Construindo paredes com restos de demolição: a poesia do concreto ciclópico

As antigas paredes ciclópicas eram construídas por pedras brutas sobrepostas, apoiadas uma sobre a outra, sem a utilização de argamassa. Seu nome deriva dos ciclopes, os gigantes da mitologia grega, já que sua construção exigiria um esforço sobre-humano por conta do peso e da dificuldade de erguer e encaixar cada uma das peças. O concreto ciclópico, por sua vez, mescla esta técnica construtiva antiquíssima aos materiais e técnicas contemporâneas. O que o diferencia do concreto tradicional é essencialmente o tamanho do agregado graúdo: tradicionalmente pedras, mas que também podem ser tijolos ou restos de concreto. Em nossa seção de projetos, temos observado alguns exemplos desta técnica construtiva que, diferentemente dos ciclopes, carrega explicitamente as marcas dos trabalhadores que a construíram. Conversamos com Rafic Jorge Farah, do escritório São Paulo Criação, sobre sua experiência com esta técnica em obras recentes.

É o caso da Residência Rua Pombal, onde os escombros da demolição anterior tornaram-se a principal matéria-prima das novas paredes. Construtivamente, a técnica também assemelha-se ao concreto armado tradicional: Uma forma de madeira recebe o concreto líquido junto aos agregados graúdos volumosos, evidenciando os materiais distintos que a compõe quando desformados posteriormente. Conforme a descrição deste projeto, “As paredes saíram cada uma com uma textura diferente à medida que desenvolvíamos a maneira de erguê-las. Algumas caiadas, outras não, são memórias daquilo que existiu."

Paredes vivas, cheias de informação. Isso surpreende os passantes e, talvez, os faça pensar na sustentabilidade evidente nessas paredes de escombros, que trazem reminiscências da antiga casa.

Construindo paredes com restos de demolição: a poesia do concreto ciclópico - Imagem 2 de 9
Residência Rua Valênça / São Paulo Criação. Image Cortesia de São Paulo Criação

Fragmentos de histórias

De fato, a parte da memória é levantada por Rafic em diversos momentos, como inspiração para utilizar o concreto ciclópico: “Quando menino, havia uma série de demolições em São Paulo. Nessa época meu pai montou seu primeiro restaurante com restos de demolições dos casarões na Avenida Angélica e Consolação, que estavam sendo alargadas. Mais tarde, na Itália, olhava aquelas casas edificadas sobre ruínas e com ruínas. Quantas histórias como a minha elas teriam presenciado. Ruínas de diversas eras."

E se aqueles fragmentos trouxessem fragmentos de histórias que presenciaram, de gente que já se foi, e outras tantas habitando ali, aquela arqueologia, como se naquelas paredes com materiais reutilizados diversas vezes, trouxesse muitas vozes, muitas imagens?

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Residência Rua Pombal / São Paulo Criação. Image © Massimo Failutti

A atuação da mão de obra

Segundo o arquiteto, outro fator importante desta técnica construtiva é a parte pedagógica e como a mão-de-obra responsável tornou-se atuante no processo. “(A recepção da técnica construtiva) foi muito divertida. Estranharam, mas aprenderam rápido e, em seguida, começaram a separar fragmentos para evidenciar em determinados espaços. Logo as coisas andavam sozinhas; eu aparecia na obra pra ver o que eles haviam criado.”

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Residência Rua Valênça / São Paulo Criação. Image Cortesia de São Paulo Criação

A construção como agente de mudança

Perguntado sobre como a indústria da construção pode ser um vetor de mudanças em uma época em que precisamos ser conscientes do impacto ambiental de nossas escolhas, Rafic traz uma visão interessante: "Primeiro, (é preciso ao arquiteto) entender de obra e - parece absurdo afirmar isso - mas o mais importante é conhecer as pessoas a trabalhar no canteiro. Essa gente tem histórias; passamos por elas sem dar a menor bola. Há um século já, estão a erguer essa cidade em que vivemos. Primeiro a indústria tem que se humanizar, depois, sustentabilizar.“

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Residência Rua Pombal / São Paulo Criação. Image © Massimo Failutti

Mas uma escolha de projeto como essa pode de projeto pode representar uma redução no impacto ambiental de uma obra como essa. Neste projeto foram evitados que dezenas de caminhões para descarregar entulho circulassem pela cidade e, outros tantos trouxesse tijolos. Economizou-se dinheiro, tempo e poupou-se a poluição causada pelos combustíveis fósseis. 

“Entulho, pedra, madeira, concreto e a cristalinidade do vidro. Um material enaltece o outro. Algumas demolições são imprescindíveis, mas a maioria é um desperdício de energia, despreza o esforço de muita gente, despreza a matéria prima extraída da natureza e a devolve ao ambiente como lixo.

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Residência Rua Pombal / São Paulo Criação. Image © Massimo Failutti

Além de ser sustentável para o planeta, a reutilização de materiais mantém a história viva, como Rafic enaltece. Reduzir, reusar e reciclar: a indústria da construção deve e já vem mudando para se adaptar às necessidades dos novos tempos. Diversos materiais podem ter uma sobrevida mais digna do que serem descartados como resíduos. Como o conceito de mineração urbana pressupõe, muitas das matérias-primas não estão mais em sua fonte original, mas em novos repositórios antropogênicos, sobretudo em edifícios. Entender o estoque construído das nossas cidades como depósitos intermediários de materiais pode contribuir para práticas mais ecológicas da construção civil.

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Residência Rua Pombal / São Paulo Criação. Image © Massimo Failutti

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Sobre este autor
Cita: Eduardo Souza. "Construindo paredes com restos de demolição: a poesia do concreto ciclópico" 07 Set 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/987172/construindo-paredes-com-restos-de-demolicao-a-poesia-do-concreto-ciclopico> ISSN 0719-8906

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