Fricções Culturais: para uma transferência das arquiteturas tradicionais à produção contemporânea

Ensina-me a viver da sua maneira para eu poder ver o mundo através do seu entendimento.
Juan Downey, arquiteto e artista chileno.

A proposta Fricções Culturais: Para uma transferência das arquiteturas tradicionais à produção contemporânea, desenvolvida pelo arquiteto chileno Samuel Bravo Silva, tem como objetivo investigar as arquiteturas tradicionais em perigo de extinção ao longo das três principais bacias hidrográficas do mundo (Amazonas, Congo e Brahmaputra), como uma relação tanto física como significativa dos povos com a paisagem.

Olhando através de determinadas construções da paisagem, o autor pergunta-se como os povos se ocupam da fricção dos espaços tradicionais com a modernidade. Sua pesquisa indaga na experiência de Juan Downey, um arquiteto chileno que, nos anos setenta, aproximou-se do povo Yanomami no Amazonas; analisa sua própria obra construída no Deserto do Atacama e na Amazônia Peruana; e finalmente tira lições das arquiteturas tradicionais, desde os entornos típicos aos bairros periféricos.

Conheça em detalhe a proposta - finalista do Wheelwright Prize 2016 (Harvard GSD)-, a seguir.

Transcrição da apresentação dos finalistas do Wheelwright Prize 2016:

Juan Downey e os Yanomami

Nos anos setenta, o arquiteto e artista chileno Juan Downey registrou o povo yanomami da Amazônia em uma obra pioneira de vídeo arte. Este registro permite conhecer não somente a relação física das pessoas com a paisagem, mas mostra também a criação da casa coletiva (shabono) como um dispositivo significante.

Entre novembro de 1976 e maio de 1977, Downney viveu com as comunidades yanomami de Bishassi e Tayeri, na parte alta do rio Orinoco. Downey experimentou, ele mesmo, a estrutura social do shabono, e descobriu nela uma instância perfeita de arquitetura invisível, leve, flexível e econômica.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

Esta imagem mostra o paradoxo das fricções culturais: um observador, que olha sua própria realidade e ao mesmo tempo cria uma nova, mediada por um mundo exterior. Disso que minha proposta Wheelwright se trata. 

A arquitetura para os yanomami tem um sentido elemental. Nela habita não somente a natureza física, mas também a forma sobrenatural que percebem o mundo. A casa encerra o espaço cotidiano e conclui um ciclo: a natureza absorve tudo o que acontece na casa, a casa fisicamente é, em si mesma, parte do lugar.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

Experiências na América do Sul: Deserto do Atacama 

Através de alguns anos praticando a arquitetura tive a oportunidade de aproximar-me de diferentes regiões do contexto sul-americano. Tem sido uma viagem que deu forma à minha visão da arquitetura e cultivado meu interesse no habitat tradicional.

Gostaria de compartilhar três experiências localizadas em regiões muito diferentes da América do Sul que estão, de algum modo, tecidas na relação da prática arquitetônica e a construção tradicional do entorno.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

No ano de 2005, um terremoto devastou o povoado de Tarapacá, no deserto do Atacama. Ainda que poucas pessoas vivessem lá por conta da economia agrícola estagnada, a cidade ocupa um lugar fundamental na devoção popular. Sua procissão anual reúne cerca de cem mil pessoas de todas as partes do Atacama, em uma peregrinação que transcende fronteiras.

Fotografias © Bernardita Devilat. Cortesia de Samuel Bravo Silva

Surpreendeu-me ver como uma cidade de 70 pessoas converte-se em cem mil. A cidade é sacudida de seu sono e volta à vida por uma semana ao ano.

Cada espaço disponível, desde o cemitério até a explanada do rio, são ocupados como acampamentos. Quando não há mais espaço disponível para veículos, o caminho se fecha e as pessoas começam a caminhar sobre a estrada, através do deserto e até o riacho. As bandas tocam suas melodias de marcha e as irmandades dançam em honra de San Lorenzo, o santo padroeiro da cidade de Tarapacá.

Fotografias © Álvaro Silva. Cortesia de Samuel Bravo Silva

Tarapacá é o teatro dessa atuação. Sua praça e suas ruas são o espaço que dá forma à procissão do santo. Este espaço público, formado por uma criação coletiva coerente ao longo do tempo, desintegrou-se pelo terremoto. Era a natureza não monumental do patrimônio, a experiência cotidiana, o mais difícil de reconstruir.

Aqui vemos a parte danificada da edificação e como isso reconfigura o vazio público da localidade.

Levantamento do Projeto Tarapacá. Elaboração: Bonomo, Burdiles, Blanc, Ojeda, Olivos. Cortesia de Samuel Bravo Silva

Como um grupo de estudantes, no começo, e arquitetos mais tarde, estávamos comprometidos com a paradoxal reconstrução de uma história insubstituível: construída durante séculos por pessoas e ofícios largamente esquecidos. 

Viajamos e construímos junto com a comunidade. Mais que um projeto singular, nosso enfoque era interpretar "valores patrimoniais", como um conjunto de qualidades abstratas que deviam trazer o contexto da produção contemporânea. O grupo Tarapacá estabeleceu uma metodologia baseada na pesquisa e levantamento de todo o povoado. Utilizamos cada ferramenta de registro disponível, desde narrações etnográficas a registros de habitabilidade e medições climáticas dos sistemas construtivos presentes.

Fotografias © Proyecto Tarapacá. Cortesia de Samuel Bravo Silva

Descobrimos nisso uma estratégia: tomar os valores patrimoniais presentes na arquitetura tradicional e entregá-los à comunidade em forma de jogo; um conjunto de regras que qualquer pessoas pode seguir para reconstruir sua parte pública e privada da cidade. Então desenvolveu-se uma estrutura modular baseada em uma unidade estrutural estável. Com este sistema criamos um projeto comunitário, com o objetivo de mostrar um exemplo que a própria comunidade poderia replicar em função de suas necessidades particulares. A Casa da Cultura de San Lorenzo chegou a reconstruir o antigo centro comunitário. A planta se organiza do mesmo modo que as casas locais, em torno a um passeio central.

Fotografia © Josefina Huidobro. Cortesia de Samuel Bravo Silva

A repetição do módulo estrutural origina uma espessura que interpreta a da parede de adobe, ainda que ao mesmo tempo reproduza sua massa térmica. Esse sistema misto resiste a terremotos e restaura a imagem danificada da construção de adobe aos olhos da comunidade. A cobertura utiliza trançado de cana, permitindo a ventilação e projetando uma trama de luz no interior. O espaço assemelha-se às antigas casas sombrias e ventiladas, cuja pesada massa de adobe é sentida sempre fresca durante as horas de calor, liberando o calor acumulado durante o dia nas noites frias. As arquiteturas tradicionais são um suporte das atividades diárias que respondem genuinamente à vida de uma comunidade.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

Dois projetos na Amazônia Peruana

Dois anos depois, em 2009, um novo projeto levou-me à Bacia do rio Ucayali, no centro da Amazônia peruana. A professora Sandra Iturriaga convidou-me a colaborar com Ani nii Shono, um centro de saúde baseado na medicina tradicional do povo shipibo. Para desenvolver e construir o projeto fui viver com eles. Então pude ver as variações do rio desde a estação seca às inundações que dão forma à paisagem. Naveguei ao longo dos cursos d'água que conectam os povos e suas economias e pude experimentar o calor úmido e as fortes chuvas. Dessa maneira comecei a compreender o habitar desse território.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

A comunidade nativa de San Francisco de Yarinacocha localiza-se tanto física como conceitualmente entre a floresta e as movimentadas atrações da cidade vizinha de Pucallpa. Ani nii Shobo, casa grande do bosque, na língua shipibo, é um centro de saúde e reserva baseada na aplicação da medicina da planta do povo shipibo.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

Para adaptar-se ao clima extremamente quente e úmido da região, os povos da Amazônia desenvolveram um sistema de regras sensível, mas específico, criando uma arquitetura que materializa uma atmosfera tradicional. As casas dos shipibo têm tetos altos feitos de folhas de palmeira com uma inclinação pronunciada que favorece o escoamento da água, ainda que o ar quente se concentre na parte superior do volume, criando uma sombra fresca e ventilada. Nesse espaço uma cobertura, que é tanto o chão como a mesa da casa, concentram-se atividades diárias, resultando em refeições e longas conversas acompanhadas dos ofícios artesanais.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

Este foi o papel que pudemos encontrar para a sala de jantar coletiva: uma casa grande shipibo. A sala de jantar pode ser completamente aberta ou fechada continuamente produzindo um terraço coberto com uma envolvente ventilada. O projeto baseia-se no uso de materiais de origem local. A lógica construtiva baseou-se na arquitetura popular, de modo que poderia ser construída por carpinteiros locais. A situação das árvores, os pontos de vista e em constante mudança níveis de água foram decisivas para implantar o programa. Margens exteriores cobertas para criar um contorno sombreado às residências e um limiar intermediário para a vida diária. As próprias paredes tendem a fundir-se com o telhado ou desaparecer em uma superposição de telas permeáveis. Em vez de espaços fechados estamos falando de interiores velados.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

Em 2013 surge a possibilidade de desenvolver outro projeto com a comunidade Shipibo. Nii Juinti, uma casa e uma escola orientada ao ensino tradicional do povo local, baseada no uso de plantas nativas.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

A medicina das plantas dos shipibo é inigualável. Constitui um valor identitário do que se sentem orgulhosos. No entanto não sentem o mesmo das arquiteturas tradicionais, que consideram pobres e privados do que vêem como uma vida melhor. O esforço que estamos fazendo não se trata de dignificar a precariedade, mas reconhecer realizações ambientais verdadeiramente notáveis de uma arquitetura elemental. Uma arquitetura que é rápida, fresca e pode transformar os materiais do entorno imediata em uma relação perfeitamente equilibrada com os elementos da natureza.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

No caso de Nii Juinti definimos uma envolvente de shebón (folha de palmeira), típica das construções locais, mas dessa vez interpretada como um manto flexível, modelado por dobras de papel. Uma espécie de "sistema paramétrico" disponível em qualquer estrutura contexto. A estrutura é composta de dobras tridimensionais construída por um sistema de suas peças que cria uma malha triangular. A geometria da manta é definida, finalmente, por ajustes da distâncias entre os vértices. Toda a estrutura contribui para a geração de uma cobertura leve. Este sistema se oferece como uma contribuição às práticas locais, renovando as profundas raízes das técnicas tradicionais, e incorporando ajustes e adaptações de um novo tipo de ofício.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

O significado da tradição: desde a villa tradicional ao bairro periférico

Para a indústria da construção - globalmente conectada ao entorno imediato - as condições locais foram desvanecendo. A arquitetura, no entanto, implica uma ligação com o contexto e mantém a busca de uma identidade material e construtiva.

As fricções culturais envolvem uma reestruturação da relação com o meio ambiente, tendendo a alterar este equilíbrio através da substituição de materiais e ofícios sustentados na tradição. As dinâmicas das arquiteturas tradicionais podem, no entanto, nutrir e re-significar o contexto urbano.

Frente às transformações, a tradição pode evoluir ou ser substituída. A evolução é, portanto, fundamental na transmissão de características culturais, e a continuidade do conhecimento tem uma estreita dependência da inovação.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

Para os recém chegados, a cara das cidades em expansão são os bairros pobres (favelas, cortiços). Portanto, é a interface do espaço tradicional com a modernidade. Um dos grandes desafios do habitat contemporâneo é o crescimento descontrolado das cidades. Isso produz espontaneamente um entorno construído em uma escala que excede em muito o âmbito de aplicação das ferramentas de projeto e planejamento de arquitetura.

Para resolver este problema, devemos penetrar na dinâmica da criação de assentamentos informais: um jogo feito às suas próprias regras. Tanto a extinção de habitats tradicionais como o aumento das periferias urbanas fazem parte do mesmo círculo, é por isso que gostaria de destacar a tensão entre essas duas polaridades, enfatizando o processo coletivo.

O que eu gostaria de pedir as pessoas que vivem lá é o mesmo que pediu Downey, ensina-me a viver da sua maneira para eu poder ver o mundo através do seu entendimento.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

Proposta

As grandes bacias hidrográficas contêm uma diversidade natural que tem alimentado formas primitivas de habitar o território. O itinerário de minha pesquisa propõe a identificação de fatores geográficos que guiam uma aproximação à cultura através do território.

Elegi três grandes bacias hidrográficas que contêm uma rica bagagem cultural contrastante com crescentes cidades modernas. A metodologia do estudo de caso é composto por duas partes:

Cortesia de Samuel Bravo Silva

Como primeiro passo vou registrar os assentamentos utilizando ferramentas gráficas e espaciais de análise proporcionadas por nossa disciplina, criando um levantamento que torne possível uma compreensão das comunidades e seus respectivos territórios.

A seguir, uma reflexão em forma de instalações arquitetônicas emergirá das percepções observadas. O que terá de ser criado, construído ou instalado, espera o despertar da oportunidade. Através desse experimento, uma dimensão espacial, material ou conceitual da cultura será analisada interagindo com as comunidades locais.

Bacia do Amazonas

Cortesia de Samuel Bravo Silva

Visitarei as comunidades Ashaninka da Reserva Comunal Asháninka perto do parque Otishi no Rio Eme, Peru. Quero viver entre eles e penetrar em seu território por seus caminhos e com sua orientação.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

As áreas urbanas da região, as cidades de Pucallpa e Atalaya, oferecerão um contraponto para as comunidades da selva. A comunidade Shipibo do rio Pisqui perto da Cordilheira Azul mantém vínculos com a comunidade de Yarina, onde eu vivi. A Comunidade Pisqui, no entanto, vive em uma região muito mais isolada, acessível apenas por barco, perto da nascente do rio.

Esta viagem completa um panorama dos povos Shipibo desde sua condição mais remota à sua expressão urbana.

Bacia do Congo

Cortesia de Samuel Bravo Silva

No rio Congo vou viajar através de uma das grandes vias navegáveis do mundo e uma ligação fundamental para o território congolês. Aqui visitarei duas cidades em crescimento da região: Kinshasa e Kisangani. Em 2025, Kinshasa será a maior cidade da África, com 16,7 milhões de habitantes. Os crescentes bairros pobres (favelas, cortiços) em áreas urbanas vão oferecer um claro exemplo de transformações culturais em uma frente de atritos.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

Enquanto isso, minha viagem buscará a etnia Mbuty da floresta Itury no Congo, e o povo Baka do Parque Nacional Boumba Bek, nos Camarões. Estas são as maiores populações de caçadores-coletores no mundo.

Desta forma, o percurso liga os dois pólos de relacionamento humano com a paisagem. Em ambos os casos vou indagar sobre a criação destes habitats.

Bacia de Brahmaputra

Cortesia de Samuel Bravo Silva

A bacia do rio Brahmaputra oferece um complexo substrato religioso simbólico e rico, integrando todo o processo de urbanização da população, desde a aldeia tradicional às periferias das grandes cidades como Dhaka, a cidade de crescimento mais rápido no mundo.

Vou observar de Dhaka ao Tibete, a criação tanto da periferia urbana, como das aldeias tradicionais, como um processo auto-organizado de produção de habitats.

Cortesia de Samuel Bravo Silva

A produção tradicional tende a incorporar dinâmicas coletivas criativas desenvolvidas ao longo do tempo. O papel dos arquitetos pode variar desde o conceito do projeto arquitetônico até operar como um fator no âmbito de um processo comunitário. Decifrar os parâmetros implícitos na tradição: as possibilidades de artesanato e tectônica, o papel da cultura e da paisagem, amplia o âmbito da arquitetura nas dinâmicas informais. O próprio conceito dessas dinâmicas torna-se uma questão de projeto e fonte para repensar a produção arquitetônica contemporânea. Esta é talvez ainda mais importante, considerando que estamos entre os últimos que poderão observar muitas tradições vivas que estão agora ameaçadas.

Seja em uma tribo amazônica isolada ou em uma periferia urbana globalizada, a maioria da população do mundo vive em habitações construídas informalmente pertencente a algum tipo de processo de construção tradicional. O conceito de "projeto" muitas vezes é alheio a estes habitats. Penetrar essas dinâmicas, aprender com elas e operar nesses ambientes é o desafio que enfrentamos.

Sobre este autor
Cita: ArchDaily Team. "Fricções Culturais: para uma transferência das arquiteturas tradicionais à produção contemporânea" [Fricciones Culturales: hacia una transferencia de las arquitecturas tradicionales a la producción contemporánea] 25 Ago 2016. ArchDaily Brasil. (Trad. Souza, Eduardo) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/794010/friccoes-culturais-para-uma-transferencia-das-arquiteturas-tradicionais-a-producao-contemporanea> ISSN 0719-8906

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