá-la à editora Gustavo Gili em Barcelona com o objetivo de publicá-la e, na mesma ocasião, concordamos que também era importante realizar uma publicação que reunisse o conjunto da obra construída de Lina Bo Bardi, incluindo uma boa cobertura fotográfica, algo até então jamais feito. Assim, além de aceitar publicar minha tese doutoral a editora me encarregou a organização de um número especial da revista 2G, que seria publicado numa edição bilíngue espanhol e inglês a finais de 2002. O livro Lina Bo Bardi. Obras construídas, que foi lançado em 2014 no Brasil, é a terceira edição deste trabalho feito acompanhada do fotógrafo Nelson Kon, mas então publicado com o texto original em português.

A oportunidade de visitar o conjunto das obras construídas de Lina Bo Bardi em um curto espaço de tempo foi extremamente interessante, possibilitando-me ver relações entre obras e detalhes de obras que eram até então para mim completamente inesperados. Foi como um curto-circuito na minha noção de tempo e espaço. E compartilhar este olhar e esta vivência com um fotógrafo experiente como Nelson Kon foi realmente muito bom. Ele não apenas captou o que me interessava mostrar da obra de Lina, como contribuiu para fazer vê-la de outro modo.

Livro "Lina Bo Bardi. Obras construídas". Image © Editora GG

Com o avanço da tecnologia os arquitetos parecem cada vez mais se distanciar dos canteiros de obra, ao contrário da prática de Lina que construía seu escritório dentro deles. Como você avalia esta presença da arquiteta durante todo o processo de construção?

Fundamental. Não é só uma questão de tecnologia, pois a tecnologia se bem empregada pode também servir ao processo de construção. O problema me parece outro, constato que no Brasil o trabalho do arquiteto hoje se reduz ao projeto, e quando muito ao projeto executivo. Em seguida se delega a responsabilidade da execução da obra a um engenheiro e/ou a uma empresa construtora, o arquiteto devendo se contentar, na maioria dos casos, com a prestação do desenho. Sem poder acompanhar o desenvolvimento da obra, e garantir assim a coerência entre o que se projeta e o que se constrói, a qualidade da mesma, dos acabamentos e dos detalhes se perde.

A situação é grave pois ao se distanciar da obra os arquitetos vão também perdendo o conhecimento dos modos de fazer e em conseqüência a capacidade de se exprimir através do desenho.

É um ciclo vicioso, resultado: muitos jovens saem da escola sem aprender a refletir sobre as conseqüências daquilo que estão desenhando, sem uma visão construtiva do desenho.

Livro "Lina Bo Bardi. Obras construídas". Image © Editora GG

No livro é evidente como “a obra de Lina Bo Bardi subverte as normas e por este mesmo motivo ela está sempre em perigo”. No entanto, suas criações são cada vez mais reconhecidas mundialmente. Você acredita que a partir de agora sua memória será melhor preservada?

Veja o livro foi publicado originalmente em 2002, desde lá vimos algumas mudanças importantes no MASP com a volta dos cavaletes, entretanto outras obras continuam sofrendo transformações, como o Unhão e o Teatro Gregório de Mattos ou permanecem sem uso, como o Quati.

Desde o lançamento do livro, a direção do MASP ganhou uma nova gestão e hoje possui um olhar mais atento ao passado do museu para construir seu futuro. Um dos pontos fundamentais desta nova era, como você disse, foi trazer de volta os cavaletes de cristal ao público. Como você avalia a importância desta ação?

Só posso felicitar esta ação, que reconhece a importância da expografia proposta por Lina Bo Bardi.

Livro "Lina Bo Bardi. Obras construídas". Image © Editora GG

Você poderia nos dizer um pouco mais sobre a correlação da obra de Lina Bo Bardi com as vanguardas da antopofagia ao surrealismo citadas no livro?

Lina via o Brasil como um país “inimaginável, onde tudo era possível”, um lugar para experimentar e amadurecer as reflexões abordadas desde a Itália mas impossíveis de levar adiante na Europa. Para ela, o Brasil possuía uma grande inteligência popular, e essa era a base que poderia constituir um verdadeiro poder de resistência, principalmente o Nordeste com sua forte tradição arcaica e popular, que irá impregnar profundamente os projetos de Lina.

Essa compreensão arcaica das coisas humanas, naturais e cósmicas, associada aos mitos, Lina comparte com uma geração de intelectuais latino-americanos do século 20, que irão propor um projeto emancipatório e original de modernidade, ligado às memórias culturais e religiosas sobreviventes à colonização ibérica. Desde sua chegada ao Brasil até finais de 1946, Lina vai identificar-se intelectualmente ao projeto formulado pelo movimento Antropofágico, o que Oswald de Andrade chamou de "uma revolução contra o postiço, contra o inautêntico", uma reação contra o brilho superficial da civilização que desvitaliza e destrói o próprio sentido da existência. 

Em Lina, o estético não se desvincula de um engajamento social, ético e político. 

O surrealismo procurou superar toda a contradição entre o lógico e ilógico, entre sonho e razão, entre realidade e imaginação ou desejo, liberando o inconsciente e, ao mesmo tempo, domando a razão. Desta forma, liberava-se da crença ideologicamente etnocêntrica e burguesa que distingue e opõe razão-desvario, dia-noite, sonho-vigília, arte erudita-arte popular, passado-presente, etc etc... A reconciliação entre elementos antitéticos é exaltada na arquitetura de Lina Bo Bardi com vazios pronunciados, percursos dilatados e expressivos elementos de reunião, circulação e passagem. Eles ajudam a compreender a necessidade de uma cohabitação solidária entre duas partes aparentemente opostas.

Motivo nuclear da obra de Bo Bardi, o intervalo ou o vazio, como elemento intermediário, é o lugar da não repressão a nenhum impulso, dentro do melhor espírito surrealista. O grande vão do MASP é um ótimo exemplo.

Livro "Lina Bo Bardi. Obras construídas". Image © Editora GG

O livro se inicia com o texto "Vão Livre", retratando como a arquitetura de Lina Bo Bardi, antes de tudo, é uma arquitetura política. Como um palco fundamental das manifestações (de diferentes opiniões) nos últimos anos, o vão do MASP se consolidou como um dos principais espaços democráticos do país. Visto a situação atual da política brasileira, você acredita que o vão volta a ser ameaçado?

Tenho esperança que o “vão” seja ocupado sempre pelo direito a vida digna e a livre expressão.

Na produção arquitetônica contemporânea, você saberia destacar alguns exemplos que seguem as linhas de Lina Bo Bardi aos quais devemos ficar atentos?

Não sei o que significa seguir as linhas de Lina, mas arquitetos como Anne Lacaton e Pierre Vassal, para mim são exemplos de uma ética do projetar que coincide com o pensamento humanista de Lina Bo Bardi.

A entrevista com Olivia de Oliveira foi realizada via e-mail no dia 28 de abril de 2018 graças à Editora GG. Agradecemos à autora do livro "Lina Bo Bardi. Obras construídas" e sua editora pelo tempo cedido e por compartilhar parte de sua sabedoria sobre o trabalho de Lina Bo Bardi conosco.

Sobre este autor
Cita: Victor Delaqua. "Uma conversa sobre Lina Bo Bardi e seu legado com Olivia de Oliveira" 14 Mai 2018. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/894100/uma-conversa-sobre-lina-bo-bardi-e-seu-legado-com-olivia-de-oliveira> ISSN 0719-8906

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