SP, cidade fílmica: recorte da São Paulo moderna

São Paulo, Sociedade Anônima é um filme que possuí abordagem complexa e profunda de São Paulo, feito sob um olhar sensível e específico da década de 60 por aqueles que vivenciaram um momento de renovação urbana e socioeconômica da metrópole. Filme que captou essa renovação social distinta e se tornou um marco cinematográfico da época, em que traça uma relação intensa entre personagem e espaço urbano, possuindo diferentes camadas de interpretação que vem a esmiuçar o significado de moderno, urbano, cenográfico e arquitetônico. Utiliza todas essas questões como instrumentos de manifestação de um período, realizadas e vivenciadas por sua população, captando as transformações não só da cidade como também da sociedade.

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Em preto e branco, o filme de 1965, dirigido por Luis Sérgio Person, traz o drama de Carlos, um ambicioso homem da metrópole que, de empregado, se torna sócio numa fábrica de autopeças. Após se aventurar e ascender socialmente, tem um colapso nervoso e passa a repensar sua trajetória, duvidando de suas escolhas e cogitando abandonar a vida que construiu. Ambientada entre 1957 e 1961, apresenta o contexto da industrialização e de como ela reflete na vida dos paulistanos. Revela-se a cidade de São Paulo em sua essência, com muitas possibilidades e transformações.

Esse ensaio tenta entender a paisagem urbana polivalente atual da cidade de São Paulo a partir das primeiras transformações socioeconômicas e culturais modernas captadas no filme. Acontecimentos anteriores ao período abordado nas filmagens, como a apresentação do Plano de Avenidas Prestes Maia ainda na década de 30, seguindo uma ideia rodoviarista, o início da verticalização na região do triângulo histórico, marcado pela construção do Edifício Martinelli em 1929 e o crescimento demográfico com a chegada maciça dos imigrantes que edificaram a metrópole, também servem para o entendimento do contexto histórico que emerge a narrativa.

A verticalização da área central se expandiu em direção à Praça da República com a construção do Edifício Esther, em 1938, e depois do Edifício Eiffel, em 1956. Já em 1965 foi a vez do Edifício Itália marcar a paisagem, acompanhado do Copan, ainda em construção. Esse momento é marcado pela grande produção arquitetônica e efervescência cultural dos teatros de rua e bares da região, juntamente com a Biblioteca Municipal, configurando o eixo cultural paulista proveniente das possibilidades advindas da industrialização e do progresso que batia à porta dos paulistas. A arquitetura moderna tomava forma e trazia nova identidade, tanto para o movimento quanto para a cidade. 

Para impulsionar o movimento enquanto visa o progresso, foi propício a construção e inauguração do Parque Ibirapuera. Complexo urbano que reafirmava a ideia do crescimento de São Paulo, tal conjunto arquitetônico sediaria as comemorações do IV centenário da cidade e mais tarde a II Bienal de Arte. Geograficamente, o parque extrapolou a área central, a qual se concentraram as primeiras fases de crescimento urbano captadas no filme São Paulo, S.A, por consequência ocasionou uma grande mudança à lógica de deslocamento e concentração da população. Desse modo, tornou-se símbolo arquitetônico da terceira expansão urbana de São Paulo, cruzando longas distâncias com o auxílio das vantagens da modernidade, explorando as diferentes paisagens de São Paulo que compõe a cidade que habitamos atualmente

« Os edifícios desse conjunto arquitetônico evocam suas linhas e superfícies, sugerem nos seus volumes todo o complexo das atividades técnicas modernas, representando simultaneamente a unidade e a multiplicidade do trabalho humano, evocam os resultados objetivos desse trabalho, instalam a consciência de uma época de operosas realizações e consolidam, na matéria inerte, toda uma ordem de ideias puras e exatas[...]. A Comissão organizadora do IV Centenário de São Paulo encontra, portanto, nesse conjunto arquitetônico, a indicação perfeita e adequada, a linguagem ideal para transmitir a quantos quiserem saber, a importância e o grau de desenvolvimento técnico e industrial do grande Estado, através de quatro séculos de existência. » — CARDOSO, 1952, p.20-21 apud Maria Arruda. Metrópole e Cultura, 2015.

A influência do fenômeno da Modernidade é tamanha - tendo seu prelúdio na Semana de Arte Moderna de 22 - no crescimento urbano e na mudança cultural de hábitos do cotidiano, principalmente na lógica de trabalho, que causou perceptíveis transformações econômicas e sociais no passado, a qual ainda nos apoiamos até hoje. Como diz Berman:

« O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: grandes descobertas nas ciências físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e do lugar  que ocupamos nele; a industrialização da produção, que transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal explosão demográfica, que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, que embrulham e amarram, os mais variados indivíduos e sociedades; [...] No século XX, os processos sociais que dão vida a esse turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de vir-a-ser, vêm a chamar-se “modernização”. » — Marshall Berman. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar, 1982.

Como o fenômeno da Modernidade influenciou e foi influenciado na construção da cidade de São Paulo como protagonista do filme?

Para organizar um raciocínio que evidenciasse as diferentes personas da cidade, foi utilizada a metodologia de intervenção gráfica nos frames, partindo de uma seleção baseada em dois temas gerais, Modernidade e São Paulo, que mais tarde originaram os três braços articuladores desse ensaio: A CRISE, A MULTIDÃO e O ESPAÇO FÍLMICO URBANO.

A CRISE do personagem principal possuí relação direta ao cenário interno e urbano escolhidos. Ressaltando a Paisagem Urbana e seu papel influenciador em primeiro plano à Narrativa, o que faz ser indispensável a utilização do termo Geografia Narrativa. Adota-se essa expressão por conta da ideia de sobreposição de camadas urbanas que conformam uma cidade ao longo de grandes períodos e a capacidade de indução do meio externo no estilo de vida daqueles que estão vivendo ali. Mais tarde a Paisagem Urbana também vinculada é relacionada a Multidão.

A investigação gráfica buscou traçar uma analogia ao estudo de composição histórica da cidade, em que houvesse a sobreposição sequenciada de frames que estruturam as cenas, assim como houve a sobreposição de várias camadas urbanas para a formatação atual dessa metrópole paulista.

Nessa sequência de frames selecionados do começo do filme, que retratam a CRISE, os personagens são apresentados. A câmera é posicionada num ponto fixo, direcionando o olhar do público para a sala onde é exposta a crise conjugal do casal protagonista Carlos e Luciana. Vemos a cena através de uma janela fechada, em que a cidade é posta em último plano pelo reflexo no vidro. Desse modo, entende-se a paisagem urbana em posição de observadora.

Após a discussão na sala, a câmera se movimenta lentamente sob o mesmo eixo para direita, percorrendo a varanda e encontrando a paisagem urbana do skyline de São Paulo. Em seguida, o equipamento de filmagem é reposicionado no chão da Praça Antônio Prado e direcionado para cima, capturando a fachada do Edifício Banespa e Martinelli, que nos encurralam com sua grandiosidade.

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O movimento de câmera em relação ao espaço construído. Image Cortesia de Débora Mayumi Segawa Okamoto

Já a MULTIDÃO é uma experiência advinda da modernidade, que ocorre devido à aglomeração de pessoas. Para enfatizar e medir graficamente essa concentração, foram utilizadas manchas de calor em cima dos aglomerados passantes e/ou dos personagens, o que pode ser observado com maior clareza na sequência da rodoviária.

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Sobreposição gráfica das imagens conformam manchas vermelhas que se intensificam. Image Cortesia de Débora Mayumi Segawa Okamoto
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Intervenção em que a acentuação da cor na medição da concentração de pessoas ocorre por conta dos diferentes stills sobrepostos. Image Cortesia de Débora Mayumi Segawa Okamoto

O protagonista está em sua condição mais vulnerável quando se vê rodeado de desconhecidos caminhando rapidamente sob o Viaduto do Chá. Desesperado com seus problemas, o local em que se encontra não o ampara, as pessoas não o enxergam e muito menos o confortam. Nesse momento, o sentimento de solidão aparece. Ao se deparar com a multidão passante, consequentemente, Carlos também experiencia o vazio e, mais uma vez, a complexidade do espaço fílmico urbano é manifestada.

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Manchas de calor fortes enfatizam a multidão em contraposição as manchas mais fracas que demarcam o vazio das grandes avenidas e o Viaduto do Chá. Image Cortesia de Débora Mayumi Segawa Okamoto

Nessa produção, a cidade se apresenta como contraponto à inércia e à submissão de Carlos. Visto que o personagem não se impõe, a cidade toma forma visualmente e se firma para esse sujeito e para seu espectador. Dessa maneira, cada elemento urbano inserido no quadro possui um significado maior do que apenas estético. 

O ESPAÇO FÍLMICO URBANO é personagem e, para nós, é obrigatório o entendimento do significado de quando o urbano é apresentado, para contextualizar não só a narrativa, mas também o histórico. É o caso da sequência de stills que se passa no pavilhão de exposição da Bienal de Arte, sediada na Oca do Parque Ibirapuera, ali o vazio toma forma, o chão se aglutina à cobertura e o progresso da tecnologia estrutural é aclamada. 

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Mancha vermelha não mais é um medidor de calor, agora um marcador do espaço fílmico urbano revelando a formalidade arquitetônica da Oca. Image Cortesia de Débora Mayumi Segawa Okamoto
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As linhas de força acompanham as pilastras e obras expostas, evidenciando as expressões plásticas da Modernidade. Image Cortesia de Débora Mayumi Segawa Okamoto

Seguindo essa lógica Moderna, a apresentação da expansão urbana, suas camadas sobrepostas e as São Paulos existentes, também como suas zonas industriais, é essencial para o entendimento da contextualização história em que a narrativa se insere. Isso pode ser observado nas viagens de carro pelas rodovias, principalmente quando Arturo mostra o terreno da nova fábrica à Carlos.

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Mancha de calor preenche o vazio usado como passagem e destaca o automóvel. Ao fundo as linhas que traçam a paisagem natural e a construção das fábricas se mesclam. Image Cortesia de Débora Mayumi Segawa Okamoto
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As linhas de força ressaltam o contraste da paisagem natural em oposição as fábricas, os postes de luz e as cercas. Image Cortesia de Débora Mayumi Segawa Okamoto

Outras diferentes paisagens que conformam a cidade, como a periferia e a várzea, também são exibidas para a contextualização histórica. 

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Linhas de força seguem as angulações retas dos desenhos das casas, interrompidas pelas linhas orgânicas da vegetação conflitantes com as construções precárias. Mancha de calor na terra batida ressalta o carroceiro transportando as crianças. Image Cortesia de Débora Mayumi Segawa Okamoto
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Rio é demarcado pela mancha vermelha em oposição ao vazio das vias pavimentadas onde automóveis e bondes passam, ao fundo skyline é delineado. Image Cortesia de Débora Mayumi Segawa Okamoto
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Documentação fílmica de São Paulo (1929-2019). Image Cortesia de Débora Mayumi Segawa Okamoto

Desse ensaio, resultam não somente peças gráficas, mas também novas maneiras de assistir, questionar e representar o espaço. Além disso, produz discussões atuais, traçando a relação entre passado e futuro, a sobreposição de camadas urbanas e humanas e a complexidade de políticas públicas que influenciam na construção da cidade e do homem que a habita.

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Material gráfico impresso. Image Cortesia de Débora Mayumi Segawa Okamoto
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SÃO PAULO sociedade Anônima. Image Cortesia de Débora Mayumi Segawa Okamoto

Referências bibliográficas
ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Metrópole e Cultura. São Paulo: EDUSP, 2015.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1982.
COSTA, Sabrina. Relações entre o traçado urbano e os edifícios modernos no centro de São Paulo. Arquitetura e Cidade(1938/1960). São Paulo: Annablume, 2015.
PERSON, Luis. São Paulo, Sociedade Anônima. São Paulo (Filme). Acesso em: 16 de abr. 2020.

Este texto é fruto do trabalho de conclusão de curso “SP, Cidade Fílmica - Recorte da São Paulo Moderna”. “Fílmica”, palavra que remete ou pertence ao filme. Assim “Cidade”, pertencente ao filme Um recorte da São Paulo Moderna, utilizando a modernidade como ferramenta de análise de São Paulo, através de uma produção cinematográfica, resultando em uma intervenção gráfica dos frames que ressalta o espaço fílmico urbano e as transformações da década de 60. Trabalho este realizado pela estudante Débora Mayumi, na Escola da Cidade, e apresentado no dia 20/12/2019, sob orientação da Professora Doutora Sabrina Fontenele.

Débora Mayumi, arquiteta e urbanista paulista. Graduada pela Escola da Cidade e ENSA Paris La Villette. Colaborou em 2017 na cenografia e design visual da peça “Mártir”, de Marius von Mayenburg. Em 2018 fez vivência direcionada a cenografia, projeto e fotografia em Paris e atualmente trabalha no escritório Carpinteria. deemayumi@gmail.com

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Sobre este autor
Cita: Débora Mayumi Segawa Okamoto. "SP, cidade fílmica: recorte da São Paulo moderna " 01 Set 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/946754/sp-cidade-filmica-recorte-da-sao-paulo-moderna> ISSN 0719-8906

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