Uso não se tomba

Nos idos dos anos 40, enquanto diretor da Divisão de Estudos e Tombamento do IPHAN, Lucio Costa mandou seus servidores a campo para identificar o patrimônio cultural que estaria espalhado Brasil afora, esperando ser descoberto.

“Quem”, “quando” e “como” eram as perguntas que seus assistentes levavam na manga. Supostamente, elas deveriam descortinar as características dos bens analisados, para então separá-los em dignos ou não dignos de tombamento.

As perguntas de Lúcio Costa eram todas voltadas às origens do bem que se analisava. “Quem fez, como fez, quando fez” cravava um ponto específico no espaço-tempo, o momento imaculado da criação. Ou seja, pouco importava o acúmulo de historicidade provocado pelo seu uso e apropriação no tempo.

As três perguntas provocavam um verdadeiro achatamento da história. Curiosamente, inclusive, o arquiteto aconselhou que historiadores não fossem a campo fazer esse trabalho, porque se perderiam em lateralidades distantes das supostas respostas objetivas que se buscava encontrar.

Essa anedota relata um dos documentos técnicos produzidos por Costa na sua longeva atuação no IPHAN – a biografia de ambos, arquiteto e instituição, se confunde. Não é o caso aqui de provocar olhares anacrônicos sobre a atuação de Lúcio Costa. 

De todo modo, esse relato é testemunho das bases sobre as quais se construiu a política de preservação no Brasil: olhando para a origem, olhando para a matéria. Não é à toa que nosso patrimônio cultural historicamente tem se confundido com a  história da arquitetura.

“Quem, quando, como”. Pouco ou nenhum espaço há para os usos e apropriações do bem, no presente. Evidente que isso aos poucos se transformou num grande problema para o campo do patrimônio, em especial no pós Constituição de 1988, que expandiu a compreensão dos bens culturais ao incorporar noções de memória, formas de expressão, modos de viver, numa construção coletiva da política de preservação entre Estado e sociedade civil.

O tombamento, instrumento jurídico que protege a materialidade de bens móveis e imóveis, serviu bem à política de preservação enquanto ela era apenas materialidade. Trazer vozes dissonantes e apropriações complexas e transformadoras para o campo trouxe consigo um problema de instrumento.

Como preservar e valorizar o tempo em movimento, o palimpsesto, os usos? São vários os ajustes de rota que passam a surgir, sendo o principal deles a política de preservação do patrimônio imaterial, pioneiramente instituída no Brasil em 2000.

Cada vez mais a sociedade tem se dado conta de que por trás de tudo aquilo que escolhemos preservar, está tudo aquilo que decidimos esquecer. E se o patrimônio é fruto de uma atribuição de valor, e se esta é sempre um ato subjetivo, então todo patrimônio é um ato político.

Nessa toada, têm crescido cada vez mais os debates sobre preservação e valorização de usos, os quais pressupõem relações de pertencimento.

Em cidades vibrantes e autofagocitantes como São Paulo, o debate ganha especial notoriedade. A cada dia, um novo lugar de pertencimento para um território e/ou um grupo de pessoas ameaça ser fechado e/ou destruído.

No furor coletivo de querer ver preservado determinado uso, recorre-se a um dos poucos instrumentos capazes de jogar uma pá de cal na disputa pelo espaço urbano: o tombamento.

No passado recente, o caso pioneiro foi o do Cine Belas Artes, que ia fechar as portas por uma simples questão comercial: o proprietário ajustou o aluguel, e a manutenção do cinema ficou inviável. Reajustes de preços de locação, vendas de imóveis, falências, disputas judiciais. Essas são algumas das diversas facetas em torno dos casos similares ao Belas Artes: Espaço Itaú de Cinema na Augusta, Livraria Cultura, Ó do Borogodó, pra dizer alguns.

Todos esses casos envolvem uma frustração de parte da sociedade com o iminente encerramento das atividades desses estabelecimentos, que aos poucos se constituíram como verdadeiros marcos simbólicos e afetivos do território. 

Mais do que preservar a materialidade desses espaços, o anseio é pela preservação do uso. Mas como fazê-lo? Com o tombamento? Não. Porque uso não se tomba.

O instituto do tombamento está voltado para a preservação de bens materiais. Não há interpretação em disputa. Mas na onda da insatisfação com as mudanças dos usos dos espaços na cidade, o tombamento é visto como o bastião da salvaguarda e muitos têm reforçado essa leitura absolutamente equivocada.

Muito influenciado pelo caso do Cine Belas Artes, o Plano Diretor de 2014 criou, em São Paulo, as chamadas Zonas Especiais de Preservação Cultural – Área de Proteção Cultural (ZEPEC-APC), que buscam preservar imóveis de fruição cultural, bem como espaços com significado afetivo e simbólico.

Vê-se que as ZEPEC-APC estão centralizadas no uso e na apropriação dos espaços pelos sujeitos. Trata-se de interessante tentativa de se escapar do sedimentado “quem”, “quanto” e “como”. É realmente um instrumento intrigante, desenhado dentro do planejamento urbano. Mas é preciso falar um pouco mais sobre ele.

Em primeiro lugar, enquadrar um bem ou lugar como ZEPEC-APC não é tombar. E que bom! Imagine você usar os parâmetros do tombamento para preservar o uso. Uma grande incoerência, colocar numa moldura o que, por essência, é fluido. Mas esse debate já tem sido feito de forma madura no campo do patrimônio imaterial – como salvaguardar saberes-fazeres sem impedir sua essência dinâmica?

Ocorre que a regulamentação da ZEPEC-APC traz consigo a previsão de que, reconhecidos como tais, os lugares só poderão alterar seu uso ou descaracterizar sua materialidade mediante autorização do órgão competente.

Instrumento instigante, mas que meteu os pés pelas mãos. Quis preservar uso com requintes de tombamento, e acabou por se tornar um ornitorrinco de difícil execução. Tanto é que há apenas uma ZEPEC-APC reconhecida na cidade, vejamos: o próprio Cine Belas Artes.

A dificuldade histórica de se valorizar o uso nas políticas de preservação continua de pé e evidencia a disputa pela produção do espaço urbano. Nesse processo, sempre voltamos ao bom e velho tombamento. Mas ele não é resposta para tudo. Ao menos não deveria ser.

Incentivar usos e apropriações dos espaços e territórios deve ser ato contínuo, política pública engajada – e a ZEPEC-APC pode ser parte dela – que pensa desde o direito e o acesso à cidade, passando pela valorização e abertura para o dissonante e contra hegemônico, até chegar em questões de financiamento e sustentabilidade econômica e social. 

O uso e as apropriações de um bem devem ser critérios centrais na análise da pertinência de um tombamento. Mas o uso não deve ser tombado. Que a gente possa preservar os sambas e os cinemas com políticas culturais e sociais, e que a gente também possa disputar e incorporar aos nossos usos do presente as transformações da cidade.

Via Caos Planejado.

Sobre este autor
Cita: Vivian Barbour. "Uso não se tomba" 08 Jan 2024. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1011071/uso-nao-se-tomba> ISSN 0719-8906

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