A banalidade do bege: por que limitar o uso das cores na arquitetura?

Este artigo foi publicado originalmente em Common Edge

Estou cansado de revistas de decoração e marcas de tintas tentando me vender suas monótonas paletas de cores “neutras”. Muitos afirmam que o “Bege Está de Volta,” que desde sempre os tons neutros têm sido considerados elegantes e capazes até de nos trazer paz e tranquilidade. Eu, pessoalmente, não acredito em nada disso. As paletas de cores minimalistas que encontro com frequência em muitos dos edifícios de arquitetura contemporânea não me relaxam, elas me aborrecem tanto que eu até fico com raiva. A idealização da alvura do mármore das ruínas greco-romanos é um mito. Hoje em dia todos nós sabemos que estas estruturas nunca foram brancas tal e qual nos foi ensinado na escola. Nossos antepassados nunca foram capazes de criar estruturas e espaços incolores. A sua arquitetura, por excelência, era nitidamente policromática.

Talvez devêssemos culpar o idealismo modernista pelo uso exagerado de cores primárias na arquitetura. Os ambientes contemporâneos, por sua vez, estão "banhados em branco", escreveu Ross Brady, “na esperança de reivindicar uma pureza absoluta [...] seja ela da forma, da função ou da própria ideologia.” Alguns arquitetos e arquitetas, no entanto, preferem o branco por razões menos pretensiosas. Eles argumentam que o branco é neutro, que paredes desprovidas de cor são capazes de realçar os detalhes que realmente importam na arquitetura, como o mobiliário, a natureza ou até mesmo nós, seres humanos.

Conversa fiada. O branco é a cor da falta de comprometimento. Isso significa que, em algum momento, caros arquitetos e arquitetas, vocês terão que assumir uma posição. O problema de nunca especificar uma cor, ou de pintar o mundo todo de bege, é a evidente desconexão entre aqueles que nos vendem as cores, aqueles que as empregam e os usuários que precisam conviver diariamente com as nossas escolhas, ou melhor, a falta delas.

Durante meu tempo de faculdade, nós costumávamos utilizar tintas e pigmentos aquareláveis para demonstrar as possíveis gradações de tom de uma mesma cor, dos mais saturados aos menos saturados. Cada nuance podia então se desdobrar em uma nova cor, sempre mantendo um denominador comum em seus ingredientes: um tom de massa (a cor dominante que você vê primeiro) e um subtom (a variação mais sutil da cor). Para clarear uma mistura, adicionávamos branco. Para escurecer, adicionávamos preto, criando uma paleta completa que variava dos tons mais claros aos mais escuros sendo que cada variação era uma cor em potencial—nisso tudo, não havia nenhum tipo de neutralidade. 

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Exemplo de cores criadas a partir de uma mistura de vermelho / verde com diferentes quantidades de preto e branco. Arquitetos e designers tendem a restringir seus ambientes de fundo à linha superior de brancos. Imagem © Gloria Jaroff

Comercialmente falando, as cores das tintas de mercado são misturadas de maneira diferente, mas o resultado final é o mesmo. Todo tipo de tinta começa a ser feita a partir de uma base ou fundo, a qual então são adicionados os diferentes pigmentos para criar as distintas tonalidades. Isso significa que todas as cores neutras são derivações criadas a partir da diluição de pigmentos saturados, mas esse conceito geralmente se perde pelo caminho. Quando decidimos criar uma nova classificação para os tons dessaturados de uma cor, chamando-os de beges, cinzas, ocres e afins, estamos negando a sua personalidade ao ocultar a linhagem da qual elas provêm.

E o que acontece com todos os outros tons que encontam-se fora desta chamada “zona neutra”? Essas amostras, potencialmente interessantes, são então arquivadas e esquecidas. Elas se parecem como a seção de livros raros em um museu, um lugar onde poucos podem entrar e de onde nenhum volume pode ser retirado. Estes infinitos tons neutros, meus caros colegas, poderiam estar à nossa disposição. Eles poderiam, talvez, trazer um pouco mais de vida à monotonia cândida da brancura dos espaços contemporâneos. Faça algo comigo, eles imploram. Liberte-me e liberte-se!

Se os neutros fossem encarados como aquilo que eles são de fato, ou seja, variações cromáticas, eles poderiam ser classificados em verdes-amarelos, verdes-azuis, azuis-vermelhos, vermelhos-amarelos e assim por diante. O insípido espaço bege na imagem que abre este artigo ganharia vida própria, sem a necessidade de adicionarmos qualquer outro elemento.

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Tinta de parede amarela / verde (Farrow e Ball Vert de Terre) e um tapete multicolorido agregam valor e contraste entre o fundo, a lareira e os móveis. Imagem © Gloria Jaroff

O branco nem sempre é a melhor solução, mas tampouco é algo que devemos banir de nossos espaços quando não encontramos sua amostra na última cartela de cores lançada no mercado. De fato, a industria da cor exerce uma influência descomedida no mundo da arquitetura e do design de interiores: a International Color Authority, o Color Marketing Group, a Comissão Internacional de Iluminação, a Pantone e outros. Com frequência, essas empresas identificam e lançam—a partir de critérios subjetivos e bastante confusos—novas cartelas de cores, as quais serão tendência naquele ano. A partir disso, empresas de diversos setores se apropriam destas informações para lançar as suas próprias linhas de produtos que variam desde móveis, tecidos, elementos de decoração, roupas até produtos industriais e etcetera. Como uma tendência inevitável, estas cores se multiplicam e acabam por permear todas as indústrias, da moda à construção civil. Nós, arquitetos, devemos estar muito mais atentos a este fato: estas cores podem até ser lucrativas para as indústrias da moda e do design, mas elas também datam os nossos projetos. Afinal, como as tendências parecem surgir do dia para a noite, elas também desaparecem com a mesma brevidade.

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Mesma sala, mas com Rosa Carmesim nas paredes. Observe que o tapete oriental ainda funciona. Imagem © Gloria Jaroff

Apesar de muito curiosa, a história do mundo da cor é bastante recente. A maioria destas organizações e empresas surgiram a partir da década de 1960, isso porque, até então, os métodos e materiais de tingimento eram muito limitados assim como as cores disponíveis no mercado. Até o início do século XIX, por exemplo, todas as tintas eram produzidas à base de cal.

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A sala ganha vida ao combinar o tapete oriental com as paredes pintadas de Blue Ground. Imagem © Gloria Jaroff

Parênteses: paredes pintadas com tintas a base de cal não podem ser simplesmente pintadas novamente com tintas plásticas e afins. Eu descobri isso da pior maneira possível. Em 1965, eu havia me mudado com a minha família para uma casa de campo construída em uma fazenda nos anos 1930. Antes de entrarmos, eu decidi pintar toda a casa e para isso comprei uma tinta plástica comercial. Dias depois, a tinta começou a descascar e todo o meu trabalho e investimento foram por água abaixo. Quando meu empreiteiro descobriu o que eu havia feito, tivemos que raspar com muito cuidado todas as superfícies que haviam sido pintadas com cal anteriormente, antes de poder aplicar a nova camada de tinta à base de óleo selecionada da cartela criada a partir da tabela de cores “Moore-O-Matic” de Benjamin Moore, um sistema de universal de pintura que foi posteriormente incluído na coleção Smithsonian.

No início dos anos 1950, logo depois de nos casamos, eu e minha esposa decidimos mobiliar a nossa casa. Naquele momento as opções de cores de tapetes eram restritas à verde musgo e marrom escuro. Além de toda esta diversidade de cores haviam duas opções de materiais: felpa de lã e algodão. Isso porque toda a produção de seda, náilon e afins havia sido empregada na industria militar até 1945. Passaram-se décadas até que as fibras sintéticas e corantes estáveis e resistentes ao desbotamento fossem disponibilizadas no mercado.

Após a Segunda Guerra Mundial, novos materiais, corantes e métodos de tingimento passaram a ser introduzidos aos poucos na industria da moda e decoração. A marca de tintas americana Benjamin Moore foi fundada no final do século XIX como uma pequena loja de garagem. Posteriormente, com a popularização das novas tecnologias de pigmentação, a empresa cresceu e expandiu-se, alcançando clientes nos quatro cantos do país. Novos corantes permitiram a criação de vastas paletas de cores e acabamentos. Entretanto, aquelas tintas disponíveis em meados do século XX não eram as mesmas cores banais que hoje costumamos chamar de “neutras”. Os beges, por sua vez, variavam de transparentes à luminosos. Era impressionante observar uma parede pintada de branco que, a medida que a intensidade da luz do sol variava ao longo do dia, revelava sutis mudanças de tons e as nuances de sua composição.

Nos anos 50 e 60, o sistema Universal Tinting Colors lançado pela Benjamin Moore estava composto por uma limitada paleta de pigmentos a base de óleo ou argila produzidos a partir de óxido de ferro. Os pigmentos mais modernos como os que utilizamos hoje em dia—feitos a partir de dióxido de titânio, azul de ftalocianina, óxido de ferro vermelho e óxido amarelo—, tornam a tinta opaca para assim proteger o substrato ou a superfície dos efeitos nocivos dos raios ultravioleta. Eu não estou aqui levantando uma bandeira contra a onipresença do branco na arquitetura contemporânea, mas da ausência de alma, da perda daquela aura outrora exuberante.

O meu empreiteiro na costa leste trabalhou como artista ao longo dos anos 1970. Ele conhecia todas as variações possíveis do sistema da Benjamin Moore, incluindo as bases transparentes e pigmentos não granulados. Ele era capaz de, misturando as poucas bases disponíveis na cartela da Universal Tinting Colors, criar impressionantes variações de cores e tonalidades. Infelizmente, a maioria dos pigmentos contava com altos níveis de compostos orgânicos voláteis (VOCs), que hoje em dia são classificados como tóxicos.

Com o passar do tempo, restrições foram sendo impostas até que estes compostos foram completamente banidos do mercado. Como resposta, as empresas passaram a substituir os pigmentos sintéticos por outros à base de água ou à base de solvente. Em 2011, a primeira pintura esmalte lavável à base de óleo foi apresentada como uma alternativa aos esmaltes puramente à base de óleo. Ambientalmente, apesar de serem menos agressivas ao meio ambiente e altamente resistentes à luz ultravioleta, estas tintas são menos transparentes do que aquelas que propunham substituir. Como resultado disso, os neutros opacos de hoje em dia são opacos demais—desprovidos de qualquer profundidade e nuance de cor.

A química, portanto, pode ser considerada a principal responsável pelo desaparecimento das cores vibrantes de outrora. Atualmente, as tintas comerciais estão compostas por três ingredientes principais: base (aglutinante ou resina e solvente), pigmentos (orgânicos e inorgânicos) e aditivos. Antigamente, a maioria do aglutinantes eram produzidos a base de óleo de linhaça, uma base muito comum entre os artistas da Renascença. Ao longo da Segunda Guerra Mundial, a escassez de óleo de linhaça estimulou os pesquisadores a buscarem novas alternativas, resultando no desenvolvimento daquilo que conhecemos hoje como resinas sintéticas, como as alquídicas, acrílicas, o látex e o epóxi. Tanto o aglutinante quanto a resina é o componente que fornece brilho, durabilidade, flexibilidade e resistência à tinta. Os aditivos, por sua vez, cumprem várias funções ao mesmo tempo. Eles são utilizados para melhorar a aparência ou estabilidade do acabamento, engrossar ou dar textura à tinta assim como protegendo-la de possíveis agentes biológicos nocivos.

Pigmentos e corantes, sejam eles naturais ou sintéticos, são os componentes mágicos da equação: aqueles necessários para criar as cores. Inicialmente, os pintores costumavam misturar os pigmentos com óleo de forma manual, uma receita fatal porque os expunha ao enfeito tóxico do chumbo. Por esta razão, em 1718 foi inventada uma máquina para moer os pigmentos e misturá-los à base aglutinante. Em meados do século XVIII, quando os corantes ainda eram processados e produzidos em moinhos movidos a vapor, o óxido de zinco surgiu como uma alternativa aos pigmentos à base de chumbo. O óleo de linhaça ainda era o principal aglutinante utilizado para a produção de tinta. Em 1866, Sherwin-Williams inventou uma solução que permitia embalar a tinta em latas de alumínio. A partir deste momento as coisas passaram a mudar muito rapidamente. A embalagem em lata permitia que os consumidores misturassem suas cores no próprio local, dando asas à imaginação dos pintores e artistas ao redor do mundo. À este novo sistema foram incorporadas medidas e receitas padronizadas as quais permitiam ciar pequenas quantidades das cores que antes eram apenas vendidas em grandes tonéis.

De lá pra cá, muita coisa mudou, assim como muitas cores e nuances se perderam pelo caminho. As infinitas possibilidades presentes nos mais novos catálogos de tintas não são capazes de compensar—sequer minimamente—a perda da vivacidade das tintas de antigamente. E eles ainda tem coragem de apelar para um mote tão pobre quanto o Bege Está de Volta? Isso me parece com uma brincadeira de muito mal gosto. Sequer podermos comparar o brilho intenso e policromático das cores utilizadas no início do século XX com a arrogante opacidade dos tons neutros da arquitetura contemporânea. E como supostamente eu deveria lidar com a ideia de que o off-white é uma cor deveria me trazer paz e tranquilidade? Não mesmo. Nem em tempos de Covid. Assim como a humanidade sobreviveu à recorrentes pandemias e pestes ao longo dos séculos, as cores resistiram às infinitas mudanças em suas composições. As tendências de cores têm variado regularmente de década para década desde meados do século XIX, revelando uma enorme variedade de tons populares, do Harvest Gold ao Millennial Pink.

Eu volto à dizer, meus caros projetistas, ser um escravo dos materiais padrões e indefinidos dos modelos 3D utilizados ao longo da faculdade assim como optar sempre pela cor tendência do momento é algo que limita a sua criatividade. Procure observar as nuances do seu eu interior e aquelas que você vê em seu cliente. Observe, compare, pense. Cada ser humano percebe os diferentes matizes das cores de maneiras distintas. Na cultura chinesa, por exemplo, o branco é a cor do luto. Paredes brancas estão muito distantes de representar a neutralidade do espaço museal. Neste contexto, a alvura onipresente do branco sobre branco não tem nada de neutro, ela evoca a imagem de uma sala onde ansiosamente se espera pela chegada da morte.

Ao longo da minha carreira como arquiteto e designer eu fui capaz de identificar duas personalidades contrastes nas cores. Meus clientes comumente optavam por ambientes de alto ou de baixo contraste, e ambas qualidades podem ser alcançadas com tons neutros ou vibrantes. Mais importante do que escolher o tom certo, o trabalho com a cor tem a ver com a combinação, com a mistura, com as suas derivações e gradações. As cores nos ajudam a criar movimento, a impedir que a arquitetura e o espaço se tornem algo estático e deprimente. Uma boa maneira de dar vida à um ambiente é através do uso inteligente da cor, de como nos apropriamos de seus valores e texturas.

Vinte mil anos atrás, seres humanos arcaicos salpicavam as paredes de suas cavernas com pigmentos coloridos para expressar os muitos fenômenos naturais que eles observavam. As pinturas rupestres do paleolítico foram criadas com o auxílio de madeira carbonizada, de corantes orgânicos encontrados no solo argiloso, pedras calcárias e uma infinidade de outros elementos de composição orgânica e mineral. Até hoje, não há nenhum registro de uma caverna pré-histórica pintada de bege.

Se nem mesmo os neandertais se limitavam a tons neutros insossos, por que nós deveríamos abrir mão do uso da cor na arquitetura?

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Sobre este autor
Cita: Jaroff, Gloria. "A banalidade do bege: por que limitar o uso das cores na arquitetura?" [The Boundless Banality of Beige: A Rant] 25 Nov 2020. ArchDaily Brasil. (Trad. Libardoni, Vinicius) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/951598/a-banalidade-do-bege-por-que-limitar-o-uso-das-cores-na-arquitetura> ISSN 0719-8906

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