Exibicionismo e reclusão: o complexo Glass House de Philip Johnson e David Whitney

A Glass House situada na Ponus Ridge Road, New Canaan – Connecticut, foi projetada e construída, no final dos anos 1940, para ser a morada de seu autor, o arquiteto Philip Johnson. Considerada um ícone da arquitetura moderna, suas características exploram os limites entre interior e exterior. Um ano após a sua conclusão, a sua mimese, Brick House, foi construída, 25 metros à frente com o mesmo comprimento, porém metade da profundidade da casa de vidro.

No lote onde está situada a Glass House, uma gleba de 49 hectares, existem outras 14 estruturas, construídas por Johnson e seu marido, David Whitney. Várias dessas serviam para abrigar a coleção de arte de Whitney, que contava com quadros de Andy Warhol, Jasper Johns, Frank Stella e muitos outros ícones do século XX. O terreno onde estão tais estruturas pode ser entendido como um laboratório, no qual Johnson experimentava os diferentes modos de morar, explorando as facetas da domesticidade. Johnson e seu marido residiram nas construções espalhadas pelo lote de 1960 até a morte de ambos em 2005.

O termo “complexo”, empregado no título, faz referência não só ao conjunto de espaços distribuídos no terreno – como um parque temático arquitetônico – mas também à complexidade de seus dois moradores, igualmente importantes para a compreensão da análise proposta. Existem poucos estudos sobre moradas que fogem de um padrão heteronormativo e o caso de Johnson e Whitney, dada a época, flerta com ideais conservadores enquanto propõe maneiras radicais de pensar o habitar.

A casa de vidro foi projetada pelo arquiteto estadunidense entre 1945 e 1948, inspirado nas obras de seu então mentor, Mies Van der Rohe. O projeto foi a pauta de sua dissertação de mestrado, orientada por Marcel Breuer, em Harvard e a obra pode ser considerada a primeira inteiramente vedada com vidro, já que a Casa Farnsworth, de Mies, apesar de projetada anteriormente, foi concluída somente em 1951. É interessante observar este projeto doméstico na constelação de outras casas ícones do movimento moderno. Várias delas — sabemos hoje — foram consideradas inabitáveis pelos seus clientes, especula-se no meio, que o sucesso da casa de New Canaan se deu ao fato de ser a residência de seu próprio autor, isentando-a de quaisquer repercussões negativas.

Existe um embate entre as teorias de modernidade e a cultura doméstica, o moderno celebra o movimento e a mobilidade, enquanto o lar frequentemente remete à ideia de privacidade, refúgio e conforto (HOLLOWS, 2008). Em 1949, a Glass House foi publicada na revista Life, conhecida como a grande propagandista da vida do homem moderno, relatou que o espaço consistia de “um grande quarto completamente envolto pela paisagem” e retratou que, “Johnson gostava de construir casas extremamente modernas e testar-se habitando nelas”. (LIFE,1949, p. 94). 

A Glass House se levanta por estruturas metálicas e é vedada completamente por chapas de vidro que vão do chão ao teto, assim, é possível ver não só reflexo do exterior na fachada, como também o interior e o que está atrás. Johnson chegou a chamar a paisagem de um “papel de parede muito caro”, pois as árvores e o jardim cobrem a visão do horizonte. O interior da residência é completamente exposto para o lado de fora, com exceção de um largo cilindro de tijolos que abarca a lareira e o banheiro. Há espaços de jantar, estar e dormir e suas poucas divisões são feitas por armários e estantes baixas, criando um grande ambiente interconectado, que segue uma lógica projetual Miesiana. O revestimento do piso é feito de tijolos avermelhados no padrão “espinha de peixe”, enquanto o teto é de concreto aparente.

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Glass House #3, 2012. Image © Mauro Restiffe

Os móveis da casa são minimalistas, feitos de couro e metal, em sua maioria, desenhados por Mies van der Rohe. Contracenam também no espaço obras de arte, incluindo uma escultura de Elie Nadelman sob um pedestal quadrado e uma pintura do século XVII, de Nicolas Poussin, retratando uma paisagem. A mesma está apoiada num fino cavalete metálico bípede, disposto no espaço de modo que sua base encontra a linha do horizonte exterior. Armários de madeira com diversas portas permitem uma certa privacidade para o quarto em relação à sala, onde, além da cama, há somente uma mesa de metal desenhada por Van der Rohe. O layout faz jus a máxima de Johnson: “escolha poucos objetos e coloque-os de maneira precisa”. A iluminação na casa se dá de maneira indireta – no chão, ao longo das colunas metálicas, há cilindros tubulares de mesmo material, com lâmpadas que iluminam o ambiente seguindo o ritmo estrutural da residência.

A existência dessa grande sala aberta completamente exposta à paisagem ilustra certos aspectos da relação afetiva de Johnson e Whitney. Para compreendermos melhor o habitar numa casa nada usual, é necessário também permear a vida pessoal de seus moradores. Johnson conheceu seu parceiro em 1960, após ser convidado para palestrar em Yale, onde Whitney estudava. Lá, o arquiteto o convidou para um tour na casa de vidro, pouco tempo depois, começaram a morar juntos ali, onde viveram até a morte de ambos em 2005. Podemos perceber como a casa de New Canaan foi palco e protagonista do relacionamento do casal, de 1960 a 1994, viveram sua relação em um “segredo aberto”, ou seja, algo secreto às aparências ou de conhecimento restrito, mas na prática, amplamente conhecido, brincando com os limites entre o exibicionismo e a discrição.

É instigante tentar entender como esse espaço exposto ao exterior incita uma performance. Ao visitar a casa em uma das muitas festas que Whitney e Johnson organizavam, o pintor Jasper Johns afirmou que não acreditava que qualquer desordem era permitida ali, e completou “todos estavam sempre atentos à sua elegância implacável”. Na afirmação, podemos perceber como a arquitetura minimalista da residência pode condicionar o comportamento de quem a habita (SILVA E FERREIRA,2017). Não à toa, o espaço era muito usado socialmente, a casa já recebeu performances de Merce Cunningham, um concerto do Velvet Underground, e convidados ilustres como Andy Warhol, John Cage e Rauschenberg.

Como já mencionado, a casa sugere um certo exibicionismo, não há cortinas ou persianas, um invasor poderia facilmente ver o casal em suas tarefas mundanas, relacionando-se sexualmente ou cozinhando o jantar. Ao ser questionado sobre as vedações que podem ser atravessadas com o olhar, Johnson responde: “a ideia de uma casa de vidro, onde alguém pode estar te olhando — naturalmente você não gostaria que isso acontecesse. Mas e aí? Aquela pequena sensação de estar na beira do perigo…”. (LEWIS, 1994, p. 49).

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Glass House #4, 2012. Image © Mauro Restiffe

Como uma válvula de escape do radicalismo e racionalidade propostos pela Glass House, a Brick House foi construída apenas um ano após a finalização de sua antagonista, no mesmo lote, 25 metros à frente. Raramente vista em revistas de arquitetura, a casa fica localizada de forma adjacente à casa de vidro, não transparente, conta com uma vedação de tijolos como o próprio nome sugere. É dividida em dois cômodos e um banheiro, dentre eles, um grande quarto de hóspedes e uma sala de leitura e estudos. Em uma de suas poucas aparições em veículos midiáticos, a casa é intitulada Guesthouse, pela revista Life, em 1949.

O piso do quarto de hóspedes é revestido com carpete rosado, suas paredes são cobertas por tecidos pintados em tom rosa claro, similar ao do carpete – com detalhes em verde e uma estampa em padrão na cor dourada – quase como um papel de parede, mas diferentemente, o tecido pode ser mais acolhedor pela sua textura, materialidade e calor. Com um teto arqueado, abobadado e apoiado em pilares triangulares, cria-se um ambiente envolto e aconchegante, remetendo à ideia de casulo, que escapa da exposição do espaço moderno. Todas as escolhas feitas na ambientação da Brick House visam à construção de um microcosmos confortável e privado.

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Glass House #5, 2012. Image © Mauro Restiffe

A sala de leitura também é envolvida por um carpete, dessa vez, roxo escuro, e composta por estantes que abrigam os livros e cadeiras acolchoadas bicolores e vibrantes. A casa, conta com somente três janelas circulares, seu banheiro tem uma entrada de luz zenital e é inteiramente revestido com peças de mármore preto, com veios brancos e vice-versa.

A construção opaca contempla todas as demandas domésticas de conforto, acolhimento e privacidade, manifestando as carências do espaço puramente moderno expresso na casa transparente, dessa forma, era lá que o casal passava grande parte do tempo, onde dormiam e estudavam. A casa de vidro poderia ser entendida como um showroom, onde o intuito era ver e ser visto, uma casa para eventos e receber convidados, onde todos que nela penetram, performam uma conduta social.

Por meio de uma análise espacial da casa de vidro, de sua adjacente de tijolos e da vida privada do casal, podemos questionar as diversas facetas do ambiente doméstico. Abordando as esferas do público e privado, explícito e íntimo, considerando a premissa das casas como ambientes performáticos – com caráter de palco para os corpos que as habitam – a relação entre as casas ilustra a discussão de como os ideais modernos muitas vezes não suprem as demandas de conforto doméstico.

Sendo assim, o complexo Glass House envolve, além de exibicionismo e reclusão, performance, carências e necessidades. As duas construções se alimentam de suas faltas, como se a precisão e o rigor da casa transparente compensassem a opacidade da outra, assumindo um papel mediador nos comportamentos e relações. Philip Johnson e David Whitney são indissociáveis de suas residências.

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Glass House #6, 2012. Image © Mauro Restiffe

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Bibliografia
HOLLOWS, Joanne. Domestic Cultures. 1ª. ed. [S. l.]: Open University Press, 2008.
LANGE, Alexandra. Philip Johnson’s Not Glass Houses. NY Times, [S. l.], p. 222, 13 fev. 2015. Disponível em: https://www.nytimes.com/2015/02/13/t-magazine/philip-johnson-david-whitney-glass-house.html. Acesso em: 3 fev. 2022.
LEWIS, Hilary et al. Philip Johnson: The Architect in His Own Words. 1ª. ed. [S. l.]: Rizzoli, 1994.
LIFE. Glass House. LIFE , [s. l.], p. 94-96, 26 set. 1949. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=IkkEAAAAMBAJ&printsec=frontcover&redir_esc=y#v=onepage&q&f=false. Acesso em: 3 fev. 2022.
PETTY, Margaret. The Edge of Danger”: artificial lighting and the dialectics of domestic occupation in Philip Johnson‘s Glass and Guest Houses. 2009. X (X) - Victoria University of Wellington, New Zealand, x. Disponível em: https://eprints.qut.edu.au/95074/11/95074.pdf. Acesso em: 3 fev. 2022.
PHAIDON. Philip Johnson, the Glass House, and its dark secrets. PHAIDON, [s. l.], 10 mar. 2020. Disponível em: https://de.phaidon.com/agenda/architecture/articles/2020/march/10/philip-johnson-the-glass-house-and-its-dark-secrets/. Acesso em: 3 fev. 2022.
SILVA, J. M. de C. e; FERREIRA, P. B. S. Os sentidos do morar em três atos: representação, conforto e privacidade. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, [S. l.], v. 24, n. 44, p. 68-87, 2017. DOI: 10.11606/issn.2317-2762.v24i44p68-87. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/posfau/article/view/118341. Acesso em: 3 fev. 2022.
THE GLASS House. Disponível em: https://theglasshouse.org. Acesso em: 3 fev. 2022

O presente ensaio e pesquisa são frutos de um exercício proposto na disciplina “História da técnica, teoria e crítica da arquitetura e paisagismo” mediada pelo professor Pedro Beresin, no decorrer do 3º ano do programa de graduação da instituição Escola da Cidade, no ano de 2020.

Helena Ramos é estudante de arquitetura e urbanismo na Escola da Cidade, tem grande interesse por moda, design, desenho e fotografia. Procura articular essas diversas frentes, transitando na intersecção dos campos artísticos e arquitetônico.

Rafael Baumer é estudante de arquitetura e urbanismo na Escola da Cidade, tem interesse em torno dos temas do campo ampliado da arquitetura, sexualidade e arte contemporânea.

Mauro Restiffe utiliza a fotografia analógica como suporte singular de sua produção desde o final da década de 80. A arquitetura perpassa esses assuntos como palco da vida privada, em momentos precisos e detalhes inesperados, e da vida pública, de um ponto de vista que amplifica e reverbera o simples registro histórico. A granulação característica do artista faz com que suas imagens sejam dotadas de uma temporalidade ambígua, entre o presente e o passado.

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Sobre este autor
Cita: Helena Ramos e Rafael Baumer. "Exibicionismo e reclusão: o complexo Glass House de Philip Johnson e David Whitney" 01 Abr 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/977961/exibicionismo-e-reclusao-o-complexo-glass-house-de-philip-johnson-e-david-whitney> ISSN 0719-8906

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