Corpo e memória: a mulher no território urbano

Pensando na trajetória de ocupação da cidade de São Paulo e na busca pela produção de um urbanismo universal e democrático é importante entender o papel e o movimento das mulheres no contexto urbano, principalmente nas periferias da cidade. Aqui trataremos do bairro do Jardim Damasceno e seus espaços em movimento – as escadarias – entendendo como esses corpos se expressam nesse contexto, quais são suas ações e transformações e como a questão de gênero é percebida por esses corpos.

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A partir de um olhar histórico, entende-se uma exclusão das mulheres no contexto urbano. O “lugar” delas se deu na sua grande maioria dentro de casa, cuidando dos filhos ou da família, do lar, e por muitas vezes dos filhos, família e lar das mulheres brancas da elite paulistana, como foi o caso da grande maioria das mulheres negras, que já tinham esse papel muito antes de terem sua própria liberdade conquistada. Essa realidade se perpetua até hoje, onde parte das mulheres negras e de baixa renda vive nas periferias da cidade e saem de suas casas todos os dias para trabalhar na região central, onde a infraestrutura e o saneamento básico são abundantes, ou permanecem em seus lares cuidando dos filhos e da casa, sem algum tipo de renda ou liberdade financeira. Tal situação evidencia o racismo e machismo estrutural, o abismo social da sociedade brasileira e a produção de um urbanismo elitista e higienista. O movimento das mulheres – entendendo suas diferentes trajetórias e lutas – era restrito e historicamente não tínhamos lugar no meio urbano.

No bairro do Jardim Damasceno essa realidade não foi diferente. Em 1980, o distrito da Brasilândia, onde o bairro está localizado, já tinha grande parte do território ocupado. Naquele período, o abastecimento de infraestrutura básica era inexistente, as principais reivindicações da população eram: a pavimentação das ruas, sistema de coleta, distribuição de água e o tratamento do esgoto. Nessa mesma época houve uma grande tragédia no bairro – como as que vemos na mídia até hoje –, um grande deslizamento de terra levou muitas casas e os moradores perderam tudo. 

Em um contexto de emergência dos movimentos sociais urbanos, os moradores se mobilizaram para reivindicar direitos básicos e obras de melhoria para o bairro ao poder público. Depois de muita resistência e luta, a história chegou até os jornais de grande circulação e, como resultado de uma grande articulação de resistência, o movimento conseguiu melhorias significativas. Nesse momento de lutas e conquistas a participação e o protagonismo das mulheres foi muito expressiva, resultando na formação de uma associação de moradores forte e que até hoje é referência de ações culturais desenvolvidas no Espaço Cultural do Jardim Damasceno.

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Espaço Cultural Jd. Damasceno, foto digital, jan. 2018. Foto de Pepe Guimarães/F14Fotografia

No entanto, apesar de alguns direitos básicos conquistados, a pavimentação do bairro e a regularização dos terrenos seguiu a lógica da ocupação dos primeiros assentamentos e acabou por consolidar a forma orgânica e sem planejamento dessas construções. Um exemplo claro são os caminhos abertos entre as ruas como alternativas emergenciais para vencer os grandes declives: as escadarias, que em inúmeras situações foram consolidadas de forma a ignorar completamente a topografia existente da região. Esse tipo de dispositivo é uma realidade e uma característica das zonas periféricas em todo o mundo, é a partir desses espaços que o fluxo se torna possível. São espaços em movimento.

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As meninas, 2018, desenvolvida para ensaio fotográfico do livro Memória Urbana | Canon 50mm | produção própria

A ideia de espaço em movimento não estaria mais ligada apenas ao próprio espaço físico, mas sobretudo ao movimento do próprio espaço em transformação. O espaço em movimento é diretamente ligado a seus atores sujeitos da ação, que são tanto aqueles que percorrem esses espaços no cotidiano quanto os que os constroem e os transformam sem cessar. [...] A própria ideia de um espaço em movimento impõe a noção de ação, ou melhor, de participação dos habitantes e usuários. – Paola Jaques. Maré, vida na favela, 2004, pág.56

É também a partir da experiência de gênero que os corpos transitam, vivem e agem nesse território. Corpos que são atores principais da construção da memória urbana, e que desenvolvem uma noção de consciência, e de como ele se insere no território. Esse corpo se movimenta e se relaciona a partir de uma estrutura historicamente dividida entre os gêneros “feminino” e “masculino”, onde a sociabilização das mulheres estava, e muitas vezes está, restrita a determinados lugares e ocasiões. Essa construção do imaginário urbano, a partir da sociabilização feminina estereotipada e da divisão social do trabalho resultou em uma experiência diferente de liberdade no território urbano para homens e mulheres. No caso das mulheres – aqui considerando um grupo abrangente e múltiplo que tem em sua estrutura outras intersecções como orientação sexual, raça e identidade de gênero – em diversos graus que variam de pouca a nenhuma liberdade. 

Apesar da limitação de liberdade, dados apontam que a locomoção das mulheres de classes sociais mais baixas é predominantemente por transporte público e a pé, e quando se deslocam por transporte público a finalidade vai além do eixo “moradia-trabalho”. A responsabilidade dos filhos e dos afazeres de casa ainda é restrito as mulheres, que muitas vezes são também as únicas provedoras dos núcleos familiares.

Seguindo a análise da experiência urbana das mulheres em que os espaços em movimento – as escadarias – aparecem como dispositivos do cotidiano partiremos para a análise de um dos maiores escadões do bairro do Jardim Damasceno, o Escadão da Cantídio, como é conhecido pelos moradores do bairro.

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Sem titulo, foto analógica, 2018 | Canon 50mm | produção própria

Para além de sua proporção, esse dispositivo acentua a diferença da experiência urbana entre homens e mulheres através da sua composição física. Por conta dos descansos e das voltas da escada na parte que divide a estrutura, o modo como a contenção foi feita resultou em cantos e espaços sem visibilidade ou escuros, por isso, essa parte do escadão tem muito lixo, roubos e tráfico de drogas. Localizado nas imediações do bairro, o Escadão vence 41 metros de altura e é dividido em duas partes, totalizando 249 degraus. Em todo o percurso há um sistema de drenagem – que recebe também esgotos clandestinos – assim como um terreno de cada lado, tendo seis casas com acesso direto pela escadaria. 

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Sem titulo, foto analógica, 2018 | Canon 50mm | produção própria

Cátia Barbosa é dona de três das seis casas que dão para o escadão, sua casa tem acesso pela Rua Emílio Castro na cota mais alta (780). Há vinte anos no Damasceno e há doze anos no escadão, Cátia e o marido construíram as casas sozinhos. Ela liga quase que diariamente para a prefeitura vir limpar e pintar o escadão: no ano de 2017 fizeram a manutenção 2 vezes, em 2018, nenhuma.  

É um problema porque fica cheirando muito, o pessoal não respeita, joga lixo o tempo todo, além disso, tem a galeria que passa no meio do escadão. – Cátia Barbosa, moradora do Jd. Damasceno. Entrevista realizada em outubro de 2018.

Ela comenta que muita gente usa o escadão, mas que mesmo de dia é um pouco perigoso. 

Outro dia conseguimos salvar uma menina que subia sozinha, de tarde, e foi abordada por um cara. Ela gritou e a gente conseguiu salvar ela antes que algo pior acontecesse. – Cátia Barbosa, moradora do Jd. Damasceno. Entrevista realizada em outubro de 2018.

Essa percepção transita e evidencia as varias instancias do machismo que ainda perdura fortemente em nossa sociedade; são os valores e as prerrogativas masculinas que ainda prevalecem, apesar dos imensos avanços. Somados a isso, a produção do traçado urbano ignora a questão de gênero. Como disse Rebecca Solnit: 

A violência é uma maneira de silenciar as pessoas, de negar-lhes a voz e a credibilidade, de afirmar que o direito de alguém de controlar vale mais do que o direito delas de existir, de viver. – Rebecca Solnit. Os homens explicam tudo para mim, 2017, pág.17

Viviane Barbosa é outra moradora de uma das casas que dá para o Escadão. Ela, o marido e as 3 filhas vieram de Recife, PE. Viviane faz um curso no Senai duas vezes por semana e, como muitas mulheres, é responsável por cuidar da casa e das filhas. É uma mulher extremamente talentosa e faz de tudo para ajudar na renda da família: terminou os estudos há 2 anos, pretende fazer uma faculdade e incentiva as filhas a fazerem o mesmo. O marido sai de casa as 4 horas da manhã para trabalhar e diz que nesse horário o fluxo do escadão é intenso, mas ela tem medo porque nesse horário ainda está escuro. Apesar de ver algumas mulheres descendo o escadão nesse horário, diz que a maioria prefere pegar a condução ou fazer o percurso a pé pela rua, mesmo que o caminho seja mais longo e demore mais. Ela também ressalta que a “voltinha” é uma parte perigosa, "tem muito assalto, lixo e o cheiro é insuportável".

Não estamos mais nas primeiras décadas do século XX, e o contexto urbano mudou muito, as mulheres ocupam a cidade de múltiplas formas, direitos foram conquistados, mas é interessante analisar esses relatos e perceber que, apesar do longo caminho percorrido, ainda não temos espaço nesse território, ainda não há liberdade plena. Quando mulheres são entrevistadas, nota-se que a preocupação é sempre maior do que os homens e os pontos ressaltados são diretamente ligados a questão de gênero. Luiz, por exemplo, morador do bairro há 30 anos, diz que sempre usou o escadão que cheira muito mal e que a “voltinha” é perigosa, mas a percepção de memoria e medo é apontada de maneira diferente dos relatos das mulheres, não se percebe uma limitação da liberdade. 

O escadão é a ligação mais rápida com as cotas mais altas e é a escadaria mais próxima da entrada do bairro, a base fica a 100 metros de um ponto de ônibus e cerca de 400 metros da Avenida Cantídio, uma via com alto fluxo de ônibus para o centro da cidade, por isso muita gente corta caminho por ele. 

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Sem titulo, foto analógica, 2018 | Canon 50mm | produção própria

Em uma hora parada no início do escadão passaram mais de 20 pessoas: algumas mulheres, mas a grande maioria homens. Dentre essas mulheres, uma senhora chamada Vilma, moradora do Jardim Damasceno há 33 anos, disse que sempre que possível usa o escadão para se exercitar, mas sempre de dia.

Um outro usuário também usava o escadão com o mesmo propósito de Vilma. Durante as entrevistas ele subia e descia o escadão fazendo exercícios. Segundo o dono do mercadinho ao lado, “esse homem vem direto fazer exercícios”. Enquanto o homem fazia exercício, mulheres subiam e desciam os 249 degraus com os filhos no colo após um longo dia de trabalho. 

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Sem titulo, foto analógica, 2018 | Canon 50mm | produção própria

Tanto Viviane quanto Cátia, e algumas das entrevistadas, cuidam da casa e da família ou trabalham em casa, enquanto os maridos saem para trabalhar – as que saiam dificilmente tinham o escadão como alternativa. Limitavam, portanto, seu comportamento. Esses pontos trazem à luz uma sociabilização feminina pautada na divisão social do trabalho e, principalmente, na cultura do estupro, que acaba por resultar em um outro tipo de vivência da urbanidade. 

A questão de gênero evidencia a forma como os corpos femininos – levando em conta todas as intersecções presentes na categoria mulher – e sua expressões são silenciados no território urbano. Somados a isso, a omissão do poder público e a construção de um padrão de ocupação colonialista que enfatiza até hoje a negação de culturas e raças múltiplas é evidenciado pela consolidação e expansão das periferias brasileiras que crescem em consequência da continua urbanização elitista. Os corpos femininos são constantemente expulsos do território urbano, seja no centro – cidade formal – ou, no caso das periferias, no retorno aos seus lares no fim de um dia de trabalho. São mulheres sem lugar.

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Mulher com filho no braço, foto digital, 2018 | Canon 50mm | produção própria

Bibliografia
BERENSTEIN, Paola. Maré, vida na favela. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
HARKOT, Marina; LEMOS, Letícia; SANTORO, Paula. Mobilidade e Gênero em São Paulo, Brasil: como a desigualdade de gênero se expressa no espaço urbano através do uso da bicicleta? Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 e 13. Florianópolis, 2017.
PREFEITURA DE SÃO PAULO. A Mobilidade das Mulheres na Cidade de São Paulo.
RAGO, Margareth. A invenção do cotidiano na metrópole: sociabilidade e lazer em São Paulo. In: PORTA, Paula (org.) História da cidade de São Paulo 3: A cidade na primeira metade do século XX (1890-1954). São Paulo: Editora Paz e Terra, 2004.
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo; Tordesilhas, 2014
SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. São Paulo; Cultrix, 2017

Biografia
Arquiteta e Urbanista pela Escola da Cidade. Fez parte de sua graduação na Politecnico de Milano. Teve experiência em design de mobiliário em Berlin, no Studio Kolor. Atua no campo de projeto e estuda a cartografia de São Paulo a partir da intersecção entre fotografia, cartografia e a vivência humana.

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Sobre este autor
Cita: Flávia Prado. "Corpo e memória: a mulher no território urbano" 27 Set 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/948100/corpo-e-memoria-a-mulher-no-territorio-urbano> ISSN 0719-8906

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