Caçando relíquias: elementos arquitetônicos e materiais reutilizados em novas obras

Alguns pesquisadores definem que o início do Antropoceno se deu com a Revolução Industrial, outros com a explosão da bomba nuclear ou até no advento da agricultura. Isso ainda não é um consenso científico. Mas a noção de que as atividades humanas vêm gerando alterações com repercussão planetária, seja na temperatura da Terra, nos biomas e ecossistemas, é algo cada vez mais disseminado. O antropoceno seria uma nova era geológica marcada pelo impacto da ação humana no planeta Terra. Isso é particularmente perturbador se considerarmos que se toda a história da Terra fosse condensada em 24 horas, os humanos só apareceriam nos últimos 20 segundos. Seja na extração massiva de recursos naturais, liberação de carbono dos veículos e indústrias, é sabido que boa parte da culpa é da construção civil, sobretudo na produção de resíduos sólidos, por conta de desperdícios e demolições. No Brasil, por exemplo, os Resíduos da Construção Civil podem representar entre 50% e 70% da massa dos resíduos sólidos urbanos [1]. Muitos acabarão descartados irregularmente ou utilizados como aterros soterrados por tempo indeterminado.

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Cortesia de RotorDC

Mas junto à consciência crescente dos impactos, diversas iniciativas e conceitos surgem para tentar mitigar os impactos e trazer nortes a um mundo cada vez mais urbano. Mudanças significativas na maneira como produzimos e descartamos são imprescindíveis. Enquanto a chamada economia linear tradicional baseia-se na extração crescente de recursos naturais, manufatura e descarte como resíduo no fim de sua vida útil, a economia circular é baseada em três princípios: eliminação e redução de desperdício e resíduos, manutenção de produtos e materiais em uso e regeneração de sistemas naturais [2]. Ela se inspira nos mecanismos dos ecossistemas naturais, em que os processos e fluxos funcionam em ciclos de reabsorção e reciclagem, retomando à natureza com menor impacto ambiental. Segundo esse raciocínio, um material, ao não servir mais para seu uso pré-estabelecido, pode ser reparado, reutilizado e reciclado, voltando ao fluxo cíclico. Nessa mesma linha, o conceito de mineração urbana aponta que nas cidades atuais, muitas matérias-primas não estão mais em sua fonte original, mas em novos repositórios antropogênicos, sobretudo nos edifícios. Grandes quantidades de matérias-primas são armazenadas em nossas construções e, portanto, as cidades podem ser consideradas imensos repositórios de materiais e matérias-primas.

Na prática acessar e utilizar esses materiais nem sempre é tão simples. Reutilizar um material ou produto requer uma demolição ou desmontagem muito mais atenciosa, vistorias quanto as condições da peça e lidar com estoques limitados. Ao trabalhar com prazos, normas e orçamentos, incluir esses chamados “materiais alternativos” pode ser um risco que os arquitetos não gostarão de tomar. Aos poucos, algumas empresas vêm surgindo para suprir esse mercado em crescimento.

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Um bom exemplo é a Rotor Deconstruction, empresa belga pioneira no campo de componentes recuperados de construção. A equipe desmonta, condiciona e vende os materiais, além de prestar assistência a proprietários, empreiteiros e arquitetos de edifícios para o seu uso. Segundo eles, “ao usar bens recuperados, você não apenas reduz a quantidade de resíduos de demolição, mas também adquire materiais de construção de qualidade, além de ter um menor impacto ambiental. Muitas vezes, é possível encontrar peças concebidas por designers renomados, criadas por artesãos qualificados ou feitas com tecnologias agora fora de alcance.” Outros bons exemplos de empresas europeias que atuam no mesmo campo são a Materialnomaden, na Áustria e, na Alemanha, Salza e Bauteilboerse-bremen, entre outras.

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Mas é natural se perguntar: e qual a diferença dessas empresas de um ferro-velho ou uma loja de antiguidades? A principal questão é um controle maior dos produtos, a assistência técnica especializada e uma consciência das possibilidades de uso e até suas limitações. A RotorDC, por exemplo, desenvolve diversas pesquisas e lançou um inventário ilustrado destinado a estudantes e profissionais ativos no campo da construção (arquitetos, engenheiros civis) ou preocupados com a reutilização de materiais de construção (escritórios de projeto, fabricantes, autoridades públicas, consultores no ambiente). Mesmo suas incursões às “minas” são documentadas, evidenciando os materiais encontrados, as dificuldades e até um certo saudosismo ao lidar com memórias construídas que acabarão desaparecendo.

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De vigas de madeira, ladrilhos hidráulicos a espelhos e luminárias de banheiro, a gama de produtos é imensa, todos documentados e devidamente catalogados no website. Além da reutilização e revalorização, desviar esses elementos do fluxo de resíduos é uma forma de preservação complementar aos esforços realizados por atores estabelecidos na preservação histórica de edifícios. Naturalmente, alguns desafios técnicos, legislativos, sociais e culturais ainda dificultam a evolução dos usos em direção a um modelo de economia 'verdadeiramente circular' para o setor da construção. Trata-se de um debate novo, mas muito importante.

Como aponta o pesquisador de sustentabilidade Günther Bachmann em sua introdução ao livro Manual of Recycling – Buildings as Sources of Materials [3] : “A construção na era do Antropoceno dependerá da recuperação e reciclagem de materiais de construção do "ecossistema urbano", de materiais de construção separáveis, ciclos de vida, planejamento circular e controle de custos e propriedade responsável, em vez de categorias de crescimento linear e expansivo, como demandas, custos de investimento, aterros sanitários e a lógica do mercado imobiliário.”

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Este artigo é parte do Tópico do ArchDaily: Reciclagem de Materiais. Mensalmente, exploramos um tema específico através de artigos, entrevistas, notícias e projetos. Saiba mais sobre os tópicos mensais aqui. Como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossos leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.

Notas

Publicado em 08/07/2020 e atualizado em 24/06/2021.

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Sobre este autor
Cita: Eduardo Souza. "Caçando relíquias: elementos arquitetônicos e materiais reutilizados em novas obras" 02 Jul 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/943038/cacando-reliquias-elementos-arquitetonicos-e-materiais-reutilizados-em-novas-obras> ISSN 0719-8906

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