Estamos caminhando em direção à cidade genérica?

Skylines são como ícones que intrigam pessoas por conta de sua complexidade urbana, criando caráter e definições de lugar. Já dizia Kevin Lynch, em seu clássico “A Imagem da Cidade”, que a imagem da paisagem de uma cidade pode ser tratada como um objeto que possui significados variados, difíceis de serem previstos. Ao se construir uma cidade, é possível prevê-la em uma imagem clara, porém as suas definições irão surgir indiretamente ao longo de seu desenvolvimento. Ou seja, quando cidades evoluem, seus skylines evoluem juntos, de forma imprevisível.

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Nesse contexto, individualmente ou em grupos, os edifícios, principalmente os altos, podem afetar significativamente a paisagem, o caráter e a identidade das cidades como um todo e por um longo período de tempo. Assim é abordado no primeiro item do “Historic England Advice Note 4”, um documento inglês que, no intuito de garantir que edificações em altura bem projetadas possam contribuir positivamente para a vida urbana, busca orientar profissionais envolvidos no planejamento e na concepção de edificações em altura em Londres. Metrópole esta que vem observando o seu skyline mudar drasticamente com mais de 500 edificações altas em construção, aprovação ou em fase de projeto.

No entanto, enquanto o documento inglês aborda a questão da responsabilidade de uma edificação sobre o skyline e a vida urbana de uma cidade houve, de certa forma, na segunda metade do século XX, uma vulgarização do chamado edifício “caixa de vidro”, uma imagem associada à obra emblemática de Mies van der Rohe, Seagram Building, ligada ao chamado Estilo Internacional de arquitetura.

Faz parte dessa vulgarização a tendência de associar a tipologia verticalizada com fachadas revestidas de vidro, e a sua consequência “foi uma paisagem urbana global que se tornou homogeneizada e genérica, como uma proliferação de “caixas” de metal, pedra e vidro”, diz Robert Goodwin, diretor do escritório Perkins + Will de Nova York. São prismas volumétricos sem nenhum significado ou mesmo ligação técnica ao local onde está inserido.

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Esquerda: Seagram Building, Nova York. (Imagem: Oliver Smith/Flickr). Direita: Tour Montparnasse, Paris. (Imagem: Gwenael Piaser/Flickr)

É possível citar como exemplo a Tour Montparnasse em Paris e perguntar: qual a sua ligação com o contexto da cidade? Ou a Shinjuku Mutsui Building em Tóquio, o que representa à cultura japonesa? Para trazer um exemplo da realidade brasileira, temos o edifício sede do BNDES no Rio de Janeiro, revestido inteiramente em pele de vidro, com tonalidade escura e localizado em uma das cidades com clima mais quente do país. Dificilmente esta parece ser a solução ideal de fachadas neste contexto.

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Esquerda: Shimjuku Mitsui Building, Tóquio. (Imagem: Kure/Wikipedia). Direita: BNDES, Rio de Janeiro. (Imagem: Sérgio Loros)

Como consequência do conjunto de edifícios “caixa de vidro”, se pode dizer que houve uma perda de identidade das metrópoles. Com isso, as grandes cidades foram se tornando mais homogêneas em relação ao que eram na sua formação, um fenômeno que foi chamado pela Architectural Review de Notopia e que, inclusive, deu nome à campanha criada pela revista com a missão de analisar e identificar a “perda de identidade e dinamismo cultural” e a “pandemia global de edifícios genéricos”.

A cidade de hoje é definida por um conjunto de ícones de edificações em altura, que se caracterizam em grande parte como “sinônimos” ao invés de “nativos”, explica o diretor do Council on Tall Buildings and Urban Habitat (CTBUH), Antony Wood, em seu artigo “Rethinking the Skyscraper in The Ecological Age: Design Principles for a New High-Rise Vernacular”.

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Varsóvia, Polônia. Imagem: Ministry of Foreign Affairs of the Republic of Poland/Flickr
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Melbourne, Austrália. Imagem: Rodney Topor/Flickr
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Miami, EUA. Imagem: Federico Robertazzi/Flickr

Como exemplo dessa homogeneização, Wood traz uma analogia entre três cidades localizadas em diferentes partes do mundo, em diferentes climas, em diferentes escalas e, principalmente, em diferentes culturas. São elas: Varsóvia, na Polônia; Melbourne, na Austrália; e Miami, nos Estados Unidos.

É nítida a semelhança entre essas três cidades. São skylines em que predominam a caixa ortogonal de vidro, sem nenhuma ligação com a cultura, contexto ou clima local.

Como Varsóvia, localizada na parte nordeste da Europa, onde temperaturas médias variam de -3°C em janeiro a 19°C em julho, poderia ter a mesma solução arquitetônica de edificações de Miami e Melbourne, onde os termômetros dificilmente baixam dos 10°C no inverno? O que há em comum entre suas culturas que poderia explicar a homogeneidade de suas paisagens?

Em uma outra analogia, pode-se trazer para a realidade das cidades brasileiras. Uma homogeneização também ocorre no nosso país de dimensões continentais, com resultados parecidos, mas com origens diferentes. Como exemplo: Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul; Cuiabá, no Mato Grosso; Campina Grande, na Paraíba; Uberlândia, em Minas Gerais; e Manaus, em Amazonas.

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Caxias do Sul, RS. Imagem: Autor
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Cuiabá, MT. Imagem: Prefeitura de Cuiabá
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Campina Grande, PB. Imagem: Chico Figueiredo
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Uberlândia, MG. Imagem: Fernando Stankuns/Flickr
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Manaus, AM. Imagem: Madison/Wikipedia

O que se nota quando observamos os skylines dessas cinco cidades, localizadas nas cinco diferentes regiões do país?

Edifícios em sua maioria altos, prismáticos, resultantes de fórmulas matemáticas estabelecidas por leis que ditam o quão afastado será um prédio de outro. Normalmente chamadas de “Lei de Uso e Ocupação do Solo”, estas leis, ligadas a ideais urbanísticos modernos, foram inseridas nos planos diretores que começaram a ser implementados no início da década de 1960 e até hoje impõem as características das cidades no Brasil.

Será que edificações rodeadas de recuos frontais e laterais seriam a melhor maneira de compor uma paisagem urbana para as gélidas cidades da serra gaúcha como Caxias do Sul? Seria a melhor solução para conter o calor úmido em uma das capitais mais quentes do Brasil como Cuiabá? Tipologias volumétricas isoladas no lote tão semelhantes no sul e centro-oeste seria a solução ideal para o clima do agreste paraibano em Campina Grande? Cidades com climas tão opostos e volumetrias tão semelhantes em suas resultantes urbanísticas. Nitidamente, há uma contradição em suas morfologias.

Ainda, outro ponto importante a salientar é que os elementos característicos de certa arquitetura local foram deixados de lado por soluções genéricas desde a industrialização dos materiais da construção civil que ocorreu principalmente a partir do final da década de 1970 e início dos anos 80. Basta, novamente, um olhar para os skylines dessas cidades, acrescentando Uberlândia, no Sudeste, e Manaus, no Norte, para perceber que as maneiras de resolver fachadas são parecidas entre todas elas.

Dimensões e sistemas de aberturas, como janelas, no corpo da edificação precisam ser necessariamente parecidos em cidades como Manaus, Uberlândia e Caxias do Sul? Os índices de conforto térmico nessas cidades são os mesmos para adotar tais medidas? Difícil ver nas edificações de Cuiabá ou Campina Grande soluções que remetam a algum tipo de caráter local para proteção da forte incidência solar que ocorre nesses lugares.

Observando novamente o skyline dessas cidades citadas, igualmente ao que ocorre no exemplo dado pelo diretor do CTBUH, em um primeiro olhar já se percebe a mesma semelhança entre elas. As “caixas” ortogonais que perduram nas paisagens de Melbourne, Varsóvia e Miami estão também nas cinco cidades brasileiras, de maneira diferente, mas com resultados semelhantes. E mesmo havendo uma certa diferença, principalmente em soluções de elementos de fachada, em relação às cidades brasileiras, há hegemonia entre todas as imagens. 

A dificuldade de distinção é causada, segundo Wood, por “um reflexo puro da cultura global de hoje, orientada pela economia e obcecada pela imagem”. Em outras palavras, a visão de um mercado associado à imagem de um mundo globalizado e não mais à busca de um caráter para o lugar.

Haveria alguma alternativa para esta homogeneização?

Utilizando-se de metáforas, por vezes irônicas e sarcásticas, o arquiteto Rem Koolhaas, em seu livro “La Ciudad Genérica”, descreve que cidades com uma certa identidade estão aprisionadas. São resistentes à expansão, à interpretação e à renovação. Como Paris, que só poderá se expandir se tornar-se mais parisiense ainda. 

Já faz algumas décadas que as cidades caminham para o genérico, segundo Koolhaas. O futuro seria homogêneo e as cidades genéricas entre suas paisagens e seus elementos. Cidades não sem história, mas capazes de mudar seus contextos conforme as necessidades, abertas para todos e sem a dependência de se manter um padrão.

Estariam os centros urbanos caminhando para esse padrão de cidade?

Com o mundo cada vez mais globalizado, com milhões de pessoas não mais morando em suas cidades natais, difícil não pensar em novas culturas sendo criadas em metrópoles tão cosmopolitas como as de hoje. Ao mesmo tempo, em um período em que se discute tanto o meio ambiente, soluções volumétricas de edificações não deveriam ser baseadas apenas em cálculos matemáticos. E, sim, em estudos e simulações de como se portam determinadas edificações em determinados lugares do planeta. Basta dizer que o ar condicionado foi inventado há 120 anos. Antes disso, como a civilização sobreviveu durante milênios? Talvez um olhar para os conceitos dessas construções, chamadas de vernaculares, poderiam ser um caminho a se seguir, aliada às tecnologias de hoje.

Via Caos Planejado.

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Sobre este autor
Cita: Luis Henrique Bueno Villanova. "Estamos caminhando em direção à cidade genérica?" 19 Jan 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/955242/estamos-caminhando-em-direcao-a-cidade-generica> ISSN 0719-8906

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