Caminhar pelo Anhangabaú: uma breve história do Vale a partir de quem anda a pé

O Vale do Anhangabaú, ou simplesmente Anhangabaú, é a região de São Paulo que separa o chamado Centro Velho do Centro Novo. Como o próprio nome já diz, o Vale é a região lindeira ao riacho que tem este nome, aliás tenebroso, que em tupi-guarani significa “rio ou água do mau espírito”. E ao que parece, pelos vários e mal sucedidos usos que já lhe fizeram, a “maldição” contida no nome acompanha o lugar até hoje.

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Os jardins projetados pelo francês Joseph-Antoine Bouvard. Imagem via Mobilize

A começar pelo próprio enterramento do rio, no início do século 20, após ter abrigado as plantações de chá do Barão de Itapetininga.Tudo isso para dar lugar ao belíssimo parque projetado pelo arquiteto francês Joseph-Antoine Bouvard. O lindo parque mal chegou a completar cinqüenta anos de existência, subjugado por um projeto viário com função de apoiar a conexão norte-sul da cidade, dando sequência ao plano de avenidas que compunha parte da rede proposta pelo prefeito Francisco Prestes Maia, juntamente com a Avenida 9 de Julho e posteriormente, a Avenida 23 de Maio. 

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Enchente na passagem projetada por Prestes Maia e construída por Adhemar de Barros (1958). Arquivo Estadão

Tempos depois, em 1950, esta movimentada estrutura viária recebeu mais uma desastrada tentativa de reforço, com a construção de pista subterrânea em seu eixo, com o objetivo de eliminar o cruzamento com a Avenida São João pelo tráfego de passagem. Novamente, o maul espírito do lugar logo demonstrou que a intervenção - prontamente batizada pela população de “Buraco do Adhemar”, em homenagem ao prefeito autor - além de não adiantar nada, se mostrou um dos piores pontos de alagamento da cidade.

Reurbanização e Pedestrianização

Posteriormente, nos anos 1980, talvez na tentativa de resgatar a importância do local, a prefeitura paulistana realizou um concurso público de projetos para a renovação da área. Saiu vencedor a proposta de autoria dos urbanistas Jorge Wilheim e Rosa Grena Kliass. Ela previa maior fluidez do tráfego no eixo Norte-Sul, através de uma via subterrânea coberta por uma grande laje que abrigava um amplo espaço público pedestrianizado, com calçadão, canteiros arborizados e algumas pistas de apoio ao tráfego local e de retorno.

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Vale do Anhangabaú nos anos 2000, conforme projeto de Jorge Wilheim e Rosa Grena Kliass. Imagem via Mobilize

Mas os maus espíritos das águas locais mais uma vez interferiram, pois o viário subterrâneo continuou a apresentar o mesmo problema crônico de inundação, sendo fechado assim que a Defesa Civil previa uma chuva mais forte. Além disso, o projeto inseriu um banheiro público subterrâneo bem no ponto onde ficava o Buraco do Adhemar, em pleno emblemático cruzamento do Vale do Anhangabaú com a Avenida São João. Obviamente, os lavatórios, latrinas e mictórios não funcionaram por muito tempo e foram, posteriormente, substituídos por um posto da Guarda Civil Metropolitana.

Outro aspecto do projeto de reurbanização foram os grandes canteiros arborizados que compunham a proposta paisagística de Rosa Kliass. Eles eram lindos de se admirar pelo alto, a partir do Viaduto do Chá, mas desestimulantes aos cotidianos trajetos a pé que cruzavam o local. 

Na prática, os canteiros se tornaram obstáculos ao fluxo dos pedestres. E nenhum dos eixos que compunham a rede local de mobilidade a pé, que se utilizavam das escadarias e passeios existentes entre os Centros Velho e Novo como conexão, tinham sua acessibilidade contemplada pelo desenho dos canteiros.

Assim, como uma espécie de manifesto de rejeição aos enormes aumentos de caminhada que estes canteiros impunham, os pedestres simples e espontaneamente decidiram cruzá-los, criando os famosos “caminhos de rato”, em terra batida. Mais tarde, esses trajetos improvisados foram consagrados pela própria prefeitura, que providenciou seu calçamento, para impedir as constantes quedas que aconteciam nos freqüentes dias úmidos.

Além disso, a iluminação que só contemplava os planos acima da copa das palmeiras e árvores existentes, produzia áreas escuras, sempre evitadas pelas pessoas, pois naquela grande área pedestrianizada não havia iluminação na escala dos caminhantes. Da mesma forma, grandes espaços públicos transformados em calçadões não receberam qualquer função de atratividade, o que gerou o esvaziamento dos espaços sob o Viaduto do Chá, que assim foram ocupados por pessoas em situação de rua.

Por outro lado, o local era ideal para manifestações e concentrações públicas, sendo também apossado por jovens com skates, mas, ao mesmo tempo também era apontado como local com risco de episódios de violência urbana e tráfico de drogas. Talvez por este motivo, ou pela falta de políticas de estímulo a usos lindeiros, a maioria dos edifícios locais não ostentavam fachadas abertas para o Anhangabaú. E os poucos que as tinham não utilizavam suas amplas áreas adjacentes como apoio.

Um novo projeto

Agora, o novo projeto, um verdadeiro “arrasa quarteirão”, eliminou os canteiros e inseriu na metade da área do Vale uma rede de pequenos orifícios que expelirão jatos de água, quem sabe na tentativa de fazer as pazes com o “genius loci” original, com sua proposta suave. Entretanto o aspecto desértico vislumbrado com a retirada dos tapumes da obra, acabou chocando, apesar das exaustivas explicações da proposta que pretende recuperar a importância do local, e a prometida diversidade de usos que serão trazidos para a área. No entanto, todas essas novidades propostas pelo escritório Biselli Katchborian Arquitetos operarão em parceria com a iniciativa privada, que terá licença para explorar as atividades previstas para o local. Mas, quando lembramos das mal-sucedidas experiências das parcerias público-privadas, como os jardins verticais e até mesmo as nossas calçadas, torcemos ainda mais para tudo dar certo.

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O novo projeto para o Vale: desafiando os maus espíritos. Imagem © Biselli Katchborian Arquitetos
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Detalhe do projeto para o novo Anhangabaú. Imagem © Biselli Katchborian Arquitetos

Em relação aos deslocamentos a pé, a inexistência de canteiros ajardinados poderá até facilitar a vida dos pedestres, porque todo o trajeto a pé vai ser possível, sem barreiras, na extensa área, agora livre de interferências. Tememos pelo microclima de grande aquecimento, até que as frondosas árvores previstas no projeto cresçam e deixem de ser os atuais pequenos arbustos. 

E também pelo vazio urbano que a nova proposta sugere, o que certamente não conseguirá solucionar o problema dos tipos de uso e ocupação do espaço público, o que poderá concorrer para sua rejeição. Mas, entendo que este problema exige políticas públicas sociais específicas.

Concluindo

Não resta dúvida que o espaço público representado pelo Vale do Anhangabaú é de suma importância para a cidade e sua população, e que está intimamente ligado à história de vida de ambos. Através dos tempos, e de seus vários usos que apoiaram desde despretensiosos deslocamentos cotidianos até eventos importantes e históricos como as manifestações das Diretas Já, shows memoráveis e finais de Copa do Mundo, deixam claro que o Mau Espírito de suas águas primordiais há muito se dobrou à linda história deste local tipicamente paulistano. Por este e por outros motivos que certamente a eles se somarão, o Vale do Anhangabaú merece tratamento digno que transpareça o papel que desempenha na vida da cidade de São Paulo.

Via Mobilize

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Sobre este autor
Cita: Meli Malatesta. "Caminhar pelo Anhangabaú: uma breve história do Vale a partir de quem anda a pé" 06 Set 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/946770/caminhar-pelo-anhangabau-uma-breve-historia-do-vale-a-partir-de-quem-anda-a-pe> ISSN 0719-8906

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