A reinvenção do comum e da vida cotidiana

Com o sentido perdido, as cidades buscam novos significados. Hoje dependemos das redes sociais digitais para acessar bens comuns como cultura, lazer, encontros significativos - mas como podemos usufruir das tecnologias para permitir o direito à cidade em tempos de pandemia? Vivemos um movimento global de diminuição do ritmo do desenvolvimento urbano: o esvaziamento das cidades na Índia, o êxodo urbano na França, o retorno às menores cidades e às áreas rurais, onde há menor densidade populacional e maior qualidade de vida. O que significa a cidade se não a promessa do acesso aos bens comuns que ela oferece? 

No entanto, para muitos nas metrópoles brasileiras tais direitos sempre foram promessas que nunca chegaram: do acesso pleno à moradia de qualidade, saneamento, água, trabalho, conhecimento, cultura, educação... E o que faz a pandemia é visibilizar ainda mais essas contradições, como explicita a jornalista Mariana Belmont em coluna no Ecoa: “a desigualdade social será ainda mais sinônimo de mortes seletivas nas periferias, sabemos bem a cor e a renda das pessoas que já começaram a morrer e são subnotificadas pelos hospitais. São muitos os que já morriam todos os dias, agora será cada vez mais.”

Apesar de contribuir para a não propagação do vírus, a quarentena ainda é privilégio de alguns, aqueles que estão imunes (como apontado no artigo de Paul B. Preciado no El Pais “Aprendendo del virus”) de se colocar em risco para salvar outros, trabalhando desde suas casas. Enquanto isso, diversas pessoas saem às ruas para cuidar e trabalhar na manutenção da nossa vida cotidiana: agricultores, motoristas de transporte público e logística, estocadores, operadores de caixa de supermercado, garis, coletores de lixo, empregadas domésticas, jardineiros, síndicos, porteiros… Como podemos distribuir essas funções de forma a que todos possamos estar seguros, sem riscos, e que possamos compartilhar o acesso aos bens comuns (água, comida, terra, energia…) igualmente, garantindo o direito daqueles que hoje não os acessam (os desmunidos); nas periferias, favelas, nas ruas?

Mesmo que a vida cotidiana volte a uma normalidade nos próximos anos, já será um novo normal. A pandemia nos impõe a necessidade de criar outras formas de nos relacionar com o habitar e a organização (hoje desigual) da sociedade que integramos para suprir as demandas do habitar. Como criar coletivamente infra estruturas e regras para cuidar da vida e gerir os comuns em tempos de crise? Vemos assim emergir um novo comum: que questiona as aglomerações urbanas que insistimos em construir e o modelo de exploração (destruição?) dos ecossistemas que vem com elas, mas oferece também a possibilidade de criarmos comunidades. A ideia de comunidade se apresenta aqui como uma organização coletiva onde os deveres para sustentar a vida (e suas riquezas) são produzidos e distribuídos igualmente, cuidando daqueles que estão em situação de vulnerabilidade e buscando compartilhar os bônus e o ônus da vida em comum - entendendo que habitamos um mesmo planeta. 

Antes, as ruas foram palco de ocupações de desejos por outros mundos, pela retomada e disputa daquilo que é público. Agora, a janela é a nova rua - seja a janela da internet ou do apartamento. O panelaço, as conversas através dos muros, os grupos de Whatsapp de vizinhos, a comunidade que sustenta agricultura e as redes online de solidariedade em cada cidade demonstram que, mesmo mediados pela arquitetura das redes sociais digitais, ainda podemos criar vínculos reais, ação política e comunidades de cuidado. 

© Pedro Urano

A iniciativa global Segura a Onda (Frena la Curva) mapeia essas ações: um guia de iniciativas cidadãs de enfrentamento ao coronavírus, cujo conteúdo está organizado em fóruns temáticos, apoiando projetos de resiliência cívica em tempos de pandemia. As ações variam desde a mais básica demanda de acesso à informação e direitos, moradia, trabalho e renda, até redes de solidariedade e apoio mútuo, ações de cuidado, dicas para o tempo livre da quarentena, e o cuidado das populações com direitos ameaçados (os desmunidos), excluídos e em situação de maior vulnerabilidade - e que sempre estiveram.

Para recuperar e garantir esse direitos constitucionais, temos que pensar em novas formas de nos organizar, abaixo algumas sugestões de ferramentas e estratégias de uma nova maneira de olhar para a cidade, como:

  • acesso a informação confiável, conhecer nossos direitos constitucionais para que possamos fazer um monitoramento social do cenário em constante mudança
  • acesso ao conhecimento científico, as instruções da saúde e à tecnologias abertas de soluções criadas
  • inovação nas políticas públicas de descentralização de recursos e redistribuição dos privilégios (acesso a leitos privados, por exemplo)
  • outros entendimentos da ideia de trabalho, renda mínima, leis trabalhistas que apoiem os trabalhadores afetados
  • políticas de negociação do aluguel, de ocupação de imóveis vazios ou ociosos
  • mobilização social, redes de apoio mútuo, iniciativas de economia solidária, grupos de consumo, apoio a pequenos comércios e à agricultura familiar
  • acesso a medicamentos e saberes populares de medicina natural, de alimento de qualidade, de ações de autocuidado, de acolhimento
  • direito ao ócio: passeios virtuais, filmes, passa-tempos, cursos, cultura e arte
  • mitigação dos riscos das comunidades vulneráveis e defesa dos direitos daqueles em maior risco: população de rua, indígenas, comunidades rurais, imigrantes e refugiados, moradores de periferias, favelas, cortiços e ocupações, pessoas em cárcere, catadores de resíduos, mulheres, LGBT, grávidas, pessoas com questões de saúde mental

Como lembra o filósofo indígena Ailton Krenak, não devemos nos civilizar, mas sim devemos criar outros modos de civilidade: ecológica, comunitária, pluriversa. O novo comum é um convite para reinventar como organizamos nossa vida, nosso tempo, espaço e relações - pactuando a co-responsabilidade de cuidar de nós mesmos, dos outros e do espaço que habitamos; respeitando os limites do planeta e criando cidades onde possamos coexistir de forma justa e saudável. 

#saudadedarua
#fiqueemcasa
#ofuturoécoletivo
#seguraaonda

Escrito por Marcella Arruda via Instituto a Cidade Precisa de Você.
Esse ensaio faz parte da campanha #saudadedarua. Confira mais sobre no instagram @acidadeprecisadevoce.

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Sobre este autor
Cita: Marcella Arruda. "A reinvenção do comum e da vida cotidiana" 18 Abr 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/937610/a-reinvencao-do-comum-e-da-vida-cotidiana> ISSN 0719-8906

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