Vivendo nas alturas: por que gostamos tanto de coberturas e rooftops?

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Projeto "The Podium". Imagem © MVRDV

Com as cidades cada vez mais verticalizadas, os edifícios têm encontrado formas de aproveitar as vantagens que as coberturas podem trazer em meio à vida urbana. Por meio de salões para festas, restaurantes, piscinas, e outros programas, a arquitetura contemporânea têm conseguido acesso à luz do sol, à ventilação natural e também à um horizonte a partir da ocupação das coberturas, tornando-as um atrativo comercial para empreendimentos residenciais e comerciais. Mas, o interesse em apreciar a cidade desse ponto de vista não é fruto apenas da verticalização, tampouco uma alternativa meramente técnica. 

Mark Dorrian lembra, em seu ensaio The aerial view: notes for a cultural history, que, para Freud, a transição para a verticalidade da espécie humana é um momento crítico da nossa evolução cultural, uma consequência de quando o homem se ascendeu do chão, erguendo assim os olhos e expondo a sua genitália. Esse argumento aponta como a mudança de perspectiva do ser humano pode despertar uma série de reflexões que compõem nosso entendimento de mundo. Deslocar-nos do chão ao alto, mudar nosso ponto de vista para ampliá-lo e buscar maior alcance, é um hábito humano, uma ferramenta, da qual tiramos vantagens.

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© Photo by Yiran Ding on Unsplash

Historicamente, o conceito de se posicionar ao alto é amplamente utilizado na lógica militar, como artifício de controle do território, de proteção e também de ataque. Castelos estão normalmente localizados em pontos altos e estratégicos, de maneira que consigam ver seu entorno e levantar as defesas quando necessário. Fortalezas costumavam ter torres mais altas de onde se fazia a vigília. Também nessa lógica, as igrejas e os templos religiosos se posicionavam nos pontos mais altos das cidades, não somente como ferramenta de defesa e controle da população, mas também como demonstração de poder, de conexão com o céu, de onde acredita-se estar mais perto dos deuses.

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© François Philipp via wikicommons

A relação entre a vista aérea e o poder se revela a partir de arquiteturas históricas. Em grandes palácios, por exemplo, o palanque principal sempre se dá ao centro, em um ponto alto, de preferência de frente a uma grande esplanada, de onde o líder pode observar com segurança a multidão. Além disso, nas mansões, palácios e palacetes dos séculos XIX e XX, a área dos empregados, bem como as senzalas das casas coloniais, costumavam ficar nos pavimentos mais próximos ao térreo e contavam com acessos desvinculados da entrada principal dos aristocratas, enquanto as acomodações dos proprietários donos das casas sempre ficavam nos pavimentos mais altos, com mais luz e vistas de toda a propriedade. 

À medida que as cidades foram se complexificando e verticalizando, essa lógica também foi se reproduzindo dentro do tecido urbano. Os grandes arranha-céus se tornaram um símbolo de desenvolvimento, poder econômico e político. O Empire State, construído na década de 1930 nos Estados Unidos e conhecido por ser o primeiro grande arranha-céu do mundo, desde o princípio tem em seu topo um mirante, de onde a população podia se deslumbrar com a vista da cidade de Nova York. Binóculos e lunetas permitiam uma aproximação aos detalhes da cidade abaixo. Com a ascensão do capitalismo, surge, junto da verticalização, uma nova vantagem: desfrutar do interesse pela perspectiva aérea e torná-la mercadoria; vender a vista, transformando-a em entretenimento.

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© Image via Wikimedia (Domínio Público). ImageUnder construction

A perspectiva aérea soma motivos de sua apreciação: é um lugar exclusivo, da onde o sujeito está protegido e tem visão de todo o território, de onde se aproxima de Deus e tem a sensação de controle, ou visão, da totalidade, dando poder a quem dali analisa seu entorno. Michel de Certeau, em seu livro A invenção do cotidiano. Artes de fazer, narra uma visita ao antigo World Trade Center, que sintetiza nossa relação às alturas: 

O corpo não está mais enlaçado pelas ruas que o fazem rodar e girar segundo uma lei anônima: nem possuído, jogador ou jogado, pelo rumor de tantas diferenças e pelo nervosismo do tráfego nova-iorquino. Aquele que sobe até lá no alto foge à massa que carrega e tritura em si mesma toda identidade de autores ou de espectadores. — Michel de Certeau, A invenção do cotidiano

Para Certeau, ao sair de baixo, das ruas, calçadas e multidões, e ir para a cobertura, o alto, ganha-se uma perspectiva externa, observadora da cidade, um voyeur elevado. Ele acrescenta que a vista aérea é “em suma um quadro que tem como condição de possibilidade um esquecimento e um desconhecimento das práticas”. Assim, nossa contemplação pelas vistas aéreas e skylines das grandes cidades respondem também a uma necessidade humana de respiro, de mudança de perspectiva, de poder se ver fora da massa, e observá-la como objeto.  

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© Photo by Eugene on Unsplash

Ao mesmo tempo que isso é uma característica humana, é também uma ferramenta que serve para se distanciar dos problemas urbanos e sociais só vistos e vividos “embaixo”. É difícil descer quando se está no alto. Não à toa os apartamentos de cobertura são os mais valorizados, e os restaurantes, dedicados a públicos exclusivos, sempre ligados à parcela mais rica da sociedade, distanciando essas camadas das vivências cotidianas do tecido urbano. O destacamento é, contudo, ilusão, e essa perspectiva elevada faz também parte da cidade e seus problemas. Posicionar-se como este ponto que tudo vê, diz Certeau, é "a ficção do saber."

Referências

DORRIAN, Mark, 2007. The aerial view: notes for a cultural history.

CERTEAU, Michel de, 2014. A invenção do cotidiano. Artes de fazer.

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Sobre este autor
Cita: Giovana Martino. "Vivendo nas alturas: por que gostamos tanto de coberturas e rooftops?" 22 Jul 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/984329/vivendo-nas-alturas-por-que-gostamos-tanto-de-coberturas-e-rooftops> ISSN 0719-8906

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