Conflito e espaço democrático: entrevista com os curadores de Portugal na Bienal de Veneza 2021

Em um mundo que se apresenta cada vez mais polarizado e pouco tolerante em relação às diferenças, a contribuição portuguesa ao tema da Bienal de Arquitetura de Veneza – como viveremos juntos? – lança luz sobre o espaço público enquanto palco de forças opostas, confronto de ideias e coexistência social. Intitulada In Conflict, a participação de Portugal tem curadoria de Carlos Azevedo, João Crisóstomo e Luís Sobral, do escritório depA architects, com participação de Miguel Santos como curador adjunto.

Conversamos com os curadores sobre alguns aspectos centrais da mostra e do ciclo de debates que propõem – democracia, conflito e oposições de ideias no espaço urbano.

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Romullo Baratto (ArchDaily): In Conflict estabelece, de partida, que o espaço público é palco de atuação de forças opostas inerentes à democracia. Ao mesmo tempo, temos visto e presenciado no mundo todo situações de polarização política e social cada vez mais intensas. Nesse cenário de polarização extrema, qual o papel do espaço público? É possível ainda falar em espaço democrático?

depA Architects: O que nos interessa abordar nesta curadoria é precisamente a construção do espaço democrático. Pondo em hipótese que todos nós assistimos hoje ​à colocaç​ão em causa – pela vontade de certas forças – da sua validade, bem como da construção da ideia da sua possível falência, interessa-nos discutir a pertinência do espaço democrático como projecto comum. O que assistimos com regularidade é a uma polarização de qualquer tipo de discussão de ideias ou acções, resultado muitas vezes de políticas de silenciamento ou de falsos consensos.

Urge, portanto, repensar o espaço democrático enquanto um espaço que, no sentido agonístico, permita a comunicação e a coexistência mesmo entre ideias opostas.

Por outras palavras, queremos revalidar este entendimento enquanto espaço de confronto e diálogo, que permite o equilíbrio entre essas polarizações, a exposição de ideias contrárias, e a construção de algo comum.

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Foto © depA architects

RB: Sobre a questão colocada por Hashim Sarkis – ​Como viveremos juntos?​ – vocês deixam entender que a resposta é "em conflito", isto é, "podemos viver juntos, mas em conflito". Nesse sentido, parece que a ideia de uma suposta vida harmônica em sociedade é relativizada ou filtrada pela ideia de conflito. Poderiam falar um pouco sobre isso?

depA: No teatro, a palavra conflito refere-se à encruzilhada narrativa de personagens, tempo e espaço criada sobre um palco. Conflito é, portanto, acção. No âmbito da nossa curadoria, e no sentido que lhe damos, conflito carrega este significado, não uma tónica beligerante ou destructiva. Pelo contrário, transporta-nos antes para essa ideia de acção ou, aplicado à arquitectura e ao espaço democrático, à ideia de arena de debate. A tradução mais próxima desta noção de “in conflict”, em português, seria “em confronto”, porque parte precisamente dessa premissa do confronto de ideias dentro do espaço democrático.

É nesse espaço de dissenso que encontramos o lugar da arquitectura enquanto disciplina pública que pensa e transforma directamente o espaço físico que habitamos.

Por ser uma disciplina transversal a tantos arcos – da história à sociologia, da política à economia – define-nos e constrói-nos colectivamente. Está permanentemente em processo, é um projecto inacabado. Qualquer resposta encontrada nunca será final nem definitiva e, por isso mesmo, permanece em conflito.

Mais do que uma possibilidade, viver em comum é uma contingência inevitável à qual temos que dar resposta, com todos os desafios e obstáculos inerentes que esta necessidade implica. Os grandes avanços da humanidade na construção deste espaço comum são fruto de uma cooperação feita a partir do debate crítico de ideias alternativas. E hoje, mais do que nunca, é importante continuarmos a aprender com isso.

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RB: A participação portuguesa será dividida em duas partes, exposição e debates. Sobre a mostra, vocês tratam do período da democracia portuguesa a partir de sete processos marcados por destruição material, deslocação social ou participação popular. Poderiam falar sobre a escolha destes processos?

depA: Uma das mensagens que a nossa curadoria quer passar é a de que a arquitectura tem que ser entendida enquanto uma disciplina de interesse público, com capacidade para transformar o mundo em que vivemos, para melhor. Queremos que essa mensagem seja clara e acessível a todos, não só aos arquitectos. ​Para isso, optámos por procurar ver a arquitectura de uma forma menos disciplinar, desde logo através da selecção de um conjunto alargado de projetos mediáticos, que foram alvo de um amplo debate público e que tiveram um grande eco na imprensa. Depois, recorremos à forma como estes processos apareceram retratados nos jornais nacionais ao longo do tempo para os compreender. ​No fundo, utilizámos a imprensa como barómetro da ação e do envolvimento públicos. Quando, a partir dos arquivos de alguns dos principais jornais portugueses, reunimos um corpo considerável de artigos sobre um mesmo processo, conseguimos provar a sua importância, não só dentro da disciplina, mas principalmente para a vida colectiva das pessoas. Esperamos recuperar a consciência da presença regular da arquitectura na vida de todos. Talvez se conclua que a arquitectura está tão presente na vida de cada pessoa, que se funde com ela.

Como critério cumulativo, determinámos que estes processos que compõem a exposição deveriam referir-se a projetos de habitação, por dois motivos: em primeiro lugar, por considerarmos que o acesso à habitação é um direito básico, cuja análise profunda permite revelar as fragilidades a superar pela nossa sociedade; segundo, porque percebemos que o acesso à habitação é um problema actual com escala global que tem, obviamente, particularidades históricas no nosso país que interessa estudar. Assim, seleccionámos sete processos do arco temporal da democracia, marcados por destruição material, deslocação social ou participação popular. Estes processos são testemunhos de uma democracia que começou com um Portugal empobrecido, a braços com falências habitacionais profundas e agravadas pela urgência demográfica da descolonização.

Concluímos que hoje, passadas quase cinco décadas em democracia, a realidade é ainda frágil, pautada pela persistência de bairros informais, por um crescimento especulado dos grandes centros urbanos onde a habitação não é acessível e pela desertificação do interior do país.

Interessa-nos também aproximar um público alargado de arquitectos para a importância social e para o poder político da arquitectura, ao ver a disciplina através de outras perspectivas. Sentimos que esta se esvazia cada vez mais deste sentido maior, tendendo para se transformar num objecto de desejo e num produto de consumo. É importante contrariar esse caminho.

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RB: Outra parte importante da participação portuguesa serão os debates. Foi lançada uma chamada para propostas de debates – uma estratégia inteligente que possibilita ampliar o escopo de temas abordados e agentes envolvidos. O que vocês esperam desta chamada e dos debates em si?

depA: A representação portuguesa estrutura-se nestes dois formatos de igual importância: a exposição, onde procuramos aprender, com uma visão mais retrospectiva, através de sete processos relevantes na arquitectura portuguesa dos últimos 47 anos; e os debates, onde procuramos discutir o contributo da arquitectura e dos arquitectos numa visão mais prospectiva, trazendo para a curadoria os temas que ocupam o espaço público da nossa actualidade (ainda que alguns deles nos acompanhem há já muito tempo).

Aqui, entendemos que a curadoria deveria abrir espaço para o alargamento da discussão fora da nossa equipa e, desejavelmente, para lá da disciplina, pelo que convidámos uma equipa de coordenadores multidisciplinar – Ana Jara, Anna Puigjaner, Fernanda Fragateiro, Jorge Carvalho,

Miguel Cardina e Moisés Puente – a organizar e moderar três desses debates. Os restantes seis debates foram seleccionados através de uma ​open-call​ internacional, de modo a trazer outras comunidades para a discussão e somar as vozes que aceitaram esta convocatória.

Por outro lado, foi muito importante para nós não apenas representar Portugal em Veneza, mas, pelo contrário, trazer também a discussão e o fórum da bienal simultaneamente para o território nacional – no Porto e em Lisboa – através da nossa parceria com a Trienal de arquitectura de Lisboa e com o Mira Forum. Naturalmente, tomámos partido do adiamento da Bienal para reforçar a curadoria e adicionar três debates em formato online que vão permitir ir ao encontro de um público mais vasto. Estes três eventos, que precedem a inauguração da Bienal e que vão ocorrer a 14 e 28 de março e a 11 de abril, apontam directamente a alguns dos temas que ocupam o espaço de discussão pós-pandemia e das respostas que a sociedade terá de construir no futuro próximo.

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Pretende-se assim, no conjunto destes nove eventos, uma democratização dos contributos externos à representação Portuguesa e um alargamento da participação, seja através do cruzamento com os temas transversais a esta edição da Bienal e às representações dos restantes países, seja através da inclusão de outros sectores da sociedade que normalmente não estão presentes nestes fóruns.

RB: A democracia parece ser a única opção para vivermos juntos. Ao menos em relação à agenda política. Como a participação portuguesa procura dialogar com outras agendas – ecológica, racial, de gênero – tão importantes para vivermos juntos neste planeta?

depA: A agenda é a mesma! Nesse sentido, reconhecemo-nos no sujeito colectivo subentendido na pergunta de Hashim Sarkis, que nas suas palavras deverá ser plural e inclusivo – até de outras espécies – para apelar a uma visão mais compreensiva da arquitectura.

Para sermos verdadeiramente inclusivos neste projecto de ‘viver em comum’, temos que continuar a ampliar este sujeito político.

A nossa curadoria chama estes temas à discussão, seja através da exposição dos processos que escolhemos, que estão inerentemente atravessados por estas problemáticas, seja através dos debates. Por exemplo, o papel da arquitectura nas políticas de habitação é um dos temas centrais da exposição, mas também estará em debate. A aprovação da Lei de Bases da Habitação, em 2019, ou a discussão sobre o Plano de Recuperação e Resiliência, que canaliza um investimento inédito neste século para a construção de casas, provam a pertinência de questionar que habitação queremos, para quem e como. Isto implica falar do desenho dos espaços de cuidados e das necessidades domésticas contemporâneas, dois temas que também estarão presentes na nossa programação.

Outro exemplo do que estará em discussão é o dos processos de decisão e construção de infraestruturas – e a transformação do território – num momento em que Portugal debate a localização de um novo aeroporto em Lisboa e a ligação ferroviária de alta velocidade à Europa. O impacto ambiental, económico e social que estes projectos acarretam deve ser escrutinado e comparado com processos semelhantes noutras partes do planeta. Um último exemplo; hoje, tal como em muitos outros países, questiona-se em Portugal o legado colonial que persiste em alguns símbolos urbanos e arquitectónicos. Para descolonizar as nossas cidades, mote de um dos eventos, é necessário abrir os espaços para uma discussão que foi muitas vezes tabu.

Entre os nove eventos, haverá ainda espaço para outras reflexões, garantidas pelos coordenadores dos debates, pelos participantes e por um público que se pretende diverso e heterogéneo, pelo que convidamos toda a gente a participar activamente.

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Prevista originalmente para ocorrer entre agosto e novembro de 2020, a 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza foi adiada e será realizada de 22 de maio a 21 de novembro de 2021.

Confira a abrangente cobertura da Bienal de Arquitetura de Veneza 2021 realizada pelo ArchDaily. Não deixe de assistir à nossa playlist oficial no Youtube, onde apresentamos entrevistas exclusivas com arquitetas, arquitetos e curadores da Bienal.

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "Conflito e espaço democrático: entrevista com os curadores de Portugal na Bienal de Veneza 2021" 17 Abr 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/958891/conflito-e-espaco-democratico-entrevista-com-os-curadores-de-portugal-na-bienal-de-veneza-2021> ISSN 0719-8906

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